Meio Ambiente
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10 de abril de 2024
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13:07

Servidores da Fepam alertaram Leite para os riscos da irrigação em Área de Preservação Permanente

Por
Luciano Velleda
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Leite procura mostrar uma agenda preocupada com a crise do clima, mas ações práticas do governo são muito criticadas por ambientalistas. Foto: Luiza Castro/Sul21
Leite procura mostrar uma agenda preocupada com a crise do clima, mas ações práticas do governo são muito criticadas por ambientalistas. Foto: Luiza Castro/Sul21

A Associação dos Servidores da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Asfepam) entregou ao governador Eduardo Leite (PSDB) e à secretária estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura, Marjorie Kauffmann, uma nota técnica com diversos argumentos e justificativas para o governo vetar o Projeto de Lei 151/2023, de autoria do deputado estadual delegado Zucco (Republicanos), que flexibiliza o Código Estadual de Meio Ambiente para permitir a construção de barragens e açudes em Áreas de Preservação Permanente (APP) no Rio Grande do Sul.

O documento foi entregue ao governador no dia 25 de março e uma reunião foi realizada com a secretária dia 3 de abril. Apesar dos argumentos técnicos, Leite sancionou o projeto nesta terça-feira (9). A Fepam é o órgão estadual responsável pela fiscalização, licenciamento, proteção e preservação do meio ambiente no Rio Grande do Sul.

“Enquanto analistas do órgão ambiental do Estado, responsáveis pelo licenciamento das atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos naturais, devemos alertar que a proposta aprovada pelo legislativo gaúcho desconsiderou a finalidade ambiental das APPs”, afirmam os servidores da Fepam logo no início do documento.

A nota técnica destaca que as APPs possuem a função de preservar os mananciais de água, necessários para a oferta deste bem e, inclusive, para a manutenção sustentável da produção agrícola. De acordo com o servidores da Fepam, dar status às obras de irrigação e de dessedentação de animais em propriedades privadas, como sendo atividades de utilidade pública e incluindo as áreas com plantio irrigado como de interesse social, poderá “acarretar impactos negativos de proporções desconhecidas”.

Entre os riscos ambientais do projeto sancionado pelo governador apontados no documento, estão a multiplicação dos represamentos ao longo dos rios e cursos d’água, com mudanças drásticas na hidrodinâmica das bacias hidrográficas; os potenciais conflitos entre os usuários dos recursos hídricos, além do fato do projeto de lei desconsiderar que a água, as florestas e a vegetação nativa são bens de uso comum da sociedade.

A nota técnica ainda alerta que o uso privado da água foge ao conceito de que a água é um bem de domínio público e recurso natural limitado, dotado de valor econômico. Os servidores da Fepam também ponderam que serão reduzidas as exigências legais e as análises técnicas para intervenção nas APPs, facilitando assim a supressão de vegetação nativa e a degradação de matas ciliares.

A forte estiagem sofrida pelo RS nos últimos três anos impulsionou a proposta de interferir em Áreas de Preservação Permanente. Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

O documento também enfatiza que a criação de barragens em Áreas de Preservação Permanente (APP) poderá ampliar a falta d’água e prejudicar a a agricultura familiar e pequenos produtores rurais.

“A autorização da instalação de barramentos, sem que o Estado detenha os estudos técnicos visando o uso de recursos hídricos nas bacias hidrográficas poderá levar à banalização do licenciamento ambiental de barragens e à ações descoordenadas entre Estado e municípios (ainda mais que a questão hídrica não poderia ser considerada, para fins de licenciamento ambiental, um impacto local mas sim regional). Não há garantia de que a reservação de água sem planejamento não ampliará a escassez hídrica, comprometendo o uso múltiplo da água, garantido por lei, em especial com impactos negativos para a agricultura familiar e pequenos produtores rurais, para o abastecimento público e o consumo humano”, afirma a nota técnica da Associação dos Servidores da Fepam

Os servidores do órgão ainda citam estudos realizados mundo afora sobre os impactos de pequenos reservatórios na hidrologia das bacias hidrográficas. Esses estudos mostram que o aumento na quantidade de reservatórios num determinado local pode ter efeito antagônico tanto para os usuários da água quanto para todo meio ambiente.

Por outro lado, o corpo técnico da Fepam afirma não ser contra a possibilidade dos agricultores reservarem água para irrigação, mas salienta ser preciso, primeiro, conhecer e organizar o sistema como um todo, avaliar e prever os efeitos ao longo do tempo “para que a irrigação seja uma possibilidade para todos e não uma alternativa imediata para alguns e que poderá acarretar em novos problemas ou agravar os que já existem”.

A nota técnica ainda questiona os conceitos de utilidade pública e interesse social constantes no projeto de lei sancionado por Leite, considerando que foi justamente a interpretação destes conceitos a peça-chave para permitir a criação de barragens e açudes em Área de Preservação Permanente (APP). “Uma obra de infraestrutura específica para uso em uma atividade produtiva específica e realizada em uma propriedade privada pode ser considerada como de utilidade pública? Qual seria a vantagem para o interesse coletivo?”, questionam os servidores da Fepam.

Além de apresentar justificativas ambientais para pedir o veto do governador, o documento da Associação dos Servidores da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Asfepam) destaca também questões jurídicas. Desde o dia da aprovação do projeto na Assembleia, deputados e entidades ambientalistas sustentam que a iniciativa do parlamento gaúcho conflita com a legislação federal que trata de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e poderá ser questionada na Justiça.

Na ocasião, o deputado estadual Zé Nunes (PT) comentou que, apesar do tema da irrigação merecer atenção, a proposta se choca com a legislação federal. “Quando se fala em irrigação, se parte do pressuposto de que é só reservar e que a água está disponível. Temos sofrido muito com a estiagem e é legítimo que se tenha todo esse debate e se busque algo mais eficiente nesse sentido. O problema é haver conflito com a legislação federal, com o Código Nacional do Meio Ambiente, com a Lei dos Biomas e de intervenção nas áreas de preservação ambiental, que não é uma decisão que o Estado pode tomar, porque isso é uma legislação federal. Me parece que é uma lei que o governador vai vetar, porque ela é flagrantemente inconstitucional e o governador irá se expor se sancionar”, disse o parlamentar no dia da aprovação do projeto. Leite, todavia, não vetou.

A nota técnica dos servidores detalhe o conflito da lei sancionada no RS com leis federais, como a Lei da Mata Atlântica e a Lei Federal no 12.651/2012, que protege a vegetação nativa e estipula a preservação de 20% de toda propriedade rural como Reserva Legal.

Cadastro Ambiental Rural é considerado essencial no combate ao desmatamento e na regularização ambiental de imóveis rurais. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Nesse sentido, o documento procura demonstrar que um dos maiores gargalos do licenciamento está na questão do déficit de vegetação nativa para compor a Reserva Legal nos imóveis rurais. Um estudo realizado pela Fepam avaliou os imóveis rurais no Bioma Mata Atlântica e Bioma Pampa a partir das declarações feitas no Cadastro Ambiental Rural.

No caso do Bioma Mata Atlântica, o estudo constatou que foram cadastrados, até o momento, 417.583 imóveis rurais e, destes, 82.357 imóveis possuem remanescente de vegetação nativa fora de áreas de preservação permanente e com excedente que permite a supressão da vegetação para fins de uso alternativo do solo. Isso representa, percentualmente, 19,72% dos imóveis cadastrados no Bioma.

Já no Bioma Pampa foram cadastrados até o momento um total de 208.212 imóveis rurais e, destes, apenas 19.281 imóveis possuem remanescente de vegetação nativa fora de áreas de preservação permanente e com excedente que permite a supressão da vegetação para fins de uso alternativo do solo. Isso representa 9,26% dos imóveis cadastrados no Bioma Pampa.

Temos acordo, obviamente, de que os períodos de estiagem e seca são prejudiciais à sociedade e que a reservação de água e a irrigação são meios para minimizar perdas sociais e econômicas. Entretanto, em nossa avaliação, o RS está negligenciando o aspecto ambiental e não fez o suficiente em termos de concretizar políticas públicas para: proteção de mananciais, com ampliação dos programas para todo o território do RS; uso, manejo e conservação do solo; recomposição de APPs (onde se faz necessária, seja com áreas antropizadas antes ou depois de 2008); recomposição da Reserva Legal; proteção do Pampa; análise e homologação do CAR e implementação do PRA; regularização do pagamento por serviços ambientais, entre outros”, conclui o documento dos servidores da Fepam que tentou, sem sucesso, dar subsídios técnicos para que o governador vetasse o projeto aprovado na Assembleia.

A posição da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura

A Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura, por sua vez, assinalou que já existem regramentos específicos para intervenções em Áreas de Preservação Permanente nas hipóteses de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental. Em nota encaminhada ao Sul21, a Secretaria afirmou:

“O Projeto de Lei 151/2023, de autoria do Legislativo e sancionado na terça-feira pelo governador Eduardo Leite, define como de utilidade pública, também, as obras de infraestrutura de irrigação e como de interesse social as áreas destinadas ao plantio irrigado, priorizando a produção de alimentos. No entanto, a lei condiciona a intervenção à inexistência de alternativa técnica ou locacional, ou seja, quando não há opção de local para a construção do reservatório. Para garantir a segurança jurídica e de execução, a intenção do governo RS é regulamentar a nova regra com o objetivo de evitar excessos e reduzir os impactos ambientais”.


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