Opinião
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11 de janeiro de 2022
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11:09

As despesas públicas emergenciais e o nível convencional de subsistência (por Fernando Maccari Lara)

"A fome voltou": Lambe lambe em muro na Avenida Paulista, em São Paulo. Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas

Fernando Maccari Lara (*)

O texto tem três partes, seguidas de algumas considerações finais. A primeira discute alguns conceitos gerais da economia política e semelhanças com o pensamento econômico estruturalista. Na segunda, o foco é o conceito de nível convencional de subsistência. A terceira parte é uma interpretação do temporário abandono da ideia geral de austeridade no Brasil, em função das despesas associadas aos efeitos da pandemia.

Entre economistas, é bastante comum a ideia de que existe uma certa tradição “clássica” de pensamento, estudada apenas como curiosidade histórica ou uma espécie de cultura inútil. Neste tipo de interpretação sobre a história do pensamento econômico, autores como Adam Smith e David Ricardo teriam dado contribuições até interessantes, mas imperfeitas, sem muito rigor e, sobretudo, incompletas em relação ao que seria um estágio superior hoje vigente do conhecimento sobre a economia. Segundo esta visão, avanços mais consideráveis teriam começado a ocorrer no final do século XIX com Marshall, Walras e outros pioneiros do pensamento marginalista. A popularidade deste tipo de concepção fica evidente quando se percebe que mesmo economistas heterodoxos, influenciados por esta narrativa, usualmente citam Smith e Ricardo um tanto genericamente ao lado dos autores neoclássicos como meros defensores do “livre mercado”.

Tal interpretação do que vem a ser a abordagem clássica da economia vem sendo contestada ao menos desde meados do século XX, em função sobretudo da obra dos economistas italianos Piero Sraffa e Pierangelo Garegnani. Após um esforço inicial de crítica aos fundamentos da abordagem de equilíbrio parcial de Marshall, Sraffa dedicou-se a estudar com mais profundidade a obra daqueles economistas “clássicos”, sobretudo Ricardo. Descortinou-se então para um considerável grupo de economistas, a partir da leitura de Sraffa, uma longa linha de continuidade no pensamento econômico. Ela inclui Adam Smith, mas começa muito antes dele, no século XVII com William Petty, passando também por Ricardo e Marx.

É interessante notar que esta mesma noção de continuidade  – tão obscurecida por aquela narrativa mais convencional sobre o pensamento “clássico” – aparece também valorizada em outra vertente crítica à abordagem neoclássica convencional: a assim chamada abordagem estruturalista latino-americana. Aníbal Pinto, em texto de abertura do livro “Introdução à Economia: uma abordagem estruturalista” de Castro e Lessa, mencionava que “a visão marxista da sociedade seria, talvez, a primeira explicitamente estrutural” e que a abordagem de insumo-produto de Leontief, em cuja origem estaria Quesnay, estaria incluída nesta abordagem. Ainda segundo Pinto, características importantes deste enfoque são a análise dos fenômenos econômicos de forma contextualizada geográfica e historicamente, como também a identificação dos elementos estruturais, ou seja, aqueles que “no transcurso de um período determinado, se apresentam como relativamente estáveis em comparação com outros”.

Vale dizer ainda que também a macroeconomia estruturalista desenvolvida na América do Norte compartilha de tais princípios gerais. Em seus livros cujo objetivo explícito é contribuir para uma reconstrução da macroeconomia, o economista Lance Taylor destaca que a definição de parcelas setoriais, institucionais e relativas a grupos sociais é característica básica do método. Segundo ele, procurar pelos núcleos de poder e pelas relações causais macroeconômicas seria a chave para o método da macroeconomia estruturalista. No Brasil este tipo de abordagem vem sendo usada por economistas heterodoxos há muitos anos. Mas sua difusão parece ter crescido em tempos recentes, reforçada que foi pelo trabalho do Grupo de Economia Política da UFRJ desde o final dos anos 1990 e início dos 2000. As reflexões críticas sobre a economia do desenvolvimento a partir da abordagem do excedente relatadas em diversos textos (https://doi.org/10.1590/0101-31572004-1625) mostraram-se extremamente frutíferas, seguindo-se uma intensa produção neste e em outros campos acadêmicos como a macroeconomia teórica e aplicada e a análise de política econômica (https://www.excedente.org/).

Em síntese, o que se quer aqui destacar é que os elementos gerais que determinam esta extensa linha de continuidade, se bem compreendidos, estão longe de serem meras curiosidades. São a base para a consolidação de ferramentas de análise que servem tanto para eventos passados quanto para situações históricas novas. A identificação de partes relevantes e persistentes de uma totalidade, o exame de suas proporções e relações, e a identificação de fontes de poder que exigem ajustes em outras posições mais débeis para fazer valer as suas aspirações, são todos princípios gerais  bastante aderentes ao que vem a ser a economia política baseada no princípio do excedente.

O conceito de excedente econômico foi formulado pioneiramente por William Petty no século XVII, utilizado pelos fisiocratas como Quesnay, desenvolvido também por Smith, Ricardo, Marx, e resgatado por Sraffa e Garegnani. Ele constitui justamente uma parte do produto social gerado pela sociedade. Mais especificamente, corresponde àquela parte que a sociedade consegue produzir além do que é denominado o seu consumo necessário. Este, por sua vez, é composto por duas outras partes. A primeira, que podemos referir como a reposição dos meios de produção, depende sobretudo das condições técnicas em cada momento do tempo, e consiste na parcela da produção que é necessária para garantir que se possa novamente produzir no período subsequente. Já a segunda parte do consumo necessário, que será desenvolvida mais adiante, consiste no chamado consumo de subsistência.

Deve-se ter bastante claro o alto grau de abstração desses conceitos, nesta primeira aproximação. A repartição básica do produto social entre consumo necessário e excedente já pressupõe um certo conjunto de relações que são de natureza política, técnica, geográfica. Em síntese, são as condições históricas concretas que definem os termos daquela repartição. Em um segundo nível, temos os conflitos reais que se estabelecem em torno da apropriação do excedente a cada situação histórica e que estão na base de suas principais relações institucionais. O conflito entre proprietários de terras, capitalistas e trabalhadores é visto possivelmente como o principal elemento estrutural do sistema capitalista, podendo manifestar-se sob formas relativamente variadas nos contextos específicos de diferentes nações em diferentes períodos históricos. O conflito pelo excedente e o modo específico pelo qual se consolida um piso de subsistência para os salários são, portanto, fenômenos que assumem formas particulares a cada situação histórica específica e estão, concretamente, relacionados a outro problema importante: os preços das mercadorias.

Evidentemente, representações mais detalhadas destes processos exigem uma elaboração analítica mais detalhada. A rigor, a viabilização dos fluxos que correspondem à reposição dos meios de produção e ao consumo de subsistência também exige certa correspondência do sistema de preços assim como as mudanças nas parcelas distributivas entre os principais grupos que disputam a apropriação do excedente. Mas convém dizer que uma das características marcantes da abordagem clássica do excedente é justamente a possibilidade de avançar progressivamente em direção a representações mais concretas e detalhadas da realidade de modo consistente com os princípios mais gerais. São diversas as aplicações empíricas possíveis e relacionadas. A seguir discute-se com um pouco mais de detalhe o significado da noção de um nível convencional de subsistência.

A ideia básica subjacente à subsistência é de que, em cada situação histórica, existe uma convenção social a respeito do que seja uma cesta de consumo capaz de dar estabilidade ao sistema social. Para que uma determinada população esteja permanentemente em determinado território e nele se reproduza, existem certas condições objetivas que precisam ser satisfeitas. Em sociedades de baixa produtividade e com uma divisão do trabalho pouco complexa, é comum que esta cesta de subsistência se resuma a uma certa quantidade de alimentos, algum abrigo contra as forças da natureza (como o sol, a chuva, o frio, etc.), e não muito mais do que isso. Na medida em que a produtividade cresce e a divisão do trabalho torna-se mais complexa, também a cesta de subsistência tende a incorporar novos elementos. Nas sociedades desenvolvidas do século XXI é certo que uma caracterização mais concreta do que venha a ser o nível convencional de subsistência iria bastante além de apenas alimentos e proteção contra as forças da natureza e deveria incluir certos itens vistos como luxo naquele mesmo lugar em outras épocas ou em outras nações na mesma época.

O salário de subsistência não está definido, portanto, apenas por razões de natureza física ou biológica relacionadas às necessidades e limites corporais das pessoas, mas é algo que tem um caráter social e histórico. Uma cesta de consumo que passe a ser considerada como básica pela sociedade tende a tornar-se uma força permanente. Essas observações são brilhantemente sintetizadas por Marx em seu panfleto “Salário, preço e lucro”. “Há certos traços peculiares que distinguem o valor da força de trabalho dos valores de todas as demais mercadorias. O valor da força de trabalho é formado por dois elementos, um dos quais puramente físico, o outro de caráter histórico e social. Seu limite mínimo é determinado pelo elemento físico, quer dizer – para poder manter-se e se reproduzir, para perpetuar a sua existência física, a classe operária precisa obter os artigos de primeira necessidade, absolutamente indispensáveis à vida e à sua multiplicação. … Além desse mero elemento físico, na determinação do valor do trabalho entra o padrão de vida tradicional em cada país. Não se trata somente da vida física, mas também da satisfação de certas necessidades que emanam das condições sociais em que vivem e se criam os homens … Esse elemento histórico ou social, que entra no valor do trabalho, pode acentuar-se, ou debilitar-se e, até mesmo, extinguir-se de todo, de tal modo que só fique de pé o limite físico … Durante a guerra contra os jacobitas, … os modestos fazendeiros ingleses … fizeram baixar os salários dos trabalhadores do campo para além daquele mínimo estritamente físico, completando a diferença indispensável para assegurar a perpetuação física da descendência, mediante a lei dos pobres” (Marx em Salário, Preço e Lucro).

Nesta concepção há, portanto, uma cesta de consumo considerada normal para a estabilidade da relação de compra e venda da força de trabalho no capitalismo. Esta cesta de consumo inclui as necessidades de ordem física e biológica dos trabalhadores e suas famílias, mas também um componente histórico e social, ou seja, um elemento relacionado aos costumes e hábitos de cada situação histórica particular.

Destaque-se ainda, da passagem, a referência ao fato de que a população “precisa obter os artigos de primeira necessidade” no mercado, a partir de um poder de compra nominal. Em circunstâncias vantajosas para os assalariados, em termos de um poder de barganha considerável e que resulte em um poder de compra crescente para os salários, naturalmente incorporam-se novos hábitos. Na medida em que novos itens de consumo antes vistos como luxo passem a ser consumidos regularmente, passam a compor o elemento histórico-social da subsistência. Em sentido oposto, em circunstâncias de baixo poder de barganha dos trabalhadores e perda de poder de compra dos salários, tendem a ser estabelecidas restrições ao consumo considerado costumeiro e, nessas condições, o elemento histórico social tende a ser debilitado.

Note-se que, em ambos os casos, este processo ocorre lentamente e requer que entrem em operação certos mecanismos de racionalização e naturalização. Considerando o caso do baixo poder de barganha e da debilitação do elemento histórico-social, a depender do grau de heterogeneidade das condições dos assalariados e da maior ou menor rapidez com que o processo avança, é possível que parte da população possa progressivamente ser exposta a condições que desafiem mesmo o consumo mais básico, relacionado mais com os limites físicos e biológicos. A neutralização do potencial desestabilizador, neste caso, fica por conta de diversos mecanismos de solidariedade ou de coerção ao nível familiar, comunitário ou estatal. Evidentemente que não se supõe tratar-se este de um processo harmônico e sim potencialmente bastante conflituoso. Ele não exclui por exemplo que grandes contingentes de pessoas possam ser simplesmente marginalizadas da sociedade, bastando que isto seja de alguma forma naturalizado e que não venha a desestabilizar o processo capitalista de produção.

Havendo, entretanto, algum tipo de interrupção mais drástica do processo econômico que inviabilize para os despossuídos em geral obterem uma renda monetária suficiente mesmo para adquirir os bens que correspondem ao elemento físico-biológico. Nesse caso espera-se que entrem em operação forças de autoconservação que possam evitar uma completa desestruturação social ou uma desorganização total do processo capitalista de produção. O risco de migrações em massa, saques e outros comportamentos violentos generalizados que ameaçam o próprio funcionamento do capitalismo tende a colocar em operação mecanismos mais generalizados e institucionalizados de defesa da subsistência justamente para evitar essas ocorrências ou ao menos evitar que se agravem.

Conforme observado acima, se os elementos estruturais são os mais permanentes, então eles exigem adaptação de outras circunstâncias quando a sua estabilidade se vê ameaçada. Se o nível convencional de subsistência é um elemento permanente do sistema, tendo em vista que a sua satisfação é uma condição necessária para a própria organização da sociedade, então é de se esperar que haja movimentos disruptivos em outros pontos do sistema, para defesa deste nível, diante de circunstâncias exógenas que o desafiem. Conforme se observou acima, para que haja mudanças no elemento histórico-social é preciso que persistentemente os trabalhadores deixem de ter acesso a certos bens e que haja um processo de racionalização e naturalização a respeito dessa condição. Já uma interrupção mais drástica do acesso aos bens que possa comprometer mesmo o elemento físico-biológico precisa provocar o sistema político a exercer uma força contrária, que garanta a estabilidade do nível de consumo. Veremos na próxima seção como o nível de subsistência foi desafiado recentemente no Brasil e como o sistema político reagiu defendendo essa força persistente do sistema.

Qual a relevância dessas observações feitas acima para o contexto brasileiro dos anos recentes? As condições precárias do mercado de trabalho brasileiro já antes da pandemia parecem aderentes à situação de uma pressão baixista sobre o nível do elemento histórico social da subsistência. O desemprego em alta desde 2015 estabeleceu uma redução contínua do crescimento dos salários nominais. As alterações da legislação trabalhista promoveram certa naturalização de condições mais precárias de trabalho e tornaram ainda mais difíceis as condições de barganha e de reclamações trabalhistas. Mais recentemente este cenário combinou-se com elevações significativas de preços de itens básicos para a cesta de consumo especialmente das famílias mais pobres. Para boa parte da população, portanto, o processo pelo qual certos itens de consumo antes corriqueiros passam a ser vistos como luxo já era uma realidade desde antes da pandemia e, de modo geral, não se alterou em absolutamente nada a partir dela.

Note-se que este processo de debilitação do elemento histórico social precisa ser investigado no contexto da distribuição do excedente e dos preços relativos. Neste artigo, entretanto, o foco é outro: uma força no sentido contrário se fez sentir a partir da percepção sobre a gravidade da pandemia e a necessidade de promover o isolamento social para conter a contaminação. Ainda que talvez menos intenso do que seria necessário tendo em vista os aspectos de saúde pública, o isolamento social acabou ocorrendo, especialmente no ano de 2020, e o curso normal de uma série de atividades econômicas formais e informais foi interrompido de forma bastante abrupta. Podemos cogitar que, no contexto de informalidade e precarização que tem caracterizado o mercado de trabalho brasileiro dos últimos anos, tal interrupção bem poderia ter comprometido a capacidade de satisfazer mesmo o nível físico-biológico do consumo de subsistência, especialmente para os trabalhadores informais e os autônomos, mas também para os trabalhadores formais de salários médios mais baixos que passassem à condição de desempregados.

Não foi isto, entretanto, o que ocorreu. Mesmo no contexto de um governo que diariamente naturaliza a miséria e que tem praticado uma política econômica cujo objetivo não é a recuperação da atividade econômica e do emprego, o sistema político acabou produzindo um notável consenso: o Estado precisaria viabilizar a continuidade dos fluxos monetários para satisfação de necessidades básicas enquanto isso fosse recomendável pelas condições de saúde. Vultuosos fluxos monetários foram avaliados como  pertinentes de serem concedidos durante o isolamento social e no contexto geral da pandemia. Foi autorizada a suspensão de contratos de trabalho para trabalhadores da iniciativa privada, com os salários sendo pagos temporariamente pelo Estado. Foram concedidos auxílios emergenciais que beneficiaram mais de 50 milhões de pessoas, segundo os dados oficiais. Foram realizadas importantes transferências a partir da União em direção aos entes subnacionais, para que não fossem interrompidos os fluxos de despesas, no cenário de frustração de suas receitas.

Não se deve subestimar a magnitude desses fluxos. De acordo com o Secretário do Tesouro Nacional daquele período, as despesas que corresponderam à resposta aos danos causados pela pandemia, somente em 2020, foram da ordem de R$ 539,4 bilhões, que representam 7,24% do PIB daquele ano. Em conjunto com os efeitos da crise sobre as receitas, isto produziu um déficit primário de cerca de 10% do PIB, uma abrupta elevação com relação aos 1,28% registrados em 2019.

Se tivesse algum fundamento o alarmismo fiscal tão popular em terras brasileiras, este processo deveria ter sido uma hecatombe. Se os fatos fossem importantes para as análises da conjuntura brasileira que são veiculadas pelos grandes jornais, muitos dogmas já deveriam estar em crise. Não houve qualquer problema com financiamento de dívida pública, como pregam os alarmistas fiscais. O Banco Central do Brasil demonstrou a total independência de suas decisões em relação à taxa de juros com respeito ao endividamento público. Seriam muitas as observações que poderiam ser feitas nesse sentido. Mas aqui se quer destacar não tanto as contradições do discurso econômico vulgar e sim os fundamentos desse processo enquanto reflexo de certas forças permanentes que vigoram no capitalismo. Especificamente, relacionadas ao nível convencional de subsistência.

De que modo, concretamente, se deu o processo que foi forte o bastante para jogar pela janela o suposto compromisso com a austeridade fiscal? Trata-se de uma questão bastante interessante, para investigação factual mais profunda. Mas parece bastante provável que o núcleo do processo no ano de 2020 tenha sido um compromisso entre o Estado e os grandes capitalistas para que, durante o período em que estes teriam suas atividades prejudicadas ou inviabilizadas pelo isolamento social, os salários dos trabalhadores formais fossem cobertos por recursos públicos, via mecanismo da suspensão de contratos de trabalho. Com a pressão advinda do Congresso Nacional refletindo os interesses de um conjunto mais amplo de forças, os benefícios acabaram estendidos para um contingente populacional bastante mais amplo, na modalidade dos auxílios emergenciais.

No caso da suspensão de contratos de trabalho e dos auxílios emergenciais, a relação com a noção convencional de subsistência parece bastante direta. Ao Estado coube garantir um fluxo monetário capaz de permitir o acesso a bens que constituem a subsistência dos beneficiários, na ausência dos fluxos normais que derivam da atividade laboral, enquanto não se restabelecessem as condições consideradas normais para o processo produtivo capitalista. Na medida em que a ocupação se recupera, mesmo sem qualquer reversão da tendência anterior de precarização e informalidade, a pressão pela continuidade dos auxílios emergenciais vai sendo diluída e estes poderão ser progressivamente reduzidos e/ou serem utilizados como instrumentos vulgares de sustentação de popularidade pelo atual governo.

Por fim, é interessante lembrar que o mesmo contexto político que decidiu pelos auxílios emergenciais e pela suspensão de contratos de trabalho resultou em autorização para importantes transferências realizadas pela União para os entes subnacionais. Entendeu-se que sem a possibilidade de endividamento que tem a União e com receitas frustradas pela crise da pandemia, os entes subnacionais teriam dificuldades para dar continuidade aos fluxos de despesas que, em última instância, viabilizam diversos serviços oferecidos à população. Seria este um processo totalmente alheio ao que foi dito até aqui? Na verdade, não. Basta perceber que também uma certa parte do consumo associado ao nível convencional de subsistência está mediado pelo Estado, incluindo os entes subnacionais. Se este aspecto não é claro ao leitor, basta pensar na centralidade que tem o SUS no contexto brasileiro, notavelmente explicitada na crise da pandemia.

A leitura aqui proposta oferece portanto uma dupla constatação: de um lado, as transferências extraordinárias para entes subnacionais também podem ser interpretadas como forma de garantir o consumo de subsistência mediado por esses entes, nas condições extraordinárias da pandemia; de outro, a permanente pressão por sobre esses entes é também um canal de debilitação do elemento histórico social da subsistência, na medida em que eles vão sendo obrigados a fazer escolhas restritivas sobre quais bens públicos e quais serviços vão oferecer, ou nos quais deverão concentrar-se. A suposta escassez de recursos no setor público é recorrentemente uma justificativa considerada válida para o sucateamento de equipamentos públicos e a desvalorização de recursos humanos e acaba assim funcionando como um dos diversos mecanismos de naturalização para a debilitação do elemento histórico e social da subsistência.

Desse modo, o quadro mais amplo dentro do qual se move a despesa pública no Brasil parece ser aquele que mantém a economia em uma trajetória de baixo crescimento econômico, baixo poder de barganha do trabalho e deterioração da oferta de bens públicos. Dessa forma o elemento social e histórico da subsistência vai sendo debilitado ou, ao menos, impedido de crescer. Mas é preciso alguma flexibilidade para mudar as regras quando rompe a necessidade de contrapor em alguma medida os graves problemas sociais que derivam desta condição e/ou as circunstâncias exógenas que ameacem desestabilizar o processo produtivo capitalista.

Espera-se que depois de ler essas linhas esteja mais claro que o nível convencional de subsistência é um conceito bastante útil para a interpretação de processos pertinentes às economias capitalistas contemporâneas. Interpretamos o caso do Brasil como uma situação de persistente debilitação do elemento histórico e social, dentro da qual a interrupção drástica do processo econômico acabou provocando forças na direção contrária, possivelmente defendendo o elemento físico e biológico para uma certa parcela da população. Mecanismos institucionais que garantem a assim chamada austeridade foram temporariamente abandonados para dar lugar aos fluxos monetários oriundos do setor público que sustentaram os níveis de consumo da população.

Não se vislumbra, por ora, uma potencial interrupção do processo mais amplo por alguma mudança mais drástica de política econômica que voltasse a produzir um ambiente em que ganhos reais de salários vão sendo incorporados aos hábitos e costumes. Diversos aprofundamentos e aplicações empíricas específicas do enfoque aqui utilizado – tanto no que diz respeito aos mecanismos mais especificamente econômicos do capitalismo, como a distribuição e preços relativos, quanto  da relação entre as ações do setor público e seus efeitos reais sobre a conjuntura econômica – são possíveis e necessários. Sem uma reflexão alternativa objetiva e independente sobre a conjuntura econômica, que dispute espaço com o discurso econômico vulgar, dificilmente se terá uma base social suficiente para executar uma política econômica que comece a amenizar os graves problemas sociais hoje vividos.

(*) Economista, Doutor em Economia pelo IE/UFRJ

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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