Opinião
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25 de junho de 2021
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08:27

“Mãe de pet e mãe de planta” pode, produção? (por Clarissa Ferreira)

Ilustração: Mariana Villa Real
Ilustração: Mariana Villa Real

Clarissa Ferreira (*)

As novas éticas de comportamento tendem a hiper analisar temas cotidianos muitas vezes saudando nossas certezas bem mais do que nossas problematizações. São tantos os conceitos passíveis de teorização que não cabe num post, nem num texto, tampouco em nossa racionalidade colonial, que nos entende como a espécie superior e por vezes a própria pachamama, representando essa crença no maternar os demais seres.

Sobre esse tema brotam questões que vão desde a domesticação, passando pelas relações inter-espécies, até os conceitos de amor, de mãe e de família. No caso, esse último, se a gente for pensar na origem do conceito família, que é derivado do latim famulus, que significa “escravo doméstico” (sim, família vem de escravo doméstico!), no caso de ter gatos, tá tudo certo, né? 

Em outra perspectiva, a questão é psicanalítica, como já explicitado por Delleuze em seu abecedário: nas relações com os animais acontecem projeções. Mas pensemos: Quais relações não são projetadas? Expectativas criadas, afeições transferidas? É de bom tom? Talvez não, mas não deixa de acontecer por isso. Somos seres relacionáveis, conectáveis (uns nem tanto), mas como é aquela dieta contemporânea equilibrada mesmo? Um pouco de droga, um pouco de salada? Nesse caso, um pouco de terapia e um pouco de infantilização dos pets, enquanto vai dando conta de lidar com seus afetos.

O ponto chave dessa discussão é o  fato do cuidado estar relacionado com a maternidade. “Você não precisa educar eticamente e criar o caráter do seu pet” afirma quem não apoia a expressão “mãe de pet”, além de ser argumentado que invisibiliza a questão profunda e complexa de como a sociedade lida com a maternidade. 

Leonardo Boff, em seu livro “Saber cuidar”, fala sobre como o cuidado está no ethos do ser humano. E isso explica muito a criação do “tamagotchi”, por exemplo. Essa coisa de ter sempre um olhar ao outro, ao redor, aquele “no que posso ajudar?” estampado em nossas costas, por mais que nem todes instalem em si esse plugin. E essa é a grande chave desse entendimento: por que só as mães são as responsáveis pelo zelo?

Dizer que o conceito “mãe” foi inventado, para alguns, parece incabível, por ser atrelado a um “fenômeno natural”. Mas vale lembrar que a natureza é compreendida primeiramente a partir da cultura.  O entendimento cultural ocidental centralizou o cuidado e a educação na pessoa da mãe, basta ver o que os positivistas pensavam sobre. 

No livro “Calibã e a Bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva”, a historiadora Silvia Federicci escreve sobre como o patriarcado começa a ser praticado como poder sobre as mulheres quando as mesmas tomam conhecimento dos métodos contraceptivos, entre outras coisas. A partir daí, a literatura, ou melhor, grande parte dos intelectuais homens que fizeram literatura, dedicaram-se a construir a imagem da mulher mãe e todas as “fortes gamas do amor materno”, e toda a validação do gênero feminino sobre esse ato.

Quando vem esse tema penso muito no conceito “naturezacultura” da Donna Haraway. A história da relação humano-animal nos mostra muitos paradoxos, se relativizados culturalmente. Os animais podem operar no transporte, na caça, no pastoreio, e também como alimento, fonte de pelagem, etc. Em contrapartida, Haraway cita que, em “A History of Dogs in the Early Americas (Yale, 1997), Marion Schwartz escreve que alguns cães de caça dos indígenas americanos passavam por rituais semelhantes de preparação, assim como seus parceiros humanos, incluindo entre os cães da raça Achuar da América do Sul a ingestão de alucinógenos.”

Donna Haraway, que é bióloga e antropóloga, em seus trabalhos “Manifesto das Relações Interespécies” e “Antropologia do Ciborgue” nos traz diversos subsídios para compreender a questão, fazendo teoria feminista contempoânea. Além de educar o entorno por melhores significações dos termos, que refletem-se em comportamentos, esse tema demonstra a importância e relevância da linguagem, que pode nos fazer pensar sobre humanizações e desumanizações, sobre ser humano e sobre humanidade.

Uma máxima sua diz “faça parentes, não bêbes”, pois, segundo ela, neste momento, temos um mundo pró-natalidade e anti crianças. Deveríamos querer um mundo pró-crianças e não pró-natalidade? Então precisamos repensar essa equação.

Revisão: Thays Prado

Ilustração: Mariana Villa Real

* L’Abécédaire de Gilles Deleuze é um documentário televisivo francês produzido por Pierre-André Boutang entre 1988 e 1989 e exibido em 1996, após a morte do filósofo Gilles Deleuze. (disponível no youtube)

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.

HARAWAY, D. A companion species manifesto: dogs, people, and signifi cant otherness. Chicago: Prickly Paradigm, 2003.

Manifesto Ciborgue. In: TADEU, T. Antropologia do ciborgue, Belo Horizonte, Autêntica, 2009.

(*) Clarissa Ferreira é violinista, doutora em Etnomusicologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e autora do blog Gauchismo Líquido.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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