Opinião
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10 de agosto de 2021
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11:17

Taxa de câmbio e suas complexidades – Parte 1: o custo de vida (por Maurício Andrade Weiss)

Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Maurício Andrade Weiss (*)

A taxa de câmbio é algo presente no cotidiano na vida de todas as pessoas, mesmo que não percebam. Todos os produtos e serviços são de alguma forma afetados por essa taxa. Os mais evidentes são os bens finais importados, como é o caso de diversos produtos eletrônicos. Já a produção doméstica dificilmente não contará com algum insumo importado. O caso mais comumente citado é o do pão francês, cujo trigo é um dos principais componentes e, entre janeiro e maio de 2021, foi o principal produto da pauta de importação do agronegócio brasileiro, chegando a US$710,90 milhões, de acordo com o Instituto de Economia Agrícola (IEA) e cuja importação atendeu mais da metade do consumo interno em 2020 (Conab) [1]. Mas mesmo que não tenha um insumo utilizado na produção, haverá muito provavelmente algum componente importado relacionado com o processo produtivo, como é o caso de sementes, fertilizantes e maquinários. A taxa de câmbio ainda pode afetar o custo intangível da produção, como é o caso de royalties e patentes. 

Há ainda as formas mais indiretas de afetar o custo envolvidos na produção e distribuição, como os custos de energia elétrica, do transporte e do salário. Em relação aos primeiros, a energia hidráulica corresponde a 61,4% da oferta, eólica 8,8% e gás natural 8,3% (MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA). A primeira que compõe a maior parcela da oferta das distribuidoras de energia elétrica é afetada indiretamente pela taxa de câmbio por meio da correção da Parcela B, a qual representa os custos diretamente gerenciáveis pela distribuidora e um dos componentes de ajustes é um índice de preço, IPCA ou IGPM, sendo este, como se verá a seguir, especialmente sensível ao câmbio (ANEEL). A energia eólica passou por acelerado processo de expansão da produção interna mais ainda conta com cerca de 20% de seus componentes importados diretos (Exame) e os outros 80% também contam com subprodutos importados. Já o gás natural tem no reajusto mensal do custo variável a inclusão da taxa de câmbio (CNI).   

Em termos de transporte, a atual política de preços da Petrobrás faz com que os preços dos combustíveis passem a ser altamente sensíveis à cotação da taxa de câmbio, pois está atrelado ao preço internacional em dólar. Desta forma, mesmo que os custos operacionais internos de produção e a cotação internacional do petróleo caiam, os combustíveis em reais podem vir a subir. 

Neste ano, os combustíveis e os ajustes na energia elétrica têm sido recorrentemente a principal fonte de pressão inflacionária. Para o primeiro trimestre 2021, os combustíveis assumiram o protagonismo, com alta de 7,09% e 11,23% nos meses de fevereiro e março, fazendo com que o item transporte contribuísse com 0,45 p.p. da alta de 0,86% do IPCA de fevereiro e com 0,77 p.p. da taxa de março, a qual registrou alta de 0,93. Após um comportamento mais brando no mês de abril, maio registrou nova alta acentuada da inflação, chegando a 0,83%, maior taxa para o mês desde 1996. A principal responsável foi a energia elétrica, com alta de 5,37%, decorrente da combinação de bandeira vermelha com diversos reajustes de concessionárias dentre os quais o ajuste pelo IGPM em algumas concessionárias. Com a alta da energia elétrica, o grupo habitação foi o de maior impacto no índice geral (0,28 p.p.) e o de maior variação (1,78%). Em junho o IPCA ficou em 0,57%, chegando a 3,77% no ano e de 8,35% nos últimos 12 meses. O maior impacto (0,17 p.p.) veio novamente do grupo habitação, cujos preços subiram 1,10%, sendo o da energia elétrica 1,95%. 

Embora existam outros elementos a pressionarem a inflação, a taxa de câmbio por estar envolvida em diversos fatores de ajuste é um aspecto essencial para essa alta. Isso ocorreu especialmente para os combustíveis no primeiro trimestre do ano, justamente nos meses que esse conjunto de preços mais pressionou o IPCA. A variação da taxa de câmbio mensal e no acumulado de 12 meses foi, respectivamente, de 4,08% e 29,08% em janeiro; 1,13% e 24,78% em fevereiro; e 4,24% e 15,61% em março. A menor acentuação no acumulado de 12 meses ao longo destes meses se deve principalmente a forte depreciação que ocorrera nos meses de março e abril de 2020. Neste período, o Brasil rivalizou com México e África do Sul como os países que mais tiveram sua moeda desvalorizada, com o real liderando em diversos momentos.

A alta dos preços, por sua vez, significa uma elevação do custo de vida das famílias e uma fonte de pressão por reajustes salariais, especialmente em contextos de baixo desemprego, que não é a situação atual do país. Todavia, vale observar que é um processo de retroalimentação. Desvalorizações da moeda nacional elevam os custos de produção e a inflação, encarecendo o custo de vida das famílias. Os trabalhadores passam a pressionar por ajustes nos salários e que, caso sejam bem-sucedidos, esta alta representará novos custos para as empresas e fontes adicionais para alta na inflação.

Uma outra forma da taxa de câmbio afetar os preços é por meio das exportações. A lógica é a seguinte, ao tornar os preços dos produtos domésticos mais baratos internacionalmente, há uma maior demanda por eles. Ademais, ao converter em reais, significa um maior ganho para os produtores/ofertadores desses produtos exportarem ao invés de vender no mercado doméstico. Desta forma, a pressão de alta nos preços ocorre de duas formas: i) por meio de redução da oferta para o mercado doméstico, o que, dada a demanda, tente a pressionar os preços; e ii) a depender do tamanho da demanda externa, os ofertadores irão colocar no mercado doméstico o mesmo preço que recebem do mercado externo ao converter os dólares recebidos por reais na taxa de câmbio vigente. 

A dinâmica descrita acima é um aspecto especialmente importante para o setor de alimentos, tal qual ocorreu em 2020. Além da alta nas cotações internacionais, a depreciação do real teve um papel determinante para que em 2020 a inflação de alimentos registrasse alta de 14,09%, sendo responsável por 2,73 pontos percentuais do total de 4,4% do IPCA. Desde março daquele ano, a depreciação acumulada em 12 meses sempre registrou patamares superiores a 24%, chegando a acumular 41,03% em maio. No relatório de inflação de março de 2021 do Banco Central do Brasil, apresentou-se um modelo para o período de 2003 a 2019 em que se estimou que a cada variação de 10% no câmbio, o impacto na inflação de alimentos chega a 1,4 p.p. em seu pico. Todavia, as mudanças nas condições de demanda externa no ano passado provavelmente fizeram com que esse repasse tenha sido maior. Ademais, modelos econométricos têm limites para captar todos os canais indiretos que o câmbio pode exercer sobre os preços. 

O impacto da taxa de câmbio sobre índices de preço se percebe ainda mais no IGP-M, o qual é utilizado em diversos contratos. Além dos supracitados relacionados à energia, é o principal fator de ajuste para aluguéis e ainda de uma diversidade considerável de contratos financeiros, principalmente se expandirmos para índices próximos, como o IGP-DI. O IGP-M, diferentemente do IPCA, tem 60% de sua composição baseado no Índice de Preços ao Produtor Amplo do Mercado, isso significa que ele é afetado por toda a cadeia produtiva, como os preços de matérias-primas, produtos intermediários e bens e serviços finais. O Índice de Preços ao Consumidor do Mercado (IPC-M) representa apenas 30% e o restante é Índice Nacional de Custo da Construção do Mercado. Ou seja, esse indicador é muito mais afetado pelos custos envolvidos no processo produtivo do que o IPCA, o qual muitas vezes não reflete todos os aumentos nos custos porque os preços são represados em contextos de baixa demanda, como o atual. Sendo assim, a taxa de câmbio tende a afetar mais intensamente esse indicador do que o IPCA. Essa diferenciação entre os indicadores ficou muito acentuada no ano passado, pois se combinou a forte depreciação do real com queda do nível da atividade econômica. Enquanto o IPCA fechou 2020 a 4,4%, o IGP-M registrou alta de 23,14%. Neste ano, a diferença permanece alta, mas a pressão sobre os preços finais a reduziu. No acumulado de 2021 o IPCA registra elevação 3,77% e o IGP-M 15,08%.

Até aqui se falou sobre os impactos da taxa de câmbio que atingem o custo de vida de um maior grupo da população. Mas há ainda o custo para quem pretende viajar para o exterior ou que venha a morar (sustentar alguém) em outro país, mas que ainda receba em reais. Neste caso, a taxa de câmbio que deve ser considerada em questão é a da taxa de câmbio turismo, também chamada de manual por ser aquela utilizada quando se pretende levar dólares em espécie. Essa taxa de câmbio é sempre mais alta que a oficial, ou comercial. A título de exemplo, para se fazer um contrato comercial a taxa de câmbio para venda em 09 de agosto de 2021, às 12 horas era de 5,27 e a do câmbio turismo para venda era de 5,44. Interessante observar que a diferença entre compra e venda é muito mais significativa para este tipo de câmbio, pois justamente aí que reside o ganho das casas de câmbio. Enquanto no comercial a diferença não chegava a 1 centavo, no turismo estava em 21 centavos.

O presente texto tratou de diversos aspectos que a taxa de câmbio afeta a vida das pessoas, mas focando em termos de custos de vida. Nesse sentido, dá-se a entender que uma apreciação do real frente ao dólar deva ser um objetivo da política econômica, especialmente a monetária. Todavia, a questão é bem mais complexa. A se começar pelos determinantes da taxa de câmbio, a qual nem sempre responde ao estímulo da política monetária. Além disso, deve-se levar em consideração a contrapartida dos dois últimos elementos trazidos: as exportações e o turismo. Ao tornar nossos produtos e serviços mais baratos para os não residentes, criam-se fontes de demanda, incentivando a economia e o emprego. Ainda há a possibilidade de substituição de importação por produção doméstica, algo já observado em 2020. Lógica semelhante vale para o turismo, o real depreciado torna o país relativamente mais barato para o consumo de turismo para os residentes, os quais são desestimulados para viajar ao exterior. 

Devido a essa maior complexidade das questões que envolvem a taxa de câmbio, as próximas duas colunas retomarão esse tema. A de setembro abordará sobre a importância da taxa de câmbio para as exportações, indústria, desenvolvimento econômico e emprego. Já a de outubro tratará sobre os determinantes da taxa de câmbio, destacando a questão dos fluxos financeiros e do mercado de derivativos. 

[1] Companhia Nacional de Abastecimento. Observatório Agrícola. Acompanhamento da Safra Agrícola. Grãos. Safra 2020/21. 7º levantamento. 

 

(*) O presente texto é o primeiro de uma série de três sobre a taxa de câmbio. Neste primeiro pretendo fazer uma contextualização sobre sua importância para a vida das pessoas, focando nos impactos sobre os custos dos bens e serviços consumidos pelas famílias.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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