Opinião
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10 de setembro de 2021
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10:43

Taxa de câmbio e suas complexidades: parte 2 – vulnerabilidade externa e atraso industrial (por Maurício Andrade Weiss)

 elevação da vulnerabilidade externa que pode levar a crises do balanço de pagamentos. (Foto: Pixabay)
elevação da vulnerabilidade externa que pode levar a crises do balanço de pagamentos. (Foto: Pixabay)

Maurício Andrade Weiss (*)

Este artigo é uma continuação da discussão sobre a complexidade da taxa de câmbio e sua importância na vida das pessoas. No primeiro, enfatizei os aspectos relacionados ao custo de vida e de como a taxa de câmbio os afeta, direta e indiretamente. No presente texto, tenho por objetivo destacar os problemas da manutenção da moeda sobreapreciada. São ao menos dois aspectos mais relevantes e que estão interligados. O primeiro deles é a tendência de elevação da vulnerabilidade externa que pode levar a crises do balanço de pagamentos (BP) e restrições externas ao desenvolvimento econômico e o segundo é a queda no investimento na indústria e perda de complexidade industrial. Antes de prosseguir, peço perdão ao leitor pelo caráter mais acadêmico que o usual deste artigo, mas foi a maneira que melhor consegui para tratar desse tema.

O problema da restrição externa já era percebido pela tradição cepalina. Prebisch (1949, 1951) demonstrou, a partir da análise da tendência de deterioração dos termos de intercâmbio e das diferenças entre as elasticidades-renda dos bens exportados e importados pelos países periféricos, que o comércio internacional, operando com base na lei das vantagens comparativas, propagaria desigualdade ao invés de convergência dos padrões de vida. Os desequilíbrios nas contas externas teriam caráter estrutural na periferia, consolidando um quadro de dependência e subdesenvolvimento.

Rodriguez (1981), em seu esforço de sistematização da economia política cepalina, sugere que existem características estáticas e dinâmicas que condicionam o desenvolvimento econômico dos países centrais e dos países da periferia. Dada a dinâmica peculiar de seu processo de desenvolvimento, os países periféricos tendem a se manter relativamente atrasados, o que se reflete na relação comercial desfavorável, implicando, assim, em restrições ao seu crescimento. 

O problema da restrição foi recolocado no debate acadêmico por meio das abordagens derivadas do pensamento de Kaldor e Keynes, particularmente na vertente de estudos inaugurada no final da década de 1970 por Thirlwall (1979 e Thirlwall e Hussain, 1982) e que fora aprimorada por Moreno-Brid (1998-99) e por uma diversidade de trabalhos posteriores. Thirlwall procurou demonstrar que o BP é um limitador ao crescimento econômico. Segundo o autor, existe uma restrição, no longo prazo, do BP sobre o crescimento econômico, pois à medida que uma economia cresce e se desenvolve, a demanda por importações se eleva, ocasionando déficits cada vez maiores em conta corrente e, possivelmente, no BP. Desta forma, o equilíbrio das contas externas condiciona o ritmo de crescimento desta economia. Como proposição fundamental, o autor afirma que nenhum país consegue crescer mais depressa que a uma taxa compatível com o equilíbrio do BP na conta corrente, a menos que possa financiar seus déficits cada vez maiores.

Neste sentido, Thirlwall e Hussain (1982) argumentam que uma economia pode incentivar a entrada de capitais para financiar um crescimento das importações maior do que a das exportações; contudo, financiar o BP pela atração de capitais externos por meio da liberalização financeira, aumenta a vulnerabilidade externa do país. Com base na literatura sobre hierarquia de moedas, compreende-se que os países emissores de moeda periférica são ainda mais suscetíveis a mudanças externas, mas isso é tema para outro artigo.

A relação entre a taxa de câmbio sobreapreciada e a vulnerabilidade externa é que a primeira tende a acentuar os problemas estruturais que levam à restrição externa. Gala (2007a) assinala que, ao contrário dos países do leste e sudeste asiático, os países latino-americanos e africanos adotaram por um longo período taxas reais de câmbio sobrevalorizadas, o que por sua vez resultou em seguidas e severas crises no BP. Em grande medida, tais valorizações foram decorrência da liberalização da conta financeira, que seriam necessárias para financiar os déficits acumulados na conta de transações correntes. 

Batista Jr. (1996) aponta que os países latino-americanos utilizaram a taxa de câmbio como uma função monetária, objetivando quase que exclusivamente a equalização da inflação doméstica com a inflação internacional. Os efeitos subversivos para a competitividade da indústria doméstica perante as concorrentes internacionais e os déficits excessivos na conta de transações correntes do BP eram ignorados em nome do combate à inflação. Diferentemente do que ocorrera nos endividamentos provocados por choques externos dos anos 1970 e início dos 1980 nos países da América Latina, os endividamentos nos primeiros anos da década de 1990 foram devidos às políticas macroeconômicas internas.

Rodrik (2007) argumenta que sobrevalorizações cambiais levam ainda a déficits em conta corrente, crises no BP e crescimento stop-and-go, inviabilizando um processo de crescimento econômico de longo prazo. Já Kregel (1999) entende que a política de manutenção do câmbio valorizado, além de prejudicar a competitividade doméstica e causar a deterioração na balança comercial, acentua os déficits na conta de transações correntes.

Existe uma série de artigos que ligam a taxa de câmbio à situação do saldo em conta corrente, principalmente por meio da balança comercial. Para citar apenas dois, Marçal, Monteiro e Nishijima (2009) concluem por meio de um modelo empírico que apreciações cambiais provocam efeitos (negativos) permanentes na balança comercial. Já em Weiss e Cunha (2011), encontramos argumentos de que a depreciação da moeda possui impacto positivo na balança comercial a partir do segundo trimestre e tendência de efeito positivo no longo prazo. Ambos os artigos não observaram uma piora inicial no saldo em transações correntes, efeito chamado na literatura econômica de curva J, pois a perda no poder de compra da moeda doméstica poderia provocar uma perda inicial em dólares. 

Retomando os principais elementos expostos, entende-se que a restrição externa é um fator determinante para limitar o crescimento e que a taxa de câmbio possui impacto no saldo em transações correntes no longo prazo. Ademais, abertura financeira com o objetivo de atrair capitais para sustentar o déficit em transações correntes é uma estratégia que torna o país ainda mais vulnerável externamente, pois deixa a economia dependente do contexto externo. 

Cabe neste momento buscar entender um pouco melhor como se dá esse mecanismo e quais os motivos para os fluxos de capitais não promoverem necessariamente o desenvolvimento econômico. Conforme argumenta Gala (2007b), câmbios sobrevalorizados provocam aumentos artificiais no salário real. Desse modo, o influxo de capitais, em grande parte de curto prazo, acaba por financiar o consumo, ao invés de serem criados investimentos e/ou condições para cumprir os compromissos futuros, o que por sua vez pode vir a gerar crises no BP.

Rocha e Oreiro (2011) identificam por meio de um teste empírico para 76 países entre 1980 e 2000, que um aumento no endividamento externo como proporção do PIB gera um aumento menos que proporcional na taxa de investimento, pois uma parcela significativa dos recursos advindos do exterior seria alocada em outros ativos que não bens de capital, tais como imóveis e ações. Ademais, o risco país seria endógeno ao nível de endividamento externo, ou seja, o próprio endividamento externo iria encarecer o custo de obtenção de novos recursos externos. Destarte, os autores concluem pela inadequação da ideia de que a poupança externa é uma estratégia adequada para a promoção do investimento. 

Por outro lado, não seria impossível que o endividamento externo levasse a um aprimoramento produtivo, inclusive tendo o potencial de redução da vulnerabilidade externa. Para isso, ao contrário do que ocorreu no pós-1990, Lamonica, Oreiro e Feijó (2012) argumentam que os recursos (funding) externos deveriam ser empregados em investimentos que proporcionassem uma mudança estrutural na atividade econômica, em especial nas atividades de maior intensidade tecnológica, no sentido de reduzir a elasticidade-renda das importações e elevassem a elasticidade-renda nos moldes do modelo Kaldor-Thirwall.

Um dos motivos para isso não ter ocorrido no Brasil seria o câmbio sobreapreciado. Segundo Oreiro, Basilio e Souza (2014), em 2013 a taxa de câmbio real estaria sobreapreciada em 48%. Esta conclusão se deu após uma análise com 30 setores do setor manufatureiro e da indústria extrativa. Este conceito de sobreapreciação significa que a taxa de câmbio estaria quase 50% acima do patamar que permitisse a tais setores serem competitivos internacionalmente o que, por sua vez, desestimularia o investimento nesses setores. 

Oreiro, D’Agostini e Gala (2020) fazem um exame das causas para o processo de desindustrialização e perda de complexidade econômica no Brasil. Analisando o período 1998-2017, os autores concluem que a desindustrialização no país ocorreu de forma prematura e não é decorrente da elevação da renda média, nos moldes que ocorreu nos países desenvolvidos nos anos 1970, mas sim como consequência da taxa de câmbio sobrevalorizada. Esta sobrevalorização, por sua vez, é decorrência da combinação da apreciação da taxa de câmbio real efetiva, a qual leva em conta o patamar da taxa de câmbio dos principais parceiros e concorrentes comerciais do país, com o aumento do nível exigido para a taxa de câmbio de equilíbrio industrial, decorrente da perda de complexidade da indústria doméstica.

Embora esse breve artigo não tenha a pretensão de ser um artigo científico, dada a característica desse espaço, buscou-se resgatar na literatura econômica elementos que auxiliem na compreensão sobre a problemática manutenção da moeda sobreapreciada por um período extenso, podendo levar inclusive a debilidades estruturais cada vez mais difíceis de serem revertidas. 

O texto seguinte pretenderá trazer o outro lado da moeda, isto é, como a taxa de câmbio pode exercer um papel, de forma complementar a outras políticas econômicas, na elevação da competitividade econômica do país, especialmente da indústria. Nesse sentido, além do patamar, a estabilidade da taxa de câmbio é outro aspecto fundamental e será igualmente tratado.

Referências

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(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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