Opinião
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24 de julho de 2021
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11:41

O realismo mágico nos assombra como uma tragédia humana (por Glauber Gularte Lima)

Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas

Glauber Gularte Lima (*)

El problema de la independência
no era el cambio de formas,
sino el cambio de espíritu. (…)
La colonia continuó viviendo en la república;
José Martí

Em 1982 o escritor colombiano Gabriel García Márquez foi agraciado pela academia sueca com o prêmio Nobel de Literatura. A concessão da mais alta honraria literária mundial foi em razão da obra Cem Anos de Solidão. Na oportunidade, em seu discurso intitulado A Solidão da América Latina, ele fez uma declaração surpreendente para o mundo. 

Esse mestre do chamado realismo mágico disse que muito pouco havia pedido à imaginação para criar aquela narrativa fantástica. E que o desafio maior havia sido a dificuldade em fazer com que acreditassem que aquele universo exuberante de personagens e acontecimentos fora espelhado em episódios da vida real. 

Quase quarenta anos depois desse memorável discurso, continuamos vivendo em um realismo mágico que se confunde com um filme de ficção. No Brasil, padecemos há muito tempo uma verdadeira guerra civil não declarada. A cada ano mais de quarenta mil pessoas são assassinadas. A metade são jovens de até 29 anos. A imensa maioria negros (73%). 

O conceito de tolerância zero importado dos EUA produziu o encarceramento em massa, a maior parte por tráfico. Não é de graça que Estados Unidos e Brasil possuem a 1ª e 3ª maior população carcerária do planeta. E essa lógica, além de ineficaz, robusteceu sobremaneira o crime organizado dentro das penitenciárias brasileiras. 

A violência e a criminalidade formam um espiral diabólico que tem suas raízes na absurda realidade social dos pobres. Ninguém nasce bandido. Mas os ricos não estão nem aí. São Paulo tem a maior frota de helicópteros do planeta, à frente de Nova York e Tóquio. Uma viagem de uma hora nessas aeronaves custa em média R$ 2 mil. Os condomínios privados dos milionários são verdadeiras cidades, isolados da trágica realidade em que vive a população. É uma minoria que habita outro mundo. 

E talvez a maior vitória do poder dominante seja ter conseguido inocular na cabeça das pessoas a convicção de que essa é uma realidade para a qual não há solução. Se você não deu certo na vida, não é porque as adversidades são gigantescas para os que vivem no andar de baixo da sociedade. É porque você não foi capaz de enfrentar as dificuldades e vencer. 

A ideologia do empreendedorismo dissemina o individualismo e a competitividade como valores determinantes para o sucesso. A culpa de seu fracasso não é mais de um sistema perverso, que concentra renda, patrimônio e poder nas mãos de poucos. A culpa é sua, que não se qualificou para aproveitar as oportunidades que o deus mercado lhe ofereceu.

No Brasil, 0,5% da população concentra quase a metade de toda a riqueza produzida no país. Considerando que ela é um produto social, ou seja, não se realiza na esfera exclusiva do trabalho individual, estamos diante de um saque de gigantescas proporções. Em consequência disso, temos 27 milhões vivendo abaixo da linha da pobreza. Qual sociedade no mundo consegue se desenvolver com esse padrão de selvageria social? Para que alguns poucos possam viver como reis da Babilônia, milhões não sabem se terão um prato de arroz e feijão no dia seguinte. Isso é insustentável.

Quando se fala em revolução democrática, significa completar as tarefas de consolidação de uma república que a elite brasileira jamais o fará. O estamento que domina a economia, as finanças e a formação de opinião expressa uma concepção de mundo que remonta ao século XIX. 

Eles deram o golpe na presidente Dilma Rousseff não porque estivessem com o seu patrimônio e riqueza ameaçados. Ao contrário, ganharam muito dinheiro durante o vigoroso ciclo de crescimento econômico dos governos petistas. O insuportável para eles foi a ampliação de direitos e ter de conviver com o povo em lugares que antes lhes eram quase exclusivos, como aeroportos, shoppings centers e conceituadas universidades públicas. 

O país deles é uma ilha da fantasia sustentada às custas de trabalho alheio. E eles jamais abdicarão de braços cruzados de seus privilégios. Só o povo organizado poderá algum dia se libertar dessa gente e construir um país moderno e digno para se viver.

(*) Glauber Gularte Lima é professor.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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