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1 de março de 2024
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13:58

Retomada Nhe’engatu: ‘A dívida é eterna, mas não estamos cobrando, só queremos um lugar adequado’

Por
Luís Gomes
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Retomada Mbyá Guarani Nhe'engatu, na cidade de Viamão. Foto: Luís Eduardo Gomes/Sul21
Retomada Mbyá Guarani Nhe'engatu, na cidade de Viamão. Foto: Luís Eduardo Gomes/Sul21

Às margens de um açude, em uma ampla área verde onde está localizado o Centro Estadual de Diagnóstico e Pesquisa em Aquicultura (CEPAQ), em Viamão, indígenas Mbyá Guarani de diversas partes do município e de outras áreas estabeleceram, há cerca de 20 dias, a retomada Nhe’engatu. O nome, como explica Eloir Werá Xondaro, homenageia o seu avô Turíbio, que faleceu recentemente aos 101 anos sem ter conseguido realizar o sonho de conquistar a demarcação de terra para o tronco Mbyá Guarani de sua família.

“Esse espaço aqui foi revelado em sonhos para as pessoas mais velhas da aldeia”, diz Eloir, que atua como liderança na comunidade. “Meu avô, seu Turíbio, e minha avó, Dona Laurinda, sempre sonhavam com um espaço com água, com mata, com animais”.

A retomada teve início na madrugada do dia 14 de fevereiro, quando 27 famílias de diversas comunidades indígenas de Viamão e de outras regiões do Estado passaram a ocupar o local. Atualmente, 32 famílias integram a retomada e, até o próximo sábado, é esperada a chegada de mais quatro oriundas de Salto do Jacuí.

A ampla área verde, de 148 hectares, pertence ao governo do Estado e, segundo os indígenas, o centro de pesquisas, vinculado à Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro), está desativado — o que é negado pela Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação (Seapi) –, mas ainda abriga servidores da entidade e recebe pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Os indígenas apontam que há registros do local como área de passagem para o povo guarani em direção a Itapuã.

Eloir Werá Xondaro, da retomada Nhe’engatu, em Viamão | Foto: Luís Eduardo Gomes/Reprodução

Eloir explica que a reivindicação é para que um espaço seja cedido para a criação de uma aldeia, e eventual demarcação de terra, mas que o objetivo da comunidade não é criar conflitos. Ele afirma que o local onde morava antes, a aldeia da Estiva, também em Viamão, uma área de cerca de 7 hectares, ficou pequena para a comunidade.

“O Estado tem uma dívida eterna com os povos indígenas, mas não estamos cobrando isso, só queremos um lugar adequado para viver, para as nossas famílias e as nossas crianças”, diz Eloir. “A gente quer que o Estado tenha um olhar de carinho para a questão indígena, que não nos veja como invasores. Nós não somos invasores, apenas estamos retomando um território antigo onde circulavam os nossos ancestrais. Então, a gente quer conversar, quer dialogar, quer ter acordo, tanto com o Estado, como por parte da União”.

O cacique Claudio Gimenez da Silva, da terra indígena Tekoá Jatai’ty, no Cantagalo, reforça a ideia de que os indígenas de Viamão estão apertados no território e que a área da retomada contribuiria não só para a qualidade de vida da comunidade, mas também para a preservação da cultura e da saúde dos indígenas. “Um espaço verde faz bem para a nossa saúde e para a mente, porque onde tem água limpa, preservação do ambiente e mata limpa, isso também traz a saúde para nós”, diz.

Além da reivindicação ancestral da área, a retomada também tem, segundo Eloir, o objetivo de garantir a preservação ambiental, uma vez que está em estudo a possibilidade de transferência de ao menos uma parte da área para o município de Viamão, que teria o objetivo de possibilitar a urbanização da área.

“A gente viu a especulação por parte do município, querendo praticamente mais da metade deste território aqui para fazer condomínios e esse tipo de coisa. Como esse é um espaço que ainda é preservado, tem bastante mata nativa, a questão da água que é o principal, a gente veio para cá e iniciamos essa retomada”, afirma.

A comunidade diz que, até o momento, o governo do Estado não entrou em contato com os indígenas, sendo que apenas um efetivo da Brigada Militar foi brevemente ao local para fazer o reconhecimento. Com relação aos servidores da Fepagro, dizem que a convivência tem sido tranquila.

 

Deputada estadual Laura Sito visitou a retomada nesta quarta e recebeu um colar da comunidade | Foto: Luís Eduardo Gomes/Sul21

Nesta quarta-feira (28), a retomada recebeu a visita da deputada estadual Laura Sito (PT), presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa.

No encontro, Laura assumiu o compromisso com a comunidade de promover uma audiência na comissão da Assembleia para tratar da situação da retomada Nhe’engatu e de outras espalhadas pelo Estado.

“Há um conjunto de retomadas no Estado do RS que reafirmam a luta do povo indígena pelo direito ao território, pelo direito à preservação da cultura, e também denunciando a ausência do poder público ao longo dos últimos anos. A agenda das comunidades indígenas é uma agenda de afirmação da agenda ambiental, da luta por uma condição de dignidade e preservação da cultura. E nós, como CCDH da Assembleia, não poderíamos não estar aqui junto, ajudando a conectar essa demanda ao poder Executivo estadual e também federal, para que nós possamos garantir o direito ao território, nós possamos garantir vida digna para as comunidades indígenas do nosso Estado”, diz.

A previsão é de que, além do governo do Estado, por meio da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos (SJCDH), também sejam convidados a participar da audiência a Defensoria Pública da União e o Ministério dos Povos Indígenas. Laura também assumiu o compromisso de buscar a liberação de cestas básicas e o apoio alimentar junto ao Ministério do Desenvolvimento Social e à Companhia Nacional de Abastecimento, por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

Eloir explica que, atualmente, as famílias contam com doações de apoiadores, mas que há necessidades de alimentação imediata. Além disso, pontua que a comunidade também precisa de lonas e barracas para estruturar a retomada. Outra demanda de médio prazo é a garantia de educação para as 33 crianças em idade escolar que já estão na comunidade. Por enquanto, diz Eloir, que foi professor em guarani na escola da aldeia Estiva, a comunidade tem trabalhado o ensino por meio de materiais didáticos que já possuía.

 

Retomada Mbyá Guarani precisa de lonas e barracas para se estruturar | Foto: Luís Eduardo Gomes/Sul21

Procurada pela reportagem, a Secretaria de Agricultura informou que acompanha o que considera ser a ocupação irregular na área do Centro Estadual de Diagnóstico e Pesquisa em Aquicultura (CEPAQ) e que já tomou algumas medidas. No dia seguinte, comunicou a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), solicitando o acompanhamento da situação para que a Secretaria possa reintegrar sua área para manter as atividades lá realizadas.

A Seapi afirma que o CEPAQ não está inativo e que, no local, são realizadas atividades de pesquisa e de ensino que contribuem para a difusão das tecnologias aplicadas no campo e conhecimento científico ao setor primário. “Salienta-se, ainda, a parceria vigente com a UFRGS, que utiliza a estrutura do CEPAQ para o desenvolvimento de pesquisas em outros campos do conhecimento como farmácia e ecologia, bem como os investimentos ocorridos na área com recursos da Embrapa e Secretaria Estadual do Meio Ambiente”, diz a Seapi em nota encaminhada à reportagem.

Com relação a possibilidade de transferência de parte da área, a Seapi confirma o pleito do município de Viamão e diz que há um processo sobre o assunto em tramitação no governo, mas afirma que nenhuma decisão foi tomada até o momento.

 

Foto: Luís Eduardo Gomes/Sul21

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