Economia
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12 de julho de 2021
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13:26

Privatizações, investimento público e crescimento econômico (por Róber Iturriet Avila)

Eletrobras, uma das empresas públicas privatizadas no governo Bolsonaro. (Foto: Arquivo/Agência Brasil)
Eletrobras, uma das empresas públicas privatizadas no governo Bolsonaro. (Foto: Arquivo/Agência Brasil)

Róber Iturriet Avila (*)

Diversas empresas estão em processo de privatização: CEEE, Eletrobrás, Correios, Sulgás, Corsan, BR Distribuidora e outras fatias da Petrobrás. Discute-se ainda a privatização da Carris e do Dmae. Houve também a extinção da Ceitec. Trata-se da quarta grande onda de desestatizações da história brasileira.

O debate sobre a importância de estatais deveria ser baseado na racionalidade iluminista e não no dogmatismo. Crenças não convivem bem com o mundo científico. A pressuposição  de que empresas estatais são ineficientes parte de hipóteses assumidas como autoevidentes. De outro lado, a suposição de que privatizar não é bom é apenas uma concepção de mundo.

Uma discussão fundamental é entender por que há estatais e qual foi a relevância delas na história brasileira. A edificação das estatais no Brasil ocorreu porque havia escassez de capital privado para dar conta das enormes carências do País. Além disso, diversos ramos que eram básicos não tinham lucratividade suficiente para atrair capitais. No início do século XX, o capital estava centrado no setor rural e não havia uma burguesia capaz de liderar a industrialização. Na Era Vargas, no governo JK e na ditadura militar houve elevado investimento público em energia, infraestrutura e em indústria de base. Dessa maneira, as estatais foram edificadas para dinamizar o crescimento econômico e para ofertar bens necessários à sociedade, que não necessariamente eram atraentes aos capitais. O Estado tomou a frente, face a uma “burguesia fraca”.

As estatais são justificadas também para a garantia de que determinados setores estejam sob a guarida coletiva, como os recursos naturais e setores tidos como estratégicos, como o de crédito e setor financeiro no geral. Na ideologia desenvolvimentista, as estatais são fundamentais para guiar o progresso nacional em determinado sentido pré-definido.

Já a ideologia liberal toma como pressuposto que as estatais são ineficientes, ao contrário das empresas privadas. Embora isso possa ser observado, não faltam exemplos de estatais bem geridas e de empresas privadas em falência por má gestão. Diga-se de passagem, que a gestão das estatais brasileiras está cada vez mais profissionalizada. Eventuais problemas com custos excessivos podem e devem ser corrigidos, tanto no setor privado, quanto no público. Jogar o bebê fora junto com a água de banho parece ser um caminho errado.

À toda sorte, após a década de 1980, na era neoliberal, cresceu a concepção de que o Estado é incapaz de investir, não é um bom administrador e não tem recursos suficientes para investir em estatais. A crença de que o mercado é mais eficiente consolida-se. Privatizar aumentaria a produtividade econômica, ampliaria a concorrência, equilibraria as contas públicas e, portanto, geraria crescimento econômico.

A despeito de crenças e preconceitos, não existem tantos estudos que comprovem o aumento da produtividade e a maior eficiência de empresas que foram privatizadas. Há críticas e elogios deste processo. Alguns setores colheram bons frutos e outros não.

Dada a amplitude deste tema, cabe focar a análise na principal variável que é determinante para todos os demais fatores relevantes para a sociedade: crescimento econômico. De acordo com a ideologia liberal, há uma competição entre o setor público e o privado pelo crédito. À medida que o Estado reduz gastos, há barateamento de crédito privado, o que oportuniza mais crescimento econômico. No caso inverso, o Estado expulsaria o investimento privado. É o efeito crowding out. Nesse prisma ideológico, há uma fé nos mercados: eles seriam suficientes para gerar pleno emprego, crises econômicas seriam autocorrigidas e as forças de oferta, de demanda e a formação de preços nos levariam ao Jardim do Éden. Com menos Estado, o espírito capitalista estaria mais livre para investir nos setores valorizados pelos indivíduos. 

Não há economista que discorde que a variável investimento seja a mais dinâmica da atividade econômica. Aumentar o investimento é determinante para o crescimento econômico e, consequentemente, para a melhoria de condições de vida média e para a obtenção de recursos públicos para suprir as demandas sociais. Dentre os argumentos e contra-argumentos, o aconselhável é observar o que ocorreu no mundo objetivo.

A sistematização de dados no Brasil iniciou-se em 1947. Desde então, os momentos em que houve crescimento da taxa de Investimento Público em participação do produto no Brasil foram entre 1956 e 1977, após este período até 2005, houve uma redução sistemática desta variável, conforme o gráfico 1. Entre 2005 e 2010, a taxa de investimento público voltou a subir, invertendo novamente no período posterior, sobretudo após 2015.

Fonte: Orair e Silveira (2018)

De acordo com a ideologia liberal, a redução do investimento público geraria aumento do investimento privado. Porém, quando observamos a taxa de investimento total no Brasil, verificamos que ele cresceu entre 1956 e 1975. Posteriormente, há uma trajetória de queda até 2004. Sobe novamente até 2010, entrando numa fase descendente, mais uma vez. O comportamento é extremamente similar à taxa de crescimento do investimento público.

Já a taxa de crescimento econômico foi mais intensa, com oscilações,  entre 1948 e 1962, entre 1968 e 1980, mas com trajetória de queda desde 1974. Entretanto, a variação da renda per capita traduz melhor as condições de vida média. A taxa de crescimento da renda per capita foi superior a 3% entre 1943 e 1980.  Houve crescimento importante entre 1968 e 1980, auge do estatismo, e uma retomada digna de nota entre 2004 e 2013.

Após a década de 1980, houve retração das taxas de crescimento econômico. Não foi o fim da ditadura que fez a taxa de crescimento econômico reduzir e sim a progressiva queda  da taxa de investimento total, empurrada pela retração da taxa de investimento público. Portanto, a redução dos gastos públicos e os processos de desestatizações não aumentaram a taxa de investimento, mas reduziram. 

Embora sejam muitas vezes lucrativas, as empresas estatais não visam necessariamente o lucro. Elas podem ter objetivos outros, como suprir necessidades básicas, atender ao coletivo, direcionar o desenvolvimento, gerar crescimento e emprego. Já as empresas privadas investem quando há expectativas de lucratividade, ou seja, no ciclo ascendente de demanda. Se há crise, independentemente do comportamento do défcit/superávit nas contas públicas, o investimento privado cai. À despeito das crenças subjetivas, o mundo real é repleto de crises do capitalismo. Nestes momentos, os indivíduos e as firmas retraem gastos e investimentos. 

Bom seria que, para além de ofertar bens desejados, as empresas privadas sempre investissem e fossem capazes de gerar estabilidade econômica, crescimento e emprego ad aeternum, mas essa é apenas uma utopia liberal. No mesmo sentido, a ideologia de que cortes de gastos públicos geram crescimento econômico não é observável no mundo real. A forma da economia voltar a ter crescimento e emprego é através de gastos públicos. Há mais de 200 anos essa ideia foi lançada, embora tenha sido teorizada com mais consistência após a Grande Depressão.

As utopias liberais deram guarida a um emaranhado fiscal extremamente restritivo no Brasil. Há quatro grandes regras fiscais que impedem o Estado de gastar. Em momentos críticos, como o atual, é preciso recorrer a novas leis excepcionais para permitir que haja gasto público, a fim de irrigar a atividade econômica. O mercado não tem sido capaz de, sozinho, gerar o volume de investimentos necessários para que haja a muito falada, mas pouco observada, recuperação da economia. É preciso recurso público para fazer políticas anticíclicas. Frente às restrições orçamentárias, as estatais configuram-se como a grande saída para gerar demanda na economia, já que suas despesas são menos regradas do que os orçamentos governamentais.

À medida em que abdica-se de ter empresas estatais, os governos perdem capacidade de influenciar a atividade econômica, leia-se, gerar empregos em momentos de crises. Para quem acredita no papai noel, no coelho da páscoa e na mão invisível, uma situação de crise seria corrigida pelos oniscientes mercados. Para quem observa o mundo como ele é, imagina-se que a progressiva redução da atuação do Estado reduzirá a dinâmica econômica, como ocorrido desde 1980 (neoliberalismo), a despeito de soluços, geralmente verificados quando o Estado volta a investir. 

No mundo da racionalidade científica, há cautelas para efetuar afirmações. Os ignorantes têm certezas, os cientistas têm dúvidas. Afirmava-se que o corte de gastos públicos geraria crescimento econômico e emprego. Desde 2015, esse tem sido o mote da política econômica. Embora haja pouca evidência empírica que corrobore essa ideia, a cautela científica nos aconselhava a esperar o que ocorreria. Se o resultado tivesse sido positivo, os críticos da austeridade fiscal estariam sujeitos a dar a mão à palmatória e admitirem que estavam errados. Contudo, a realidade objetiva que temos é de crise, recessão, desemprego, volta da fome, aumento da desigualdade. A agenda da austeridade fracassou!  Apenas o pensamento mágico e a fé podem nos fazer manter uma concepção de que a continuidade neste caminho trará resultados diferentes. Entre o dogmatismo religioso e a busca da observação concreta do mundo real, a racionalidade científica nos indica o segundo caminho e este tem nos mostrado que os resultados da agenda de austeridade não são bons. 

Referência

ORAIR, R. O.; SIQUEIRA, F. F. . Investimento público no Brasil e suas relações com ciclo econômico e regime fiscal. Economia e Sociedade (UNICAMP), v. 27, p. 939-969, 2018.

 (*) Professor de Economia da UFRGS, diretor do Instituto Justiça Fiscal. Youtube.com/roberiturriet.

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