Opinião
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20 de julho de 2021
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10:30

Pedagogias da vida quotidiana: o que se aprende e o que desobedece (Coluna da APPOA)

Saída da Escola no século XVIII, segundo Augustin-de-St-Aubin (Reprodução)
Saída da Escola no século XVIII, segundo Augustin-de-St-Aubin (Reprodução)

Alfredo Gil (*)

Em 2014, escrevi neste mesmo espaço uma coluna a respeito da dificuldade encontrada pelos pais para educar seus filhos. Dizia que, na prática psicanalítica, acolhemos pais – às vezes bastante desamparados – que pedem ajuda, por exemplo, para estabelecer um julgamento sobre uma atitude de autoridade necessária diante da desobediência do filho. Chamava também a atenção sobre a objetividade com a qual suas questões eram formuladas, exigindo respostas com o mesmo nível de concretude. Tarefa impossível para qualquer psicanalista: não por uma questão de competência, mas pelo caráter inerente a qualquer relação ( inclusive entre pais e filhos ), a qual se constrói com uma parcela de subjetividade, ativa na apreensão da realidade.

Em outros termos, a dita realidade sempre tem no seu enquadramento um ângulo subjetivo. Retomando o exemplo acima: não são raras as situações em que o emprego da autoridade coloque os pais num impasse, uma vez que conflitos desse tipo criam o temor de serem menos amado. E é aí que se infiltra o que podemos chamar de subjetividade, nesse caso sob a forma de culpabilidade. Logo, qualquer ofício que pretenda resolver a equação autoridade vs amor (como no exemplo) com uma solução exata, sem resto, ou seja, que não tome em conta o desequilíbrio emocional que ela implica, será uma resposta enganosa. Porém, hoje em dia, e já há algum tempo, existem “sábios” conselhos propostos por especialistas de nosso tempo, que vêm se multiplicando e que parecem ter esta pretensão: é o caso, por exemplo, dos coachs, que educam os pais a educarem os filhos. Essa tentativa de objetivação da existência, que tende a equacioná-la com o emprego de um manual de instruções, nos remete ao respaldo que vem ganhando o  “psi” que se dedica ao comportamentalismo.  

No mesmo estilo, de modo paroxístico, me debrucei em 2019, aqui também, sobre um documentário que tratava da vida sexual e amorosa no Japão. Nele, mais do que uma forma de mercantilização da vida amorosa e sexual, em diferentes âmbitos da vida emocional dos japoneses, temos relatos de como aprender o que é ser uma namorada, alugando um namorado por uma tarde, o que é ser uma noiva, pagando uma agência que organiza inteiramente a cerimônia de casamento e dispensando a presença do noivo, e o que é ter as sensações físicas de um carinho, de um abraço, ou repousar a cabeça sobre as pernas de uma menina. Neste último, os contatos físicos são escolhidos por um jovem num cardápio que apresenta também o preço de cada serviço. O jovem, que finalmente diz ter apreciado a experiência, admite preferir de longe suas heroínas dos videogames. O que observamos enfim é uma série de aprendizados performativos, que buscam responder o que e como fazer para se relacionar afetivamente; qual é a postura, o comportamento que me dará acesso a dita experiência.

De fato, não temos razão para pensar que mesmo as relações – como a atração entre dois corpos sexuados – sejam evidências inatas, inscritas em nossos genes, ou simples reação instintiva, e que tais encontros dispensariam uma aprendizagem. No entanto, vale acrescentar uma dificuldade suplementar a esta observação, lembrando que não existe adequação entre desejo e objeto de satisfação, ou seja, o que anima meu desejo será outra coisa para o outro, além do fato de que esta volubilidade das relações objetais que nos caracteriza é fontes de sensações, emoções e sentimentos múltiplos. Essas são considerações que valem tanto para as zonas de prazer como de desprazer.   

Uma ilustração que extrapola o que aqui avançamos pode ser lido em um seminário do psicanalista Jacques Lacan, no qual recorda de um menino que quando recebia um tapa perguntava: “ é um carinho ou uma bofetada ? ” Se a resposta fosse uma bofetada, o menino chorava, e ficava encantado se lhe dissessem que era um carinho. A experiência clínica nos faz confrontar-nos com situações desconcertantes, nas quais o enlace que garante a concordância entre sensação corporal, sentimento egóico, que qualifica a experiência, e a intenção da ação do outro, não é uma evidência ou, como dizíamos acima, não é algo inato ou “natural”. Em outros termos, o fogo sempre queima aquilo que se aproxima, mas a dor só machuca se houve concatenação de diferentes registros dependentes de operações psíquicas particulares. Trata-se de operações graduais e complexas, que se acrescentam, se modificam, mas se cristalizam igualmente desde o nascimento. No entanto, será que podemos afirmar que consistem em uma aprendizagem ?  

Ora, consciente de que estamos aproximando fenômenos heterogêneos em seus fundamentos, lembramos, numa dimensão sociológica, que o processo civilizatório do ocidente deu-se por uma forma de educação estabelecida em uma série de manuais de boas condutas que se multiplicaram já  no Renascimento e cujas aplicações aceleraram-se no século XVII, segundo Norbert Elias.  

Os manuais de boas condutas da “Sociedade de Corte”, analisados pelo sociólogo alemão, os quais ensinavam como se comportar à mesa, como se lavar, assoar o nariz, etc., prescreviam hábitos que se introjetaram ao longo do processo civilizatório. Seria possível então postular uma aproximação entre tal pedagogia e as instruções dos coachs, que ensinam os pais a educar os filhos, os meninos e meninas a paquerar, a gozar e orientam o que fazer e o que evitar num encontro ?  

Sim e não.

Sim, na medida em que o sujeito teria uma postura a assumir em função do aprendizado que lhe é transmitido; o outro sabe o que é melhor para mim e me sirvo como modelo para as minhas aquisições.

Por outro lado, sobre um ponto essencial, não. Os manuais das boas maneiras respeitados inicialmente no meio aristocrático europeu tinha por intuito domesticar hábitos existentes. Uma tal mudança nos costumes impunha uma forma de contenção interna sobre comportamentos já existentes considerados como desagradáveis e repugnantes. O ganho civilizatório deve-se ao fato de que a “boa atitude” era respeitada sem a necessidade de uma “polícia” do comportamento. Como indicamos anteriormente, o processo dito civilizatório em questão acontece por introjeção, isto é, o manual de instruções encontra-se interiorizado e automatizado na sua aplicação; razão pela qual Norberto Elias convoca em seus exames uma instância freudiana conhecida do grande público: o supereu, essa voz que tem sua origem externa, mas que, uma vez introjetada, dispensa a guarda externa. E sua desobediência gera culpabilidade.

Enfim, podemos representar o conflito moral diante de tais exigências, em cada um de nós, da seguinte maneira: o Eu ouve “transgrida” enquanto enquanto um Outro neste mesmo Eu o ameaça de punição em caso de transgressão. Mas toda tomada de decisão, seja dando asas aos devaneios transgressivos ou aos atos culpabilisantes, tem por palco (ou tribunal) elucubrações  e ruminações internas ao sujeito. Em outros termos, a decisão é uma resultante entre o monólogo interno ao sujeito e as exigências da realidade externa. 

Ora, aquele ou aquela que se estende no divã em busca de compreensão relativa a seu sofrimento é herdeiro desta organização subjetiva. Ele desconhece a razão de suas dores, mas não ignora que os impasses diante da realidade não estão isolados do drama interno. Logo, ele é convidado a questionar quais são as vozes que o agitam e se contradizem. Compreende-se, assim, por que numa análise a presença essencial do psicanalista pode situar-se fora do campo visual do paciente. Pois, se a palavra é endereçada ao psicanalista, os interlocutores não se reduzem a ele. 

Atualmente, o embasamento pretensamente científico dos manuais de instruções comportamentalistas é a neurociência. Nossos comportamentos nada mais seriam que a transcrição externa de agenciamentos neuronais. Nessa perspectiva, a fala torna-se acessória, a lingugem está infestada de erros e nos induz a enganos. Estaríamos assim dispensados (aliviados, talvez) de pensarmos sobre a consequência de nossas escolhas, decisões e atos. 

Que haja uma ideologia que se propaga hoje neste sentido parece incontesvel. Basta lembrar que o prêmio Nobel de Economia de 2017, Richard Thaler, anda de mãos dadas com um psicólogo, Daniel Kahneman, que fundamentou as bases cognitivas do comportamento econômico, aprofundado por aquele. Thaler admite a irracionalidade da conduta humana e, por isso, desenvolveu uma teoria da economia comportamental que pretende nos ajudar a fazer as boas escolhas (vide teoria do “nudge”).  Essas crias da cúpida escola de Chicago estão longe da ética de um John Keynes, para quem havia uma autêntica preocupação com o coletivo e que, para elaborar uma teoria geral econômica, tomou amplo conhecimento de seu contemporâneo, S. Freud, na medida em que este descrevia as falhas e faltas próprias a nossa economia libidinal necessária à emergência do desejo, mesmo que seja de consumo. 

Tratar esta falta – que Freud identificou – como uma falha que deve ser obturada pela via de uma reeducação ortopédica do sujeito, estabelecendo um circuito comportamental, pode ser falacioso. Cabe a cada um decidir o modo como pretende incluir em sua vida o que lhe constitui. Algumas coisas aprendem, outras insistem em desobedecer, recusam-se a serem domesticadas. Nas relações entre pais e filhos, entre amantes, na vida profissional, ou no que quer que seja, sempre teremos um descompasso entre os envolvidos, e esta dissonância não deve-se ao encontro entre duas ou mais pessoas, pois ela existe estruturalmente em cada um de nós. Neste sentido, o semelhante serve, por vezes, como um intervalo, um descanso para os desafios pessoais e subjetivos de cada um.  

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]  

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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