Na manhã desta quinta-feira (19), a ocupação Kasa Okupa Cultural Jiboia foi alvo de uma ação da Prefeitura de Porto Alegre que cumpria decisão judicial para a derrubada de um muro que separava o terreno da ocupação do Museu Joaquim José Felizardo, na rua João Alfredo, Cidade Baixa. Após a demolição da estrutura, que segundo o Município corria risco de desabamento, as máquinas seguiram e derrubaram parte da moradia, o que provocou revolta em quem ocupava a casa e levou a uma resposta truculenta do Batalhão de Choque da Brigada Militar (BM).
No início de outubro, as pessoas moradoras foram surpreendidas com uma escavadeira derrubando parte da estrutura. Para barrar a demolição, subiram no muro, o que obrigou o cessar das máquinas. Parte da moradia das pessoas acolhidas pela ocupação, especialmente mulheres, pessoas LGBTQIAP+ e crianças, que tinha parede junto ao muro, foi comprometida, expondo pertences à chuva.
Ainda no dia da demolição, moradores do espaço realizaram uma reunião com representantes da Secretaria Municipal de Cultura, onde dizem ter acordado com o secretário Henry Ventura uma pausa na derrubada. Uma nova reunião com a Secretaria aconteceria amanhã, de acordo com as pessoas moradoras, que foram novamente surpreendidas pela ação.
Durante a ação da Prefeitura, houve dois momentos de repressão da BM contra as pessoas moradoras que aguardavam na rua. O primeiro, por volta do meio-dia, aconteceu após manifestantes barrarem a entrada da retroescavadeira. O Batalhão de Choque agiu com bombas de efeito moral. A vereadora suplente Atena Beauvoir Roveda (PSOL) pisou em uma das bombas durante a ação policial, que explodiu na hora. Ela foi encaminhada para o Hospital de Pronto Socorro pelo SAMU.
Já o segundo ataque aconteceu durante a tarde, em resposta à reação das pessoas moradoras à derrubada das estruturas da casa, após a finalização da demolição do muro. Em choque e sem saber se seus pertences haviam sido perdidos, algumas delas forçaram o portão, entrando na área da ocupação. Quem entrou no local foi perseguido por policiais militares.
Diversos manifestantes foram feridos por balas de borracha, bombas de efeito moral e spray de pimenta. Duas pessoas foram derrubadas por policiais e agredidas na saída do portão. A BM formou um cordão barrando a passagem dos manifestantes. Uma mulher moradora do prédio vizinho à ocupação estava levando o lixo a caminho de uma parada de ônibus quando foi agredida e detida pela força policial.
Há pouco, ação de reintegração de posse entrou na Okupa Jiboia, na Cidade Baixa, e derrubou muro e estrutura da moradia da ocupação. Pessoas moradoras reagiram, choque partiu pra cima. Situação segue turbulenta. @sulvinteum pic.twitter.com/6dxeIPLRUg
— Duda Romagna (@dudaaromagna) October 19, 2023
O advogado Rafael Madeira da Veiga, assessor parlamentar que acompanhava a ação, auxiliou a mulher presa. “O policial obstruiu a passagem dela, empurrou e ela reagiu à agressão. Em seguida ela foi conduzida até dentro do ônibus do Choque. Tinha a presença de uma mulher e em vez dela fazer abordagem, o soldado homem fez. Ela não conseguia se comunicar com as pessoas que estavam do lado de fora, então eu fui acompanhar o registro do termo circunstanciado para garantir que não tivesse exageros na ocorrência, e ela foi liberada. Ela tem marcas da algema e da torção no braço. Eles disseram que foi necessário o uso de uma força proporcional para conter ela”, explicou.
Após a formação de um cerco na rua, manifestantes se dispersaram. Uma pessoa foi presa na rua José do Patrocínio, acusada de agressão ao patrimônio enquanto fugia da repressão.
De acordo com o subcomandante do 9º BPM, Major Riccardi, que coordenou a ação, a polícia foi alvo de hostilização pelos manifestantes que não aceitaram o pedido de saída do local. “Quando eu vi, estava bastante cheio aqui, com hostilização, principalmente para a Brigada Militar, como se nós fossemos assim… Nós estamos aqui para garantia da ordem. Eles não permitiram o acesso da máquina e foi feita mais uma vez uma verbalização, da minha parte, como o comandante da operação, para que se retirassem. Então foi montada a linha do nosso pelotão de controle de distúrbios. Foi feita a utilização do gás, que é o primeiro instrumento de uso da força”, afirmou.
“Depois começou a hostilização com apedrejamento contra o efetivo do Batalhão de Choque, então foram utilizadas todas as técnicas de controle. Eles invadiram um perímetro isolado por nós. Eu mesmo fui objeto de hostilização física, a tropa teve que agir mais uma vez”, declarou, sobre a segunda ação de repressão. Segundo ele, um policial foi ferido por uma pedra.
A decisão judicial de ontem (18) exige a reconstrução imediata da estrutura, o que deve ser feito na sexta-feira (20). “Após a derrubada, caberá à municipalidade providenciar a imediata reconstrução do muro do imóvel lindeiro, em material original ou similar, e, ainda, acompanhado de responsável técnico para tanto”, diz o documento.
Para o procurador-geral do Município, Nelson Marisco, as pessoas moradoras não se dispuseram ao diálogo e a iminência de queda do muro justificou a ação. “Nós reiteramos pro juiz que especialmente os engenheiros da Secretaria da Cultura nos disseram que o muro iria ruir dependendo da quantidade de chuvas”, disse.
Marisco ainda afirmou que a estrutura da moradia da ocupação pode ter piorado o estado do muro. “Foi feita a derrubada de muro e, por conta disso, as paredes que estavam apoiadas no muro, que talvez eram a causa da ruína do muro, ficaram bambas, o que implicou na necessidade de demolição delas.”
“Muito provavelmente, diante de tudo que está acontecendo, talvez o Município tenha que tomar uma atitude mais drástica, dependendo da situação, por conta desse conflito de hoje”, completou. Questionado sobre que atitude poderia ser essa, ele sugeriu a desapropriação do imóvel onde fica a ocupação.
Somente por volta das 16h as pessoas puderam voltar ao local da ocupação, onde encontraram destroços de tijolos e madeiras. A coordenadora estadual do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM-RS), Ceniriani Vargas da Silva (Ni), relatou que a maior preocupação era com o retorno das pessoas ao espaço. “Primeiramente a Procuradoria-Geral do Município dizia que eles não tinham direito de retornar para ali, porque era uma propriedade privada, que não era deles, sendo que a ocupação já existe há mais de dois anos, já tem água e luz no nome das pessoas que moram ali”, explicou.
Para ela, a ação implicou na destruição de um espaço de acolhimento construído pela comunidade. “Ficou muito evidente aqui todo o processo de violação de direitos, é uma ocupação que tem uma característica, de ser de mulheres e pessoas trans, LGBTQIAP+, que é uma população que já vive uma série de violências e de vulnerabilidades. Agora sofrem mais esse ataque por parte da Prefeitura. Estão construindo um espaço de resistência importante para garantir sua própria existência também, é muito doloroso ver as pessoas entrando ali e chorando. Estão tentando se proteger, acho que isso é muito simbólico. Estavam construindo um lugar de proteção, o mundo inteiro persegue eles, estavam construindo um lugarzinho seguro para ficar”, finalizou.
Confira imagens do que restou da moradia: