Geral
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3 de março de 2022
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16:59

Mulheres da Cruzeiro transformam escola fechada pelo governo em centro de esperança

Por
Luciano Velleda
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Após fechamento da Escola Alberto Bins, em 2018, mulheres da Vila Cruzeiro ocuparam o prédio para criar a sede do coletivo Preta Velha. Foto: Luiza Castro/Sul21
Após fechamento da Escola Alberto Bins, em 2018, mulheres da Vila Cruzeiro ocuparam o prédio para criar a sede do coletivo Preta Velha. Foto: Luiza Castro/Sul21

Por trás da porta gradeada que leva ao pátio dos fundos, Tatty Cardoso observa o mato alto na antiga Escola Estadual de Ensino Fundamental (EEEF) Alberto Bins, na vila Cruzeiro do Sul. O olhar distante parece rever os dias em que ela era menina e, como aluna, corria ali mesmo naquele terreno, agora com ares de abandono. A vista percorre o prédio dos fundos, desocupado desde quando a escola foi fechada pelo governo estadual, em 2018. Observado daquele ponto, o cenário de um colégio abandonado é um tanto desolador.

Junto com suas companheiras, entretanto, Tatty tem planos audaciosos para o local onde estudou todo o ensino fundamental, da 1ª à 8ª série. O mato ainda alto não deve durar muito mais tempo. Ao menos esse é o desejo. No desocupado prédio de tijolo à vista, por fora em bom estado de conservação, mas por dentro de doer n’alma, ela visualiza a construção de uma cozinha comunitária que servirá para aplacar a fome de quem mais precisa num dos maiores bairros de Porto Alegre.

Sem tirar os olhos do pátio, Tatty recorda o pedido feito pela filha anos atrás, cerca de um mês antes da menina falecer. Não foi uma demanda simples em meio a uma situação familiar dramática. A filha de 9 anos lhe pediu para “comprar uma casa grande para ajudar as pessoas”. Se a dor da perda jamais some no coração de mãe, o insólito pedido parece hoje se tornar realidade. E ali, em plena vila Cruzeiro, na escola que um dia abrigou quase mil alunos, Tatty é hoje vice-presidente do Coletivo Preta Velha, iniciativa que tem transformado em centro comunitário a escola que o governo de José Ivo Sartori (MDB) não quis mais.

Vista do prédio dos fundos da antiga escola, onde as integrantes do Coletivo planejam criar uma cozinha comunitária. Foto: Luiza Castro/Sul21

O trabalho social sempre esteve presente na vida desta mulher de 38 anos recém completos. Ainda assim, realizá-lo agora, na escola da infância, tem uma carga emocional especial. A origem do coletivo remonta ao final de 2018, quando um grupo de mulheres decidiu ocupar a escola desativada.

Durante o período em que permaneceu sem a vida e a agitação de outrora, com alunos, professores e funcionários, o espaço foi dominado por usuários de drogas. Para adentrar no terreno, foi preciso negociar com grupos que comandam o tráfico na região. E durante o esforço de limpeza do prédio situado de frente para a rua, até mesmo o corpo de uma pessoa morta foi encontrado – supostamente vítima de overdose.

Da esquerda para a direita: Tatty Cardoso e Tássia Amorim, integrantes do Coletivo Preta Velha. Foto: Luiza Castro/Sul21

“Cheguei a me emocionar quando entrei. Estudei aqui, foi muito impactante”, recorda Tatty, vestindo calça preta e usando um colar com pingente da letra T sobre a camiseta azul. “Começamos a entrar pelo portão da frente. Assim decidimos ocupar o espaço.”

Após a limpeza e organização do prédio frontal da antiga escola, aos poucos a condição de abandono foi ficando para trás, e o espaço começou a ser preparado para acolher a comunidade. Nem mesmo o início da pandemia do novo coronavírus, em março de 2020, arrefeceu o ânimo do grupo de mulheres. Pelo contrário. A crise sanitária, logo seguida da perda de emprego e renda, principalmente das famílias mais vulneráveis do bairro, reforçou os laços do Coletivo com a comunidade por meio da doação de alimentos e da distribuição de marmitas.

“A pandemia não nos enfraqueceu, nos fortaleceu. E a comunidade percebeu isso”, assinala Adélia Azevedo Maciel, presidente do Coletivo Preta Velha e carinhosamente chamada de Tia Délia. O nome do grupo é em sua homenagem. Tia Délia é a própria “Preta Velha”, ex-agente de saúde no Postão da Cruzeiro, com serviços reconhecidos no bairro.

Aulas de defesa pessoal são oferecidas gratuitamente para mulheres e LGBTs. Foto: Luiza Castro/Sul21

Além da alimentação, com o tempo, serviços diversos começaram a ser oferecidos no espaço: aulas preparatórias para a prova do Enem; aula de capoeira para crianças e adolescentes; e de defesa pessoal para mulheres e LGBTs. A arte marcial para defesa pessoal visa especificamente o público mais vulnerável a violência. Houve ainda ações no Dia das Crianças, no Natal Solidário e assessoria jurídica. Há pouco tempo teve início atendimento psicológico prestado por uma professora e uma aluna de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Tudo gratuitamente.

“A gente aposta na educação pra transformação das pessoas”, explica Tássia Amorim, integrante do Coletivo e assessora parlamentar da vereadora Bruna Rodrigues (PCdoB).

Ela conta com brilho no olhar o desfile de moda que marcou as comemorações do Novembro Negro em 2021, lembrado com particular carinho. “O desfile da quebrada.” A ideia foi dar um pouco de colorido e beleza à data normalmente símbolo de luta do povo negro.

“Foi lindo, de chorar”, diz Tássia, apontando no segundo andar do prédio o local por onde as modelos saíram com suas roupas afros para receber o aplauso do público presente. “Tava todo mundo emocionado. Teve slam, teve poesia… Foi uma agenda que mostrou que a comunidade está aqui”, afirma a assessora, também estudante de Pedagogia na UFRGS.

Há quatro salas no segundo andar do prédio, sendo uma para a aula de capoeira e outra para a de defesa pessoal, esta montada com um grande tatame azul e vermelho de EVA. No andar térreo fica a biblioteca comunitária, com muitos livros didáticos, de poesia, de ficção e não ficção, misturados a diferentes tipos de brinquedos. Ao lado fica a futura sala de corte e costura, dominada por duas grandes máquinas que foram doadas e ainda precisam de conserto. O mesmo espaço serve também como cozinha improvisada – enquanto o projeto da cozinha comunitária no prédio dos fundos não sai do forno. Ainda no andar térreo há a sala de aula usada para cursos, com planos de servir como reforço escolar.

Ex-agente de saúde, Tia Délia é a “Preta Velha” que dá nome ao coletivo de mulheres que atua na Vila Cruzeiro. Foto: Luiza Castro/Sul21

Com tudo sendo feito à base de doações, elas sabem que há muito trabalho pela frente. Pelo Instagram, o Coletivo Preta Velha divulga suas ações e pede recursos. “A gente busca a parceria de todo mundo. Somos um coletivo sem fins lucrativos, tudo que a gente ganha já é investido. Tudo que temos aqui, a gente ganhou”, explica Tássia.

A difícil situação alimentar na Vila Cruzeiro do Sul é a razão de ser do projeto da cozinha solidária. A intenção é distribuir comida para quem mais precisa na comunidade. E não falta quem necessite, infelizmente.

“A fome não tem endereço. Queremos ampliar pra ‘grande Cruzeiro’. Não pode alguém ficar de barriga vazia e ver a nossa porta aqui fechada”, destaca Tia Délia, com as unhas pintadas de amarelo em bonito contraste ao vestido camuflado em tons de verde.

O terreno onde se localiza a antiga escola Alberto Bins, assim como o da Escola Municipal de Ensino Infantil (EMEI) Tronco, bem ao lado, pertence à União. Desde que o governo estadual acabou com as atividades ali, nunca ninguém apareceu para tratar da posse do prédio. E se aparecer, as mulheres do Coletivo garantem já ter um dossiê pronto para reivindicar a permanência no espaço.

Beloni Pereira encontrou no espaço da antiga escola a oportunidade para expor seu brechó. Foto: Luiza Castro/Sul21

Beloni Lima Pereira, de 49 anos, era uma mulher habituada aos mais diversos trabalhos. Limpeza, auxiliar de cozinha, cuidar de criança, a rotina atarefada era sua marca desde os 16 anos, quando começou a trabalhar. Em 2020, tudo mudou. Com a pandemia, as oportunidades foram desaparecendo, até inviabilizar seu sustento.

“Tá difícil conseguir emprego. Perdi os trabalhos na pandemia, desde que começou, não consegui mais emprego”, lamenta. “Aí é só na base da ajuda, da força das amigas”, conta Beloni. Ao lado, o sorridente filho Gabriel, de 7 anos, observa a mãe dar entrevista enquanto mantém a bola de futebol junto aos pés descalços.

A ajuda das amigas lhe abriu as portas da antiga escola para ela montar seu brechó. Logo na entrada do prédio, caixas e mais caixas de roupas dominam o ambiente, com outras tantas pilhas montadas sobre uma extensa mesa. A oportunidade veio em boa hora. Beloni explica que expor o brechó no espaço do Coletivo Preta Velha chama mais atenção, até por ficar bem de frente para a movimentada rua do bairro.

O brechó de Beloni é mais uma das iniciativas promovidas pelo grupo que reabriu a antiga escola Alberto Bins e, dos escombros do esquecimento, começou a dar vida nova ao espaço. Entre as ideias que já vingaram e as que ainda estão no campo das intenções, Tia Délia se empolga com o futuro que vislumbra. “A gente tem sonhos pra cá, e nosso sonhos se realizam”, fala com convicção.

E quem sabe se, nesse pedaço de Porto Alegre, não esteja mesmo nascendo a “casa grande para ajudar as pessoas” que a filha de Tatty pediu para a mãe antes de partir.

A ampla biblioteca comunitária criada numa das salas da escola desativada em 2018. Foto: Luiza Castro/Sul21
A sala usada para cursos e oficinas, com planos de oferecer também reforço escolar para os estudantes do bairro. Foto: Luiza Castro/Sul21
Fechada em 2018 e abandonada pelo poder público desde então, há muito a ser consertado na antiga Escola Alberto Bins. Foto: Luiza Castro/Sul21
Espaço transformado em biblioteca comunitária pelas mulheres do Coletivo Preta Velha. Foto: Luiza Castro/Sul21

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