Opinião
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8 de novembro de 2021
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14:54

Os sinistros e os hipócritas (por Carlos Frederico Guazzelli)

Cercado de seguranças, Bolsonaro passeia pelo centro de Roma (Foto: Alan Santos/PR)
Cercado de seguranças, Bolsonaro passeia pelo centro de Roma (Foto: Alan Santos/PR)

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

Os acontecimentos dos últimos meses contribuíram para tornar menos confuso o panorama político brasileiro. Isto não significa, no entanto, que tenham desaparecido os riscos à nossa fragilizada democracia, tampouco que já se tenha restabelecido plenamente a estabilidade institucional – comprometida desde o afastamento ilegítimo da presidenta Dilma Roussef, há cinco anos, seguido da prisão e afastamento de Lula da corrida presidencial de 2018, e a lamentável eleição de Bolsonaro. O quadro apenas se tornou mais claro, sem que seja ainda possível prever com segurança o que virá. Senão, vejamos.

Dos fatos recentes o mais importante foi, sem dúvida, a tentativa inequívoca – e felizmente, mal-sucedida – do chefe do Executivo em cumprir as repetidas promessas de golpe, mediante as quais ele mantinha suas bases mobilizadas, especialmente nas chamadas redes sociais virtuais. Como se recorda, o malogrado putsch foi preparado durante meses, tendo como marco as comemorações do 7 de Setembro, em atos multitudinários chamados para a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, pela manhã daquele dia, e depois, à tarde em São Paulo, na avenida Paulista. Os pretextos invocados pelo governante de plantão, de grande poder mobilizador junto ao seu rebanho de adeptos, eram os supostos ataques que alegava sofrer de parte do Supremo Tribunal Federal, em especial devido ao seu comportamento criminoso em relação à pandemia que assola o país desde o início de 2019. 

Cabe lembrar também que, seja pela atenta reação institucional desencadeada a partir da Corte Suprema, e de parcela ativa do Parlamento; seja pelos movimentos que, finalmente, as chamadas elites se dispuseram a fazer em defesa do regime democrático – a pretensão ditatorial do “mito” gorou. Os anais da história da infâmia política não deixarão de registrar, a propósito, o ridículo de seu recuo, diante do medo de perder de vez o apoio dos reais donos do poder, ao se socorrer da ajuda do inefável Temer – chamado às pressas da paulicéia para redigir-lhe a primorosa carta, na qual prometeu respeitar doravante às instituições e obedecer às regras da vida democrática…

Desde então, o tosco personagem colocado no Planalto tem-se dedicado ao seu plano “b”, consistente em tentar, com o apoio parlamentar do chamado Centrão e o talento administrativo de Paulo Guedes, implementar medidas capazes de estancar a queda vertiginosa de sua popularidade junto ao eleitorado – devida, de um lado, ao negacionismo militante que ele exerce contra a ciência e as vacinas, no enfrentamento do vírus da Covid 19; e de outro, ao fracasso na condução da economia do país, que o tem levado a desemprego e miséria crescentes, e à estagnação da produção e do consumo.      

Assim, supõe o chefe miliciano que, mantida a coesão de sua fiel grei, acrescida dos eventuais beneficiários de suas políticas eleitoreiras, venha a atingir percentual do eleitorado capaz de levá-lo ao segundo turno das eleições presidenciais do ano vindouro, para enfrentar e derrotar Lula – contando para tanto, mais uma vez, com o anti-petismo de parcela da população.

É verdade que, até o momento, nem o tal “posto ipiranga”, com suas trapalhadas inacreditáveis, nem o presidente-candidato têm ajudado à implementação de seu projeto reeleitoral. Quanto ao último, aliás, parece inesgotável sua capacidade de ultrapassar qualquer limite do grotesco: não bastasse o papel canhestro que desempenhou na reunião anual da ONU, ao proferir discurso eivado de mentiras e fatos distorcidos, que não passaram despercebidos da atenta imprensa internacional – há poucos dias, em Roma, ele se prestou ao ridículo extremo de ser completamente ignorado pelos chefes de estado do G-20 lá reunidos, que não se dignaram a vê-lo ou cumprimentá-lo. 

  Como se não fosse suficiente tal papelão, o Boçal recusou-se a comparecer à reunião da COP-26, realizada em Glasgow, preferindo passear pela Itália, causando tumultos, sempre protegido pela polícia – numa demonstração cabal da consideração que ele e seu governo votam à preservação do meio ambiente. Em consequência, o Brasil, país-chave para reverter as mudanças climáticas, dada sua especial condição geográfica, foi lá representado somente pela sociedade civil – indígenas, ambientalistas, cientistas e até mesmo entidades empresariais responsáveis, preocupadas com a degradação ambiental. 

  Se é verdade que a qualidade desta representação supera em muito à dos atuais dirigentes governamentais, não o é menos que o comprometimento estatal é condição essencial para o êxito das medidas necessárias ao resgate da perigosa situação planetária atual. Mas, apesar disso, o dirigente máximo do país, fugindo de suas responsabilidades, preferiu se pavonear na Toscana…

Não por outro motivo, parte do establishment parece tê-lo deixado de lado, e se empenha em criar uma outra candidatura capaz de enfrentar Lula – de novo, fincado firmemente na preferência de mais da metade do eleitorado já decidido. Trata-se da construção da tal “terceira via”, tarefa que não resultou ainda em um nome com viabilidade eleitoral, e prossegue sob o conhecido método de tentativa e erro – com a sucessão de ensaios de nomes, que vão dos tucanos Dória ou Leite, até o ressuscitado ex-juiz-que-já-foi-ministro-e-quer-ser- presidente, passando por Ciro Gomes, cada vez mais à direita, Mandetta e, até mesmo Rodrigo Pacheco e Simone Tebet, francamente desconhecidos da população. Importa destacar que tais manobras, destinadas à escolha de candidatos, consideradas em si mesmas, são perfeitamente lícitas; entretanto, o discurso a elas subjacente, este sim, é perigoso e antidemocrático.  

Trata-se da falácia da “polarização entre os extremos”, alardeada diuturnamente pela mídia oligopólica, de forma tão desprovida de fundamento fático, quanto intelectualmente desonesta. Se existem hoje, na cena política de nosso país, apenas dois pólos opostos – o que, de resto, não é pacífico – eles diriam respeito à posição dos mesmos em relação à democracia: de um lado, o atual presidente e seus acólitos e aliados, empenhados na consecução de seu projeto de poder autoritário, concebido pela extrema-direita; e de outro, todos os demais atores, partidos, entidades e grupos políticos, interessados na preservação dos valores democráticos. E dentre estes, inclusive à sua frente – muito ao contrário do que, desonestamente, é sugerido pelos porta-vozes pressurosos das oligarquias poderosas – a esquerda democrática, seus movimentos, partidos e líderes, a começar, por Luís Inácio Lula da Silva.

Não há, pois, outra polarização concebível no atual quadro político brasileiro, e ela não se dá, de modo algum, entre os dois extremos do arco ideológico – porque nem o PT, nem os demais partidos do centro à esquerda, a saber, PSB, PDT, PC do B, PV e PSOL, podem ser apontados como extremistas. Ao menos, não seriamente. A mentira deslavada que busca sustentar a construção da tal terceira via, sequer é respaldada pela maior liderança liberal-conservadora brasileira – Fernando Henrique Cardoso – o qual recebeu recentemente o líder petista, de quem elogiou o compromisso com a democracia demonstrado em toda sua vida política, desde o passado sindicalista, até seus mandatos na Presidência da República.

Cabe lembrar neste passo, a entrevista feita há cerca de dez anos pelo ator britânico Stephen Fry, com um personagem já então famoso por suas qualidades – homofóbico e misógino, racista e fascista – e quando era ainda inimaginável o ato de demência coletiva praticado pelo povo brasileiro que, por estranhos sortilégios da política, guindou-o à primeira magistratura nacional, no ano de 2018. Visitante assíduo, amante e conhecedor de nosso país, o mencionado artista conversou pessoalmente com o então deputado Bolsonaro, em um prédio público do Rio de Janeiro, e no vídeo em que registrou a conversa, manifestou que ficou tão chocado com as declarações do entrevistado, quanto impressionado com o aspecto de seus asseclas – “as pessoas mais sinistras” que encontrou em sua vida.    

Hoje, conhecemos bem a quem ele se referia: são os queiroses e adrianos, os milicianos revelados à opinião pública desde a assunção de tão lastimável figura à cadeira presidencial – a quem servem, incondicionalmente, na condição mista de guarda-costas e assessores, cúmplices fiéis de “rachadinhas” e outros negócios escusos, investigados há bom tempo por agentes dos ministérios públicos e outros órgãos fiscalizadores.  

A plena e efetiva restauração democrática no Brasil depende hoje, portanto, da solução da perversa equação montada para as próximas eleições gerais, cujos termos consistem, de um lado, na horda sinistra comandada por seu “mito”; e de outra parte, nos hipócritas que o colocaram à testa do Palácio do Planalto, os quais, não o podendo controlar, pretendem agora substituí-lo por alguém que saiba se portar à mesa – para tanto fazendo uso da mesma farsa da ameaça extremista de Lula e o PT, nova versão do manjado expediente do anti-comunismo, a que sempre recorreram nossas elites rastaqueras.   

Felizmente, pelo que se percebe, o instrumento de superação deste dilema cruel, está ativo e em ótima forma.

(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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