Opinião
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27 de fevereiro de 2022
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09:22

A virulência da nova direita (por Luiz Marques)

Roger Scruton no Fronteiras do Pensamento 2019 (Foto: Fronteiras do Pensamento / Greg Salibian)
Roger Scruton no Fronteiras do Pensamento 2019 (Foto: Fronteiras do Pensamento / Greg Salibian)

Luiz Marques (*)

Wikipédia. “Roger Vernon Scruton (1944-2020) foi um filósofo e escritor inglês com especialidade em Estética. Abraçou o ideário do conservadorismo depois de testemunhar os protestos estudantis do maio de 1968. Tem sido apontado como o intelectual conservador mais bem-sucedido na defesa da ordem e das instituições estabelecidas, opondo-se às mudanças na configuração das famílias, das comunidades locais e das convenções sociais, – desde Edmund Burke (1729-1797), o notável membro do parlamento londrino pelo Partido Whig e crítico ferrenho da Revolução Francesa”. Para os conservadores, inclusive os preconceitos precisam ser mantidos para garantir a estabilidade social. Se entende, assim, a aversão às políticas progressistas e aos movimentos revolucionários.  

Camila Rocha, Menos Marx, Mais Mises (Todavia). “A consolidação da nova direita no mercado editorial brasileiro veio acompanhada de um fenômeno cultural que passava a ficar em evidência na mídia tradicional: o politicamente incorreto”. A publicação do renomado Roger Scruton e do famigerado Olavo de Carvalho corresponde ao medo e a insegurança da sociedade perante os abalos nos pilares do patriarcado e do colonialismo. 

Scruton, autor de Os Pensadores da Nova Esquerda (É Realizações), livro que a revista Veja considerou “uma pedra no sapato da ideologia politicamente correta”, é um polemista de grande influência na formação do conservadorismo contemporâneo. O baluarte britânico começou a publicar nos anos 1970-80, período em que nos Estados Unidos surgia uma nova direita, a qual rompeu com o liberalismo clássico centrado na economia e se aproximou do divisor anticivilizacional do neoliberalismo, baseado em uma Weltanschauung que penetrou a sociedade de consumo e a subjetividade reificada dos indivíduos. 

À época, na França, com uma cobertura digna de pop stars na imprensa, André Glucksmann e Bernard-Henri Lévy enxovalhavam os princípios do marxismo, vistos como a antessala do “socialismo real” dos países satélites da ex-URSS. Os ventos tinham trocado de direção. Quando Rudolf Bahro, em L’Alternative (Stock 2), escreveu sobre o abismo que havia entre os fundamentos da “filosofia da práxis” e a realidade na Alemanha oriental fora aplaudido no Ocidente. Em 1959, a sobriedade ainda evitava jogar o bebê com a água suja do banho. Scruton, em duas linhas no total de 334 páginas maçantes, corroborou a metodologia de análise de Bahro: “A estrutura totalitária do governo comunista não é consequência inevitável das concepções marxistas” (p. 310). O lapso, porém, foi um espasmo de lucidez. Não demorou para que abonasse os arroubos dos nouveaux philosophes.

No movimento cultural que mexeu com os alicerces da tradição política, a new right deu as costas aos valores da solidariedade social e se afastou do campo de gravidade da social-democracia europeia. Ver o curso de Michel Foucault sobre o Nascimento da Biopolítica (Collège de France, jan-abr 1979), supramencionado por Pierre Dardot e Christian Laval, em A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal (Boitempo). A direita se convertia em sinônimo da irradiação da razão de mercado. Não surpreende que Scruton tenha participado, em Porto Alegre/RS, da edição de 2019 do Fronteiras do Pensamento, evento que reúne anarcocapitalistas, neoliberais e liberais conservadores. 

Na provocativa obra, pensadores da modernidade identificados com o arco-íris dos “anjos tortos” foram arremessados ao confuso balaio dos “teóricos marxistas cujas especulações referendam ditaduras (a emblemática Cuba) e regimes tipo a Venezuela chavista”. Na Apresentação informa-se que a mesma pretende cumprir o papel de um “manual de primeiros socorros”, útil para estimular nos jovens os germes da desconfiança até os nomes amiúde “repetidos com uma irrefletida euforia por seus professores”. 

A cruzada inquisitorial para combater os ímpios mirou os redivivos “jacobinos”, alguns “broncos e abjetos”, outros “inteligentes” e, pelo menos um, “espécie de gênio”. Decerto, ingênuo. A alusão pareceria recair em Gramsci, reputado pela genialidade por Hobsbawm, Bobbio e Althusser. Mas o escolhido pelo juiz que conduz à danação eterna no inferno, foi o famoso autor de A Náusea, o companheiro de Simone de Beauvoir. 

Se os eleitos conseguiram audiência é porque a juventude sessentista / setentista “estava ávida de doutrinação” e queria “em um só gesto, a liberação individual e a justiça social para as massas”. Não incluiu Chomsky no desfile. Este seria “uma pose… uma mentira… manipulou fatos, escondeu tudo que é terrível no comunismo e tudo que merece crédito no país que escolheu para viver (EUA)… ademais, é muito desprovido de teoria para os meus desígnios”. Marcuse foi barrado no baile, já fora desmascarado alhures.

Sobre Foucault, comenta. “O gauchiste partilha da suspeita racionalista contra as instituições humanas e do desprezo pela superstição, mas se distingue por um cinismo… A hostilidade decorre da teoria marxista da história, com sua separação entre superestrutura política e base econômica. O caso mostra como, a hostilidade do radical ao poder, leva também à hostilidade à lei e a uma percepção equivocada das instituições judiciais”. Ça suffit. Que após o bombástico affaire Dreyfus (1894-1905), com flagrante erro judiciário embalado em notório anti-semitismo, se reedite slogans publicitários sobre a imparcialidade da toga é algo que só se explica por uma má-vontade cognitiva. Para ficar somente no lawfare que mobilizou mentes e corações na virada do século 19 ao 20.  

Ao abordar Gramsci, acusa a “interminável luta contra o inimigo ‘fascista’ (posto em aspas no texto)”. Interpreta “sua súbita canonização por características do destino”. Mas haveria um outro motivo para a gloriosa distinção, “estabelecer o direito do intelectual (verdadeiro agente da revolução) à ascendência política… ele oferece a completa justificação ao intelectual de esquerda na ânsia por poder”. Quanta argúcia acadêmica.

Sobre Sartre, “talento monumental”, lamenta haver “dado expressão à falsidade esquerdista e à condição perturbadora que a inspira… para uma função religiosa”. Arremata, constrito: “Ler a Crítica da Razão Dialética é uma experiência cruel. Em lugar nenhum, a divisão da sociedade entre os ‘proletários’ e os ‘burgueses’ é questionada, o mito da ‘luta de classes’, examinado, a teoria da ‘exploração’, condenada”. Sartre “desafia a realidade aprisionante, onde a vida humana e a felicidade são encontradas”. Não obstante, “nenhum pensador é mais autenticamente representativo da intelligentsia pós-guerra que Jean-Paul Sartre”. Ter ganho e recusado o Prêmio Nobel (1964), em literatura, contribuiu na avaliação. É galardão com um enorme reconhecimento desde a criação, nos idos de 1900.

Habermas: “A dificuldade de extrair significado é agravada pela estruturação de seus livros, compostos de capítulos desconexos e argumentos que não são sustentados por mais de um parágrafo… De reputação mundial, nos deve um pensamento original”. Por outro lado, E. P. Thompson, “sentimentalizou o proletariado, foi menos sábio que crédulo. Sua atitude acrítica em face dos próprios sermões repete-se frente ao marxismo”.

Os catorze ícones de esquerda selecionados possuiriam em comum o desejo de “justiça social”, o que os colocaria em “posição moralmente superior”, como membros de uma “seita” ou “religião secular”. Foram pinçados cinco, aqui, para ilustrar o modus operandi do intérprete. O suficiente para uma ideia do estilo de crítica disparada. O padrão se repete no populismo autoritário de extrema-direita, com propensão cesarista no Brasil. Basta evocar os rótulos utilizados por Bolsonaro et caterva acerca das políticas implementadas pelos governos progressistas (2003-2016). Nada é explicitado à luz dos benefícios auferidos pela população. Juízos morais, embebidos em fake news para deglutição nas tóxicas bolhas obscurantistas, substituem o lugar anteriormente ocupado pela política.

A “demagogia” seria a marca das políticas sociais. A pecha de “atentado à liberdade” dos investidores (fazendeiros, garimpeiros) rebate os cuidados com a preservação das terras dos povos originários. O chavão “interferência da política na economia” contesta a denúncia da oposição à vil liquidação a preços irrisórios de largas fatias de empresas, como a Petrobrás, que podem ajudar a regular o crescimento econômico, e por aí vai. A regulação da mídia como acontece em nações com democracias consolidadas é “censura”. Que continue como está, “com todos os defeitos”. O pano de fundo, encardido e nunca lavado e estendido, está no senso comum construído pela mídia comercial controlada pelo capital financeiro, como critério sobre o certo e o errado. A opinião publicada serve de baliza.

O último capítulo do livro-panfleto do fellow da British Academy trata sobre “o que é a direita”. Admite que nas formulações tributárias do marxismo “o conceito de liberdade importa muito – emancipação é, em simultâneo, o propósito individual e a grande causa social”. A seguir, ressalva. “Contudo, a liberdade raramente é analisada, e as instituições necessárias para assegurá-la, mais raramente discutidas”. Cobra imaginação a partir de uma crítica carente de imaginação, avessa às mudanças estruturais e institucionais de uma sociedade de transição. A Constituinte chilena, em curso, ilustra a potência da criatividade popular, com acenos para além da servidão burocrática aos poderosos. 

Scruton busca contrastar a direita de modo quixotesco, perseguindo os moinhos que supõe sejam o arcabouço de um establishment alternativo. No tópico sobre “poder e dominação” diz que os metafóricos moinhos querem acabar com os poderes. Errado. Querem ampliar o controle público sobre o Estado por intermédio da democracia participativa. Adiante, refuta a rejeição de qualquer coerção pelo utópico socialismo democrático. Errado. Quem imagina a sociedade ideal sem disposições coercitivas são os que creem nas fetichizadas liberdades hiperindividualistas, endossando o motim alucinado do negacionismo contra o passaporte vacinal e a obrigatoriedade dos imunizantes antivirais na pandemia.

“A nova direita acredita mais em governo responsável do que em governo impessoal, na autonomia e personalidade das instituições, e no Estado de Direito… que não é uma coisa, mas uma pessoa”. Em sua visão antirrepublicana da governança, cabe às leis impedirem a reinvenção do futuro pelos trabalhadores. Na sociedade civil se processaria “a interação de indivíduos contratantes, mediados pelos costumes, a tradição, a autoridade e a lei”. A ação dos sujeitos atomizados é legítima. Enquanto associações coletivas são portadoras de ações, axiomaticamente, ilegítimas. “A atuação coletiva é um perigo”, lê-se. A apregoada “boa sociedade” seria composta por “corporações”. Flexibiliza-se as normas ambientais pelo Estado, uma vez que “a fábrica que polui o rio pode ser compelida a indenizar os que sofreram a poluição”. Restaria rezar pelo autocontrole corporativo.

O mestre da descerimônia encerra a cruzada com anátemas às lutas travadas sob a bandeira da “justiça social”, pois conflituam com a “natureza humana”. Zomba da esperança na “libertação, democracia, igualdade e paz”. Tal é uma ilusão, “óbvia para aqueles que não sucumbiram à tentação ideológica de esquerda”. A seguir, confessa, sem arrependimento. “Fui levado com frequência em minha exasperação a me equivocar na polidez literária. Mas e daí? Polidez é nada mais que uma virtude ‘burguesa’, um pálido reflexo do ‘Estado de Direito’ que é a garantia da dominação burguesa. Ao confrontar a esquerda, alguém se confronta não com um oponente, mas com um inimigo autodeclarado”.  

Scruton pavimenta a ponte para o neoliberalismo e o neofascismo, ao som da marcha fúnebre. A citação de Platão, retirada d’As Leis e colada ao final, funciona como um apelo à violência que assassinou Marielle e Moïse. “Devemos ser virulentos e revoltosos com os responsáveis por deitar sobre nós o fardo da discussão”. Ops, como?! Fardo da discussão?! No Estado de Direito Democrático?! Com imposição autoritária do silêncio à comunicação argumentativa, que pela persuasão da palavra civiliza a politica?! Reprimindo o exercício da cidadania ativa que deseja construir uma sociabilidade dialógica?! 

Melhor se citasse a poética identitária de Waldick Soriano: “Eu não sou cachorro, não / Para ser tão humilhado / Eu não sou cachorro, não / Para ser tão desprezado”. O cão não merece. Mas não foi o cão que inventou o ódio nos think tanks da nova direita. Olavo de Carvalho, ao propor ao fanático séquito a desqualificação dos interlocutores à gauche, sem a comedida preocupação para argumentar de forma racional e educada, – não destampou a intolerância. Apenas acrescentou, às insanidades, a linguagem chula e os palavrões. V.T.C. é a sua contribuição à verve conservadorista. Na lápide do homem de Virgínia poderia constar o epitáfio brechtiano: “Ele era outra pessoa / de todo diferente de nós”. 

(*) Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul

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