Saúde
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21 de agosto de 2021
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17:08

Atenção primária em saúde e a pandemia: situação em Porto Alegre é de incerteza

Por
Luciano Velleda
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Diretora da SMS destaca que 85% da demanda da população deve ser atendida pela atenção primária. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Diretora da SMS destaca que 85% da demanda da população deve ser atendida pela atenção primária. Foto: Guilherme Santos/Sul21

O descredenciamento em programas do governo federal de dezenas de Equipes de Saúde da Família, evidenciou as dificuldades da atenção primária em Porto Alegre, agravadas desde a tentativa de extinguir o Instituto Municipal da Estratégia da Saúde da Família (IMESF). A área é importante para o atendimento de parcelas mais vulneráveis da população e deverá ter papel significativo também no pós-pandemia, ainda que não seja possível prever quando a crise do coronavírus acabará.

Médicos e cientistas projetavam que o controle da pandemia seria obtido quando acima de 70% ou 80% da população estivesse completamente imunizada com duas doses das vacinas. Até este sábado (21), Porto Alegre tem 52% da população acima de 18 anos vacinada com duas doses. A estimativa dos cientistas, porém, começa a ser revista com a circulação da variante Delta, mais contagiosa do que as outras mutações do vírus.

Alcides Silva de Miranda, médico e professor de Saúde Coletiva na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tem uma posição crítica sobre como as equipes da atenção primária deixaram de atuar na pandemia. Para ele, se as equipes tivessem sido treinadas e mobilizadas, o trabalho poderia ter sido realizado com quatro estratégias: bem informar a população das medidas corretas de proteção; vigilância epidemiológica no âmbito local, com informações da crise e de vulnerabilidades sócio-econômicas; atuação decisiva na testagem de casos suspeitos e no encaminhamento dos casos que necessitassem de atendimento de emergência; e por fim, no acompanhamento das sequelas da covid-19.

“Se as equipes tivesse sido treinadas, elas poderiam atuar identificando casos, fazendo o bloqueio e identificando contatos, isolando surtos localizados, com impacto grande na vigilância epidemiológica em rede”, explica o professor de Saúde Coletiva na UFRGS.

Se o que passou não pode mais ser recuperado, Miranda olha para frente, em direção ao que ainda pode e, segundo ele, deve ser feito. No curto prazo, diz que as equipes podem ser treinadas para usar a vacinação a partir de um monitoramento epidemiológico, identificando pessoas mais expostas e vulneráveis e priorizando-as, de modo a criar um bloqueio vacinal com impacto melhor, mesmo com a cobertura ainda longe do ideal. As sequelas da covid-19 é outro problema sério e que se estenderá por muito tempo.

“As equipes de atenção primária poderiam estar ajudando na reabilitação dessas pessoas, inclusive produzindo informação científica sobre o desenrolar das complicações dos recuperados”, explica.

No médio prazo igualmente há tarefas significativas à cumprir. Mesmo quando o pior da pandemia passar, Miranda destaca que o vírus não irá desaparecer e surtos localizados continuarão acontecendo nos próximos anos.

“As equipes treinadas pra fazer esse monitoramento, fazer a identificação de eventuais surtos e casos, terão uma atuação importante no médio prazo em diante. Vai deixar de ser uma pandemia e vai virar uma doença em que nós vamos ter casos nos próximos anos, mas as equipes de atenção primária vão poder identificar mais rapidamente”, analisa.

O professor de Saúde Coletiva na UFRGS afirma que há muita coisa por fazer, desde que haja vontade política e mobilização de recursos. Para ele, o governo municipal precisa se aproximar dos profissionais da linha de frente e dar condições para que trabalhem. “Esse problema não vai acabar quando chegarmos na cobertura vacinal da população. Ele vai entrar em outra fase de manejo que requer controle adequado e ninguém melhor do que as equipes de atenção primária pra fazer isso”, afirma.

No caso de Porto Alegre, o professor de Saúde Coletiva na UFRGS avalia que, além da falta de treinamento para atuar, houve o desmonte da atenção primária justo no pior momento da pandemia em 2020.

“Quando o Imesf é desativado, cria a insegurança, inclusive psicológica, dos trabalhadores da atenção primária. O governo do ano passado teve um ‘apagão’ e durante meses não tomou nenhuma iniciativa com relação a atenção primária no município. Depois o governo que entrou continuou nessa estática de não entender a importância da atenção primária e não mobilizar essa atuação, e manteve o desmonte que estava programado, as demissões continuaram acontecendo”, critica.

Por outro lado, Miranda diz que os profissionais da atenção básica tiveram iniciativa própria ao tentar fazer o melhor, apesar da falta de articulação da prefeitura. Na sua visão, faltou à Secretaria Municipal de Saúde (SMS) uma política de como a atenção primária deveria atuar na pandemia. “Acho que é preciso resguardar a atuação das equipes, é muita gente empenhada em fazer o melhor, mas lamentavelmente lutando não só contra a pandemia, mas também contra a incompetência do governo municipal.”

Caroline Schirmer, diretora de Atenção Primária da Secretaria Municipal da Saúde (SMS), tem uma análise diferente. Na sua avaliação, as unidades de saúde conseguiram monitorar e cuidar dos casos em sua região. A ressalva, todavia, é que a cobertura da atenção primária em Porto Alegre abrange cerca de 60% da cidade. Com isso, uma parcela significativa da população fica descoberta.

“Talvez essa questão da gente não ter conseguido fortalecer tanto, possa ter sido influenciada por isso”, explica. Caroline considera a cobertura de Porto Alegre razoável e cita Florianópolis, Curitiba e Belo Horizonte como exemplos de capitais com cobertura superior.

“Crescemos muito nos últimos anos, mas dependemos de uma parte estrutural que não é tão rápida”, diz, destacando que ampliar a cobertura envolve mais do que apenas contratar profissionais.

Além da falta de estrutura em cobrir toda a Capital para atender casos de covid-19, a diretora de Atenção Primária da SMS destaca que problemas crônicos, como hipertensão e diabetes, foram “deixados pra trás” devido a pandemia, assim como acompanhamento de pré-natal e primeiras consultas dos bebês recém nascidos.

A explicação, segundo ela, deve-se a diminuição da adesão dos pacientes, aliada ao atendimento das pessoas com sintomas da covid-19. “É uma preocupação nossa retomar essa rotina de atendimento e acompanhamento dos pacientes e, principalmente, retomar o vínculo que a gente tinha com eles.”

Caroline destaca que 85% da demanda da população deve ser atendida pela atenção primária. Nesse sentido, é muito mais econômico ter uma equipe na atenção primária do que pagar leito hospitalar, por exemplo, para um caso de AVC e depois tratar a sequela desse AVC. Na pandemia não é diferente. Identificar, testar e isolar rapidamente o paciente evita o risco de contaminar outras pessoas.

“O acompanhamento do caso pode evitar o agravamento e a necessidade de procurar um pronto atendimento ou emergência pra internar, talvez até acabar na UTI. Então não deixar essa pessoa desassistida e não deixar circular é nossa principal preocupação hoje, até com as novas variantes que estão chegando”, afirma.

Em 2021, a diretora de Atenção Primária da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) diz que a principal mudança tem sido a vacinação. A campanha de imunização tem ocupado boa parte do tempo das equipes, inclusive nos finais de semana. Por isso, mesmo o trabalho de testar e isolar casos positivos de covid-19 não tem sido feito como ela gostaria.

“Quando se escolhe uma coisa, se acaba invariavelmente deixando outras. A gente precisou colocar todo mundo capacitado pra fazer a vacina, então talvez não seja o monitoramento tão próximo como a gente fez ano passado, quando não tínhamos a vacina”, diz Caroline.

Com relação aos problemas ocorridos com o Imesf, a diretora de Atenção Primária reconhece a complexidade da situação e aponta como principal problema a instabilidade dos profissionais. Devido ao desgaste do ano passado, pessoas boas e comprometidas acabaram indo para outras áreas. “Isso preocupa principalmente porque a atenção primária em saúde é o serviço que mais faz vínculo com o paciente. Então como se vai garantir o vínculo se há rotatividade de profissionais dentro do serviço?”

Entretanto, Caroline afirma que a maioria dos profissionais continuaram na rede de atendimento e hoje atuam contratados pelas empresas terceirizadas. Ela elogia a criação das metas e diz que houve aumento de 30% nos atendimentos nas empresas contratualizadas, mesmo com a pandemia.


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