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24 de fevereiro de 2024
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10:10

‘Tia Délia queria mudar o mundo aqui dentro da Vila Cruzeiro’

Por
Luciano Velleda
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Adélia Azeredo Maciel, a Tia Délia, fundadora do  Coletivo Preta Velha. Foto: Divulgação
Adélia Azeredo Maciel, a Tia Délia, fundadora do Coletivo Preta Velha. Foto: Divulgação

 “A gente tem sonhos pra cá, e nossos sonhos se realizam.” A frase emblemática foi pronunciada por Adélia Azeredo Maciel, em março de 2022, quando a reportagem do Sul21 esteve presente na antiga Escola Estadual de Ensino Fundamental (EEEF) Alberto Bins, na Vila Cruzeiro, transformada em centro comunitário graças as mulheres do Coletivo Preta Velha.

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O nome do grupo, inclusive, homenageia Adélia, carinhosamente chamada de Tia Délia. O reconhecimento tem razão de ser. Influente liderança de umas das maiores comunidades de Porto Alegre, Adélia foi uma das fundadoras do coletivo que voltou a dar vida à escola que o governo de José Ivo Sartori fechou em 2017.

Com sorriso largo, espírito comunitário e muita disposição para a luta, tal como um farol, Tia Délia guiou muitas mulheres do bairro pelos tortuosos caminhos de uma realidade repleta de vulnerabilidades. No último dia 10 de fevereiro, a luz do farol se apagou. Aos 63 anos, Adélia morreu após complicações de saúde. Seu brilho, todavia, seguirá iluminando a comunidade da Vila Cruzeiro.

É o que garante Tatty Cardoso, vice-presidente do Coletivo Preta Velha (a presidência era ocupada por Tia Délia). As duas se conheceram durante a campanha eleitoral de Bruna Rodrigues para deputada estadual em 2018. Nascia ali uma relação de proximidade e o embrião das primeiras conversas e ideias para o que fazer na escola que havia sido fechada um ano antes. Logo, se tornam amigas e cúmplices.

Tatty conhecia Adelia desde criança, quando Adelia ainda era casada e sofria num relacionamento abusivo. “Ela não vivia, na verdade. Depois que ela ficou viúva é que ela começou a sair, a conhecer outras pessoas, a beber cerveja, que ela gostava de beber”, conta.

Inicialmente, a luta das duas foi pela reabertura da escola. O desejo, entretanto, não se realizou. O governo de Sartori manteve a decisão de fechá-la. Sem a possibilidade de retomada formal do espaço, as duas começaram então a pensar, junto com outras mulheres, em novos caminhos para devolver o local à comunidade.

“A participação dela no coletivo foi extremamente essencial. Ela é a cara do coletivo”, atesta Tatty. “O nome Preta Velha tem a questão da ancestralidade, a questão da religião de matriz africana, mas também aquele olhar pra ela. Ela era nossa preta velha. Ela era a pessoa que representava e representa (o coletivo). A ideia é que se mantenha isso vivo. Não tem como falar do Coletivo Preto Velha e não falar da Tia Adélia.”

Tatty diz que a imagem da Tia Adélia é muito viva. A sensação, conta, é que ela vai entrar a qualquer momento na sede do coletivo com o jeito alegre que foi sua marca, a risada única, a gargalhada marcante.

“Era uma pessoa muito séria nos compromisso, mas ao mesmo tempo, uma mulher muito acolhedora, alegre. Quando ela chegava, a primeira coisa é a alegria. Só que ela já observava em torno, se tivesse alguém que, de alguma forma não estivesse legal, ela já percebia. Então ela já chamava num canto, conversava, aconselhava. Mas, em geral, sempre alegre. A característica principal era a alegria”, recorda a vice-presidente do Coletivo Preta Velha.

O perfil de conselheira também era marcante. Muitas pessoas da Vila Cruzeiro procuravam Tia Délia na sua própria casa para conversar, ouvir suas ponderações, serem acolhidas. Ex-agente de saúde, sempre que preciso, quando avaliava que uma boa conversa não era suficiente, levava no posto de saúde quem estava precisando de algum atendimento específico. O perfil de “super mãe”.

Tatty conta que apenas uma única vez teve um atrito com Tia Adélia por questões de trabalho. Depois de um tempo discutindo, conseguiram perceber que, no fim, estavam falando a mesma coisa. “Ela era uma pessoa muito séria com os compromissos dela”, destaca. Uma seriedade balanceada por carinho, respeito e acolhimento. Conhecimento de vida.

Atualmente, quem chega na escola na hora do almoço, ganha um prato de comida. Seja quem for. Servir refeições para a comunidade era um sonho antigo que Tia Délia pôde ver realizado. “Ela almoçava ali todos os dias e gostava de receber as pessoas, sempre alegre. Ela tava muito feliz pela melhora que teve, por ver as coisas acontecerem.”

Sua trajetória foi reconhecida em duas homenagens, primeiro na Câmara de Vereadores e depois na Assembleia Legislativa. Nas últimas semanas de vida, Tatty diz que Tia Délia começou a delegar tarefas, dando responsabilidades para integrantes do coletivo a respeito de determinadas tarefas que precisariam ter continuidade. “No último dia que vi a Tia Délia, tivemos uma reunião à tarde e o tempo todo ela me olhava com um olhar terno. Como se quisesse dizer alguma coisa, como se estivesse se despedindo”, recorda.

A reunião acabou, Tatty foi chamada para um lado, Adélia foi para outro. Não se viram mais. Naquela noite, ela foi para o hospital e não voltou. “Isso vai ficar marcado pra mim. Sempre vou lembrar do último dia que eu a vi, ela com aquele olhar.”

Fazendo a analogia com elos de correntes que se conectam, Tatty sente que um elo foi quebrado, mas a corrente precisa ser recomposta. “A gente precisa se reconstruir pra voltar mais forte, pra dar continuidade no nosso trabalho, dar continuidade naquilo que a gente acredita, mas também naquilo que ela planejou muito com a gente”, afirma.

Tia Delia foi homenageada pelo mandato da deputada Bruna Rodrigues em 2023. Foto: Divulgação

Cria da Vila Cruzeiro, a deputada estadual Bruna Rodrigues (PCdoB) reconhece que a morte de Adélia é a perda de uma referência na vida, misto de amiga, mãe e companheira de lutas. Ex-aluna da Escola Alberto Bins junto com a filha mais nova de Adélia, cresceu se encontrando com ela na comunidade. A parlamentar ressalta que Tia Adélia sempre foi uma liderança, com ainda mais importância ao virar agente comunitária de saúde. Com perfil de mediadora, atuou também como promotora legal popular. O papel de articuladora ganhou mais relevância ao iniciar a função de agente comunitária de saúde.

Na luta pela comunidade, Bruna conta que começou a conviver mais com Tia Adélia a partir do começo dos anos 2000. Em 2010, as obras para a Copa do Mundo de futebol, realizada no Brasil (e em Porto Alegre) em 2014, mexeram com os moradores da Vila Cruzeiro devido à obra de ampliação da Avenida Tronco, causando desocupações e remoções de famílias.

“Muitas eram as contradições, a falta de informações. Montamos um grupo de mulheres que buscava auxiliar para que mais mulheres tivessem informação de como seria e, mais uma vez, ela teve um papel bem protagonista na luta pela Tronco. Ela não era uma removida, mas era uma liderança importante da comunidade”, ressalta Bruna, ela, sim, removida pela obra na avenida.

A deputada conta ter vivido várias batalhas na comunidade ao lado da Tia Adélia, como o fechamento do posto de saúde da Vila Cruzeiro. “Tia Adélia era uma liderança que estava sempre na linha de frente. Quando deu um tiroteio e os médicos não queriam abrir, foi ela que organizou pra gente ir pra frente do Postão assegurar que os trabalhadores iam ter segurança e eles aceitaram voltar. Tiveram vários momentos que demonstram ainda mais a importância dela.”

Quando a Escola Alberto Lins foi fechada pelo governo Sartori, em 2017, lá estava Tia Délia novamente na linha de frente lutando pela preservação do espaço. Nesta ocasião, Bruna lembra que já era muito próxima de Adélia e que amiga foi fundamental na decisão de concorrer a uma vaga na Assembleia Legislativa nas eleições de 2018.

“Ela é a pessoa que chega e diz: ‘Olha, a gente faz campanha pra todo mundo, a gente coloca nossa cara, a gente fala da importância de estar em determinados espaços, mas quando a gente precisa mesmo, quando a gente quer falar sobre a nossa história, a nossa trajetória, a gente não tem representação. Tá na hora da gente buscar o nosso lugar”, recorda a deputada eleita em 2022. “A Tia Délia é a pessoa que vira para mim e diz: ‘Olha, é tu, tu és essa pessoa.”

Quando a pandemia de covid-19 surge e assombra o mundo, em 2020, Adélia novamente assume a frente para organizar uma campanha de solidariedade que ajudasse as famílias da Cruzeiro que começaram a passar fome.

“A gente distribuiu na comunidade toneladas de alimentos, tudo organizado a partir da Tia Délia. Ela tinha uma intimidade com a comunidade muito grande, uma relevância muito grande, essa figura que foi agente comunitária de saúde, que atende todo mundo, que intermedia as tensões, e que teve o papel fundamental na minha chegada ao Parlamento”, afirma a deputada.

Lucymar Azeredo Maciel, 44 anos, fala sobre Adélia a partir de um ponto de vista especial, como filha (ela tem ainda uma irmã e irmão). Recorda que sua casa vivia sempre cheia de pessoas que vinham pedir conselhos para sua mãe, seja para uma questão de saúde ou sobre qualquer outro assunto.

Ora o pedido de ajuda fazia parecer que Tia Délia era médica, ora fazia parecer que era advogada ou ainda assistente social. Sempre foi assim, conta Lucymar, mais conhecida como Lucy.

“Desde quando me dei por gente, ela já tinha esse procedimento na comunidade. Todo mundo vinha perguntar as coisas pra ela, querer a informação dela. Ela sempre tinha uma solução para aquelas pessoas”, lembra, dizendo que a mãe atuava como uma espécie de agente de saúde não remunerada desde antes de se tornar formalmente agente de saúde, guiando médicos e enfermeiros pela Vila Cruzeiro.

Conforme ia crescendo, Lucy passou a seguir a mãe, ajudando e se envolvendo nas causas sociais. A recordação é da mãe sempre feliz por ajudar os outros. Tendo se casado jovem, Lucy conta que o pai a “prendia” muito em casa, vivendo sob a tutela dele. Adélia então saia pouco da residência, mas sempre tinha alguém da vizinhança batendo no portão. A separação do marido, quando tinha pouco mais de 40 anos de idade, funcionou como um grito de libertação. Sem as amarras do casamento, Adélia se jogou no mundo do jeito que gostava, livre para agir como bem entendesse.

Tendo cursado até a 4ª série, decidiu voltar à escola e concluiu o ensino fundamental e depois o ensino médio. O passo seguinte foi fazer – e passar – o concurso para agente de saúde. “Ela começou a usar os conhecimentos que tinha pra repassar à comunidade,  pra ajudar melhor as pessoas. Então ela acabou dando mais qualidade ao trabalho e  alcançando mais pessoas”, comenta Lucy.

A filha tem convicção de que a imagem da mãe permanecerá viva na comunidade da Vila Cruzeiro. Afinal, os feitos e realizações foram muitos, assim como os casos que tantos moradores viveram ao lado de Adélia. “Todo mundo tem alguma história pra contar sobre ela e sobre alguma coisa que ela fez pra essa pessoa”, sustenta Lucy.

Em fevereiro de 2022, Adélia conversou com a reportagem do Sul21 na sede do Coletivo Preta Velha. Foto: Luiza Castro/Sul21

Bruna Rodrigues diz que a morte da amiga é uma “perda sem dimensão”. Destaca que Adélia cumpria muitos papéis na comunidade, aliás, o que é comum entre as mulheres.  “Puxava orelha”, brigava bastante, mas na hora do “pega pra capar”, estava sempre junto definindo o caminho a ser tomado

“Ela sempre disse: ‘A gente vai percorrer um caminho, a gente vai percorrer junto’”, lembra a deputada.

Dentre as características de Tia Délia, Bruna ressalta a escolha por viver intensamente, se abrir para vida. E o sorriso, a alegria de viver e encarar os desafios, sempre repetindo uma espécie de mantra: “A gente não era nada ontem, o que custa enfrentar esse desafio hoje”.

“Ela fazia tudo parecer bem pequeno diante do desafio”, avalia a parlamentar.

Como legado, Bruna acredita que vai ficar a importância da organização comunitária; a prova de que, juntas, a força é maior. Por meio da capacidade de articular, conseguiu fazer com que as mulheres que viviam a depressão, a violência, que não encontravam mais expectativa na vida, conseguissem fazer da sua luta, uma luta coletiva. “A organização comunitária é a marca da Tia Délia, junto com a alegria, com a vontade de viver e de mudar as coisas”, pondera.

Já Lucy acredita que o legado da mãe será o exemplo às mulheres da Vila Cruzeiro de que elas podem mais. Adélia acreditava que elas poderiam mudar a vida, poderiam ir além, tal como ela mesma foi.

“Ela poderia ter desistido no meio do caminho, tinha filhos, uma certa idade… mas não desistiu e eu notava nas falas dela que ela não desistiu pra mostrar pra essas mulheres que elas também poderiam chegar lá. Ela queria mudar o mundo aqui dentro da comunidade”, afirma Lucy. “Se mudasse aqui, pra ela, já era mudar o mundo.”

Os sonhos dessas mulheres, como disse Tia Délia, se realizam.


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