Opinião
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24 de julho de 2021
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07:58

Mudança estrutural, crescimento e dinâmica social: uma composição positiva difícil, mas necessária (por Ricardo Dathein)

Desemprego elevado e queda de renda agravam problema da desigualdade. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Desemprego elevado e queda de renda agravam problema da desigualdade. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Ricardo Dathein (*)

Para que ocorra desenvolvimento econômico e social, concomitantemente e sustentavelmente, há necessidade da ocorrência de três processos: (1) mudança estrutural positiva e contínua na economia, (2) crescimento econômico substancial e (3) políticas sociais e distributivas amplas.

A mudança estrutural progressiva é um processo de sofisticação e complexificação da produção e das exportações, gerando maior produtividade e crescimento econômico elevado, sustentável e disseminado por amplos setores. Isso permite mudanças importantes no mercado de trabalho, com geração de mais e melhores empregos produtivos. Além disso, permite o aumento das oportunidades de investimentos e de lucros aos empresários. A medida mais simples e representativa é a participação do setor manufatureiro no PIB, tendo em vista a capacidade que esse setor possui de dinamizar a produtividade da economia como um todo, a tecnologia, as exportações e o mercado de trabalho, entre outros.

O crescimento, que pode ser medido pela variação do PIB, gera maior dinamismo no mercado de trabalho e maiores receitas tributárias, permitindo a adoção de políticas econômicas que estimulem o crescimento e a mudança estrutural, além, e fundamentalmente, de sustentar as políticas sociais.

As políticas sociais e distributivas podem ser medidas pela existência de mecanismos de distribuição dos ganhos de produtividade (via salários diretos e indiretos), pela política tributária (progressiva) e pelos gastos sociais, fundamentalmente com políticas universalizastes (não apenas focalizadas).

Durante o período Desenvolvimentista da economia brasileira houve importante mudança estrutural positiva, com o crescimento da participação da indústria. As manufaturas aumentaram seu peso no PIB de 14,5% em 1950 para 19,1% em 1976, ficando em 18,8% em 1980. O crescimento da indústria também estimulou o setor de serviços, ocorrendo um intenso processo de urbanização. Com isso, o crescimento econômico foi de 7,4% ao ano, em média.

No entanto, esse processo foi muito desigual. Por um lado, ampliou-se fortemente a classe média, mas também houve aumento da concentração de renda. Durante a ditadura militar, a desigualdade cresceu e os indicadores de pobreza permaneceram estáveis em altos patamares. Como medida de desigualdade, o índice de Gini (que varia entre 0 e 1, crescente com maior desigualdade de renda) permaneceu em um patamar médio elevado de 0,60 entre 1976 e 1985. A taxa de pobreza manteve-se em um alto platô (42,3% médio para 1976-1985). De outra parte, a taxa de extrema pobreza ficou em patamar médio de 18,6%, no mesmo período.

Portanto, houve mudança estrutural positiva e crescimento econômico substancial, mas os resultados sociais foram negativos, tendo em vista que as políticas sociais foram muito débeis. Ou seja, os processos 1 e 2 foram positivos, mas o 3º foi negativo.

Durante o período Neoliberal, de 1990 a 2002, o desempenho da estrutura econômica foi negativo. Na chamada década perdida, de 1980, a indústria perdeu 3 pontos percentuais no PIB. Depois disso, na fase Neoliberal, o peso das manufaturas, que era de 15,8% em 1990, reduziu-se ainda mais, para 13,8% em 2002. De outra parte, e por consequência, o PIB cresceu apenas 2,0% ao ano entre 1990 e 2002. Com isso, o mercado de trabalho teve fraco desempenho, com grande aumento do desemprego.

O gasto social cresceu com as obrigações impostas pela nova Constituição de 1988. No entanto, entre 1990 e 2002 o Gini médio foi de 0,60%, mantendo-se em um elevado platô. A pobreza continuou em altos patamares até 2003, mas houve uma importante mudança com o Plano Real, derivada da forte redução da inflação. A pobreza reduziu-se de 43,0% em 1993 para 35,1% em 1995, enquanto a pobreza extrema diminuiu de 20,3% para 15,2% entre esses anos. O problema é que esse foi um efeito único, não gerando trajetória declinante. Assim, entre 1995 e 2002 as taxas de pobreza e de extrema pobreza permaneceram em patamares médios de 34,9% e de 15,0%, respectivamente.

Portanto, os processos 1 e 2 foram negativos, enquanto o 3 foi positivo, de forma significativa, apenas com a redução da inflação. Apesar dos esforços derivados das políticas sociais da Constituição, o fraco desempenho da estrutura produtiva e do crescimento econômico não permitiu resultados superiores para o processo 3.

Durante o período petista, de 2003 a 2016, a dinâmica da estrutura econômica continuou com fraco desempenho. A participação da indústria de transformação no PIB ficou mais ou menos estável no governo Lula, até 2008, tendo até crescido um pouco em alguns anos. Mas acabou tendo em 2008 a mesma participação de 2002, 13,8%. Após esse ano, no entanto, a redução foi forte, chegando a apenas 10,8% em 2015.

O crescimento do PIB foi, em média, de 3,0% entre 2003 e 2015 (ou de 4,0% entre 2004 e 2013), com fortes estímulos externos e internos, apesar do fraco desempenho da estrutura produtiva. Com isso, o mercado de trabalho gerou muito mais empregos e os salários elevaram-se.

As políticas sociais foram muito acrescidas. Como consequência, o índice de Gini apresentou queda, depois de décadas de estabilidade em altos patamares, passando de 0,59 em 2002 para 0,52 em 2014, com média de 0,55 (2003-2014). As taxas de pobreza entraram em trajetórias de forte redução a partir de 2003. A pobreza evoluiu de 35,6% em 2003 para 13,3% em 2014. A taxa de extrema pobreza reduziu-se, no mesmo período, de 15,2% para 4,2%. Nesse último caso, havia inclusive a expectativa de que, em alguns anos, ela poderia ser eliminada.

Ou seja, enquanto o processo 1 foi negativo, os processos 2 e 3 foram positivos. O problema, no entanto, é a baixa sustentabilidade das medidas 2 e 3, tendo em vista o fraco desempenho da medida 1.

No período atual, do Ultraliberalismo, a participação da indústria no PIB está mais ou menos estável em seu pior nível histórico (desde 1947), de 10,6% em 2016 a 10,5% em 2020. O crescimento do PIB foi, em média, 0,6% negativos nos 5 anos entre 2016 e 2020. Com isso, o mercado de trabalho apresentou resultados ruins, mesmo antes da pandemia, com forte crescimento do desemprego.

Em termos sociais, houve uma série de medidas de cortes de gastos, menos na pandemia. O índice de Gini voltou a subir, de 0,52 em 2015 para 0,54 em 2019, revertendo a tendência anterior de redução. Em termos de indicadores de pobreza, também se inverteu a trajetória de diminuição. Com novos padrões de medida, o IBGE constata que a taxa de pobreza subiu, entre 2015 e 2019, de 23,7% a 24,7% (rendimento domiciliar diário per capita inferior a US$ 5,5) ou de 10,7% a 12,2% (idem para US$ 3,2), enquanto a extrema pobreza elevou-se de 4,9% a 6,5% (idem para US$ 1,9).

Ou seja, todos os 3 processos (mudança estrutural, crescimento econômico e políticas sociais e distributivas) necessários para o processo de desenvolvimento, apresentam atualmente dinâmicas negativas.

Assistimos, assim, a um longo processo de piora da estrutura econômica, já há mais de 40 anos, resultando em médias de crescimento econômico muito baixas e na insustentabilidade das melhorias sociais. Esse processo corroeu não só a economia, mas acabou por minar a própria democracia.

No Ultraliberalismo, por um lado, ambas as dinâmicas, econômica e social, estão sendo deixadas nas mãos do mercado. Assim, assistimos hoje, por exemplo, o retorno da esmola como “política” social. Por outro lado, a política foi tomada pelas “castas” burocráticas militares e jurídicas, aliadas aos empresários e religiosos políticos. Temos, portanto, a proposta de um governo tecnocrático de “sábios” juristas e militares, mas que ao mesmo tempo acreditam piamente na propriedade do Estado mínimo, o que é algo substancialmente contraditório.

O desenvolvimento ocorre se os meios de produção se desenvolvem concomitantemente a uma dinâmica das relações sociais que garanta que as mudanças estruturais (econômicas e sociais) sejam dirigidas conforme as demandas sociais. Assim, os três processos aqui analisados (dinâmica estrutural, crescimento econômico e evolução social) são inseparáveis, podendo e devendo evoluir positivamente em paralelo. A sociedade brasileira ainda não conseguiu alcançar esse padrão. No contexto atual, do Ultraliberalismo, temos a pior composição. Como logicamente não pode dar certo (a não ser para muito poucos), só se manterá de forma autoritária, e cada vez mais. Com o ideal da exclusão da política da maioria do povo, o resultado não pode ser outro que um dos maiores desastres da história brasileira.

(*) Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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