Opinião
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7 de maio de 2024
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07:00

Para não temermos as colisões (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Isadora Machado e Manuela Sampaio de Mattos (*)

Na química, detritos são caracterizados como restos de substâncias, efeitos de um corpo desfeito ou deteriorado. Um resto residual que, ao sobrar, não necessariamente perde o seu valor enquanto matéria. Na geologia, por exemplo, o detrito, enquanto um fragmento de rocha, ao se soltar pode vir a se tornar uma outra coisa na natureza. Na psicanálise, o fragmento também ocupa um lugar importante, uma vez que esse elemento permite a Freud tanto escrever algo da experiência clínica (os conhecidos fragmentos de casos clínicos), como situar a sua escuta a partir do detalhe. Noções como as de corpo e memória, por exemplo, também adquirem valor, como fragmento, a partir de uma parcialidade.

O fragmento também é o detalhe que caracteriza a escrita de Vladimir Safatle em Alfabeto das colisões (2024), sua última publicação. O livro se organiza em torno de vinte e cinco verbetes, apresentados de maneira sequenciada, porém não da forma como conhecemos o alfabeto tradicional. Apesar de parecerem desordenadas, as palavras constituem uma sequência serial, um encadeamento que, a partir do fragmento que vai da letra à palavra, são transformadas em uma escrita crônica. Ou, como o autor mesmo escolheu chamar, “Filosofia prática em modo crônico”. Apesar de se propor como um alfabeto, o livro não funciona como um dicionário, mas como um tipo de abecedário que, ao levantar temas e assuntos de maior relevância, deixa como resíduo uma pergunta importante para o nosso tempo: o que mobiliza o agir?

Para ajudar a responder parcialmente a questão, outra palavra do texto se destaca, como um farol, ou um lampejo: colisões. Logo na introdução do livro, Safatle menciona que a procura em agir “significa falar sobre o que resiste ao cálculo, o que fragmenta. Como se as verdadeiras ações viessem inicialmente como uma forma de colisão, junto a escritas que tendem ao fragmentário” (p. 10). A colisão, portanto, surgiria como um tempo da ação, como uma temporalidade fragmentária sem a qual não se pode acessar nem o agir, nem a mudança. As colisões como parte e como tempo de uma elaboração que se pretende emancipatória. Deixar ressoar os fragmentos e recuperar gestos, como ele propõe, é uma aposta de que algo possa acontecer, “por confiança de que eles são pontos de uma constelação por vir” (p. 11). 

A irrupção deste tempo, no entanto, pressupõe uma responsabilidade com a memória, com um agir em resistência, sobretudo frente ao que é dominante e hegemônico, ou ao que responde a uma ideia de “progresso”, que sempre esteve alinhado, no curso da história, com práticas de violência, dominação e desumanização. Agir em nome da memória seria, portanto, um gesto ético, revelado a partir de uma construção que une passado, presente e futuro.

Nesse sentido, a escritora Conceição Evaristo acredita que trabalhar o passado é uma maneira de reivindicar uma posição de dignidade no presente, de afirmar as identidades (negras, neste caso) e preencher a lacuna histórica com ficção. A literatura, neste ponto, cumpriria a função de demarcar este buraco, e de inaugurar o que podemos chamar de tempo de contar. Mas, para isso, será preciso deslocar a “escrita de si mesmo” para a escrita de nós, que Conceição Evaristo conceituou e deu o nome de Escrevivência.

Voltemos agora ao verbete “X – incógnita”, proposto por Safatle, pois a reflexão crítica ali lançada pode produzir um diálogo interessante com Conceição Evaristo. Nesta crônica, encontramos uma importante discussão sobre um tipo específico de fala, o “falar de si”, inaugurado a partir de uma “modificação estrutural em nossas formas de vida” (p. 71)  que naturaliza a fala na primeira pessoa do singular obstinada a servir de exemplo a outros. A psicanálise, como um discurso fundado a partir da modernidade, partilha, de certo modo, desta construção, quando entende o falar de si como um pharmakos, como meio de capturar e elaborar algo da singularidade e da experiência desde uma temporalidade própria. Entretanto, como o próprio autor ressalta, a psicanálise também contribui para pensarmos de outra forma, na medida em que coloca em causa as diferentes posições enunciativas, os tropeços da fala, a presença do Outro e de outras vozes no si mesmo, vozes que “são uma universalidade de combate no interior de todo corpo singular” (p. 74). 

Num outro trecho, Safatle menciona que acreditar que a nossa fala é puramente nossa significa flertar com o delírio, pois isso significaria poder subtrair a dimensão do Outro que nos habita. O autor propõe não temermos assumir qualquer “insegurança ontológica”, buscando “explodir a primeira pessoa” para uma “desorientação política mais transformadora”.

Ater-se exclusivamente à narrativa em torno do romance familiar pode reduzir a escuta, a escrita, ou a fala, ao que Lacan chamou de “o mito individual do neurótico”. E, nesse sentido, pode-se até completar a frase: branco e heterossexual. A “fala de si mesmo” pode ser um engodo, no ponto em que se confunde com um falar para si mesmo, sem, necessariamente, abrir espaço para a dimensão histórica e de construção da memória de uma maneira mais ampla, coletiva. 

Em contrapartida, a escrita de nós aponta para um coletivo, para uma experiência histórica e menos individualizante. Podemos usar como exemplo a escrita e a fala de pessoas negras, que só há pouco tempo puderam inaugurar mais marcadamente o tempo de contar. Seja na aproximação com espaços de fala, seja na escrita, à medida que agora há o reconhecimento de que tanto a fala como as letras os pertencem legitimamente. Conceição Evaristo diz: “A escrevivência se realiza como um ato de escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres negras escravizadas tinha sua potência de emissão também sob o controle dos escravocratas, homens, mulheres e até crianças.”

Nesta escrita-fragmento, perguntamo-nos como também estão sendo inaugurados os espaços de escuta deste tempo de contar advindo das enunciações via primeira pessoa do plural. Escuta de outras cenas de escritura, de letras que embaralham os abecedários e provocam outras amarrações de nós. Entendemos que há um agir que nos convoca, o qual parece dever partir de interrogações que provocam colisões com os pactos que fazemos de modo a quase nos paralisar e ensurdecer. Entretanto, para que um despertar venha a desencadear um agir, será preciso um pouco mais.

EVARISTO, Conceição. A escrevivência e seus subtextos. In DUARTE, C. L.; NUNES, I. R. Escrevivência: a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. 

SAFATLE, Vladimir. Alfabeto das colisões: Filosofia prática em modo crônico. São Paulo: Ubu Editora, 2024.

(*) Isadora Machado é Psicanalista, membro da APPOA. Manuela Sampaio de Mattos é Psicanalista, membro da APPOA.

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