Meio Ambiente
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15 de julho de 2022
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16:00

‘Torres está a um passo de perder sua beleza característica’

Por
Luciano Velleda
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Praia da Cal. Foto: Free images
Praia da Cal. Foto: Free images

Vista ao longe por quem chega pela BR-101 ou pela Estrada do Mar, Torres, segundo Lara Lutzenberger, parece lembrar a ilha de Manhattan, em Nova York. Aquela cidade praiana predominantemente de casas, com seus charmosos morros se destacando na paisagem, permanece viva apenas na lembrança dos já distantes anos de 1970 e 1980. A comparação um tanto exagerada com a famosa megalópole americana é proposital. A filha de um dos mais ilustres ambientalistas brasileiros, frequentadora de Torres desde a infância, quer chamar a atenção para o caminho da descaracterização adotado pela cidade do litoral norte gaúcho, um rumo que pode estar prestes a não ter volta.

A bióloga faz questão de reconhecer ser impossível pensar Torres em 2022 sob o mesmo prisma de 40 anos atrás. Ressalta que nem sequer desejaria uma cidade “parada no tempo”. Entretanto, o acelerado crescimento do mercado imobiliário e o contínuo avanço da construção civil verificado nas últimas décadas precisa ter algum limite. E é justamente esse limite que ela acredita estar agora na iminência de ser ultrapassado, se for adiante a proposta do novo Plano Diretor, elaborado pela Prefeitura da cidade litorânea. 

O governo local chegou a marcar uma audiência pública sobre o assunto para o dia 28 de junho. O evento, entretanto, foi adiado por decisão da Promotoria de Justiça de Torres, atendendo pedido do historiador e antropólogo Rafael Frizzo, que alegou o descumprimento do Estatuto da Cidade, por parte da Prefeitura, ao não apresentar previamente os estudos e propostas sobre o Plano Diretor com antecedência mínima de 15 dias. O atual Plano Diretor do município é de 1995.

Com o adiamento e a decisão judicial, a gestão municipal foi então obrigada a tornar públicas suas propostas. Uma vez de posse dos documentos, entidades e ambientalistas enfim descobriram quais são as intenções da Prefeitura. E o resultado não agradou quem se dedica a defender a natureza de Torres como sua principal riqueza e atrativo. Entre as preocupações estão a permissão de aumentar a altura de prédios em determinadas zonas da cidade; a mudança da caracterização da zona rural para zona urbana; a criação de uma zona industrial com possível impacto numa terra indígena Guarani; e a não contemplação de medidas protetivas ao Parque Estadual de Itapeva. 

O parque, inclusive, vive situação peculiar: o novo plano de manejo foi revisado pelos técnicos da unidade no final de 2019 e, desde 2020, dorme na gaveta da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) aguardando publicação. Ambientalistas analisam que a não publicação por parte do governo estadual ocorre devido a pressão de políticos locais. A interpretação é de que o novo plano de manejo vai contra os interesses econômicos de grupos influentes na cidade.

“A voracidade da especulação tem adquirido proporções exageradas. Todos que circulam na cidade percebem que a construção civil assumiu uma proporção gigantesca. Há um avanço exagerado e que se mostra insaciável”, afirma Lara Lutzenberger. 

Presidente da Fundação Gaia, criada por seu pai em 1987, ela receia que o novo Plano Diretor, se for adiante, represente a perda definitiva da qualidade de vida que caracteriza a região, ainda agradável e charmosa. A bióloga destaca que Torres tem limites geográficos bastante definidos e que o avanço recente da construção civil já causa problemas de congestionamento no verão. “Não vejo margem para maior adensamento.”

Lara demonstra preocupação com a possibilidade de se permitir a construção de prédios mais altos nas quadras próximas à beira-mar das praias da Cal, Prainha e Praia Grande (zona 8). Para ela, Torres não merece seguir o modelo de Camboriú (SC). “Me inquieta que tudo que se conquistou se perca por conta dessa liberação. A especulação está comendo pelas beiradas. Torres está a um passo de perder sua beleza característica”, lamenta.

A inquietação é motivada pelo que define como “um caminho sem volta”. Se aprovada no Plano Diretor a construção de prédios mais altos próximos da orla, o resultado inevitável será mais gente, mais lixo, mais poluição, mais sombra na praia. “Uma vez que se libera, acabou, não tem como voltar atrás”, critica a presidente da Fundação Gaia.

Por sua vez, a Prefeitura de Torres diz que, de modo geral, as alturas serão mantidas e em alguns zoneamentos serão restritas. O governo municipal explica que, em relação à zona 8 do Plano Diretor, a altura permitida atualmente é de três pavimentos e a nova proposta eleva para cinco pavimentos.

“Essa decisão levou em consideração estudos técnicos relativos ao sombreamento, o qual não ficou evidenciado potencial interferência na orla da beira-mar. A proposta segue os padrões urbanísticos e ambientais já existentes”, justifica a Prefeitura.

Novo plano de manejo do Parque Estadual de Itapeva aguarda aprovação há mais de dois anos. Foto: Prefeitura de Torres

Criado em 2002 tendo como objetivos proteger ecossistemas e espécies da fauna e flora raros e ou ameaçados, promover atividades de pesquisa científica, educação ambiental e turismo ecológico, o Parque Estadual de Itapeva está no centro do debate ambiental em Torres em função de sua importância como unidade de conservação integral. 

Com área de 998 hectares, o local abriga ambientes de dunas, vegetação de restinga, campos secos e alagados, banhados e turfeiras e Mata Paludosa (floresta formada sobre solos bastante úmidos). 

“O Parque tem o importante papel de conservar um dos últimos remanescentes da paisagem característica da planície litorânea do Estado”, enaltece trecho sobre o parque no site da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema).

Apesar da importância oficialmente reconhecida pelo governo estadual, o novo plano de manejo do parque aguarda publicação há mais de dois anos. Informações obtidas pelo Sul21 junto ao conselho gestor do parque indicam que a proposta do novo plano de manejo desagrada interesses políticos e econômicos de Torres. Entre os aspectos não aceitos estão as regras para a zona de amortecimento, cuja finalidade é proteger o entorno do parque.

Conforme o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), a zona de amortecimento é onde “as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade”. 

Entre as propostas do novo plano de manejo para a zona de amortecimento do Parque de Itapeva estão a previsão de altura máxima de quatro andares para prédios no entorno, redutores de velocidade, considerações sobre a permeabilidade do solo, criação de “passa-fauna” (corredores para a fauna se dispersar e buscar outros espaços) e a proibição de transformar a zona rural em zona urbana, limitado assim a atividade humana no entorno. De modo geral, as regras pretendidas se conflitam com os interesses do mercado, principalmente imobiliário e da construção civil.

Fontes ouvidas pela reportagem sob condição de anonimato afirmam que a própria existência do Parque de Itapeva não é bem aceita por determinados grupos em Torres. Para estes, o parque é visto como um entrave para o “desenvolvimento” da cidade. Pelo lado dos ambientalistas, é o oposto: a intenção de construir mais prédios e condomínios residenciais vai contra a paisagem e o meio ambiente, a principal atração de Torres.

O plano de manejo ainda propõe incentivos à economia da agricultura familiar e agroflorestal, além do turismo rural. Enquanto não é publicado, segue em vigor o plano de manejo elaborado em 2007 e que, de modo geral, é menos protetivo. 

Em nota, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) confirma que “o produto final do plano de manejo do Parque Estadual de Itapeva, feito por uma pessoa jurídica de direito privado”, foi recebido pelo órgão em 2020. “No entanto, foram constatadas inconsistências técnicas e administrativas. A Sema encaminhou o caso para a Procuradoria Geral do Estado, que avalia necessidade de medidas cabíveis quanto a estas inconsistências”, justifica a secretaria, sem especificar quais são as inconsistências.

Lutzenberger dizia que as formações rochosas de Torres são testemunho da história natural do planeta. Patrícia Morales/Pixabay

Autor do pedido para que a Justiça impedisse a realização da audiência pública no final de junho, o historiador Rafael Frizzo, membro do conselho do Parque de Itapeva, gosta de reconstituir o contexto em que Torres está inserida para dar a dimensão da importância da praia do litoral norte gaúcho.

Ele lembra que a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), a mais antiga entidade ambientalista do Rio Grande do Sul, foi fundada em Torres nos anos de 1970.

O historiador pondera que muitas pessoas não compreendem os objetivos da luta ambiental e acreditam que os ambientalistas estão contra a cidade ou seus governantes. Frizzo lamenta que seja difícil para determinados setores da comunidade entender que as questões locais de Torres estão inseridas num debate muito mais amplo e que envolve todo o planeta.      

E destaca que os morros de Torres, como a Guarita, são como um grande livro aberto da história da humanidade e da história geológica. “Lutzenberger entendia que Torres era um local inclusive como testemunho da história natural do planeta, com os pontos de separação das Américas com a África”, recorda, em referência aos rochedos de arenito basáltico que dão forma e singularidade para a região. 

“Quando a gente parte de uma discussão ambiental sobre um Plano Diretor de uma cidade, na verdade, a gente está falando de uma evolução orgânica, da sinfonia da vida e dos resquícios que a gente tem e não valoriza enquanto política pública. É contraditório uma gestão pensar num Plano Diretor e não dialogar com essa profundidade do conhecimento”, defende Frizzo, também antropólogo e membro do Centro de Estudos Históricos de Torres e Região.

Como bom historiador, ele conta que Torres, enquanto modelo de sociedade, foi se caracterizando ao longo do tempo pela economia da construção civil, que cria mercado de trabalho e emprego. Assim, a população local se desenvolveu a partir da oportunidade de atuar na construção civil, uma relação que, com o passar dos anos, foi se tornando de dependência. 

“É um modelo limitado numa construção sem limites, no sentido ambiental, sempre numa perspectiva de construir quando der e aonde der”, avalia. Para frear o impulso construtivo, Frizzo diz que a criação do Parque da Guarita, nos anos de 1970, do Parque de Itapeva mais recentemente, e da unidade de conservação da Ilha dos Lobos, ajudou a preservar o meio ambiente da cidade. 

As características ambientais de Torres também colaboraram para conter a expansão. Ele explica que o limite geográfico da cidade é pequeno por estar situado numa “ponta”, naturalmente espremida entre a formação rochosa, o rio Mampituba, o Oceano Atlântico e o Parque de Itapeva.

Todavia, nos últimos 10 ou 15 anos, explica que o processo da construção civil se acelerou, impulsionado pela duplicação da BR-101 e a construção da Rota do Sol como ligação à Serra Gaúcha. Em função do limite geográfico da área central de Torres, a região ao sul, nas pequenas praias de Itapeva e Paraíso, entrou na mira do mercado imobiliário.

“A gente hoje vive a grande pressão demográfica que, basicamente, era um setor da economia de veraneio, mas que hoje já olha com o horizonte de uma população permanente residente no litoral norte”, explica o conselheiro do Parque de Itapeva. É nesse olhar que entram os condomínios de alto padrão e a lógica da verticalização. 

“Essas praias (Itapeva e Paraíso) estão no foco da expansão do novo Plano Diretor. São áreas de baixada, de corredores ambientais, em que agora estão sendo propostas construções de prédios de mais de 30 metros de altura e de zonas industriais, em diálogo com a proposta do porto em Arroio do Sal”, explica.

O historiador destaca que o que acontece agora em Torres é consequência de um processo longo e não é responsabilidade de uma única gestão. Ainda assim, diz que o atual governo municipal faz a tentativa de aumentar e explorar os índices da construção civil.

“Um município como Torres, por suas características ambientais, deveria primar pela qualidade técnica-científica, mas de um Plano Diretor com características predominantemente ambientais”, defende.

Para a audiência pública remarcada para o final de julho, Frizzo conta que a estratégia será cobrar o cumprimento da legislação em vigor. “A nossa reivindicação se pauta justamente num processo com vícios e que não dialoga com setores da comunidade. O próprio conselho do Plano Diretor não conta com nenhum órgão ambiental, majoritariamente são órgãos da construção civil. A gente está cobrando o que a Constituição e a lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação coloca. A gente tem uma legislação ambiental que, por mais que ela seja rasgada o tempo todo, ainda é muito complexa e precisa ser entendida e compreendida.”

Em nota, a Secretaria de Meio Ambiente de Torres, responsável técnica pelo projeto do Plano Diretor, defende que a nova proposta diretor contempla satisfatoriamente a proteção ambiental da cidade. O órgão, inclusive, destaca que o conselho do Plano Diretor “tem representatividade da sociedade organizada civil”.

A secretaria diz que “a nova Lei do Plano Diretor regra as questões urbanísticas do território e que a legislação ambiental, por ser mais restritiva, prevalece sobre as regras de construção civil. Os ambientes protegidos legalmente não sofrerão alterações de regramento, como, por exemplo, as restrições nas faixas marginais de cursos de água, áreas de dunas frontais anteriores, entre outras”.

Quanto à crítica de que o novo Plano Diretor irá causar maior adensamento populacional, o órgão da Prefeitura alega que o índice geral de adensamento será mantido. Sobre a proposta de criação de uma zona industrial em meio à zona rural, a Prefeitura diz que a proposta está no eixo da BR-101, fora do centro urbano.

A audiência pública sobre o novo Plano Diretor de Torres está marcada para o próximo dia 26 de julho. A reunião pode começar a decidir se, no futuro, Torres será mais parecida com sua identidade histórica ou com a “Manhattan” de torres de concreto descrita por Lara Lutzenberger.


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