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19 de outubro de 2023
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06:23

Cercado por muros e desconfianças, Quilombo Vila Kédi tem futuro incerto

Por
Luís Gomes
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Território é reivindicado como Quilombo Vila Kédi por moradores que descendem de famílias que se instalaram na região há mais de 100 anos | Foto: Luiza Castro/Sul21
Território é reivindicado como Quilombo Vila Kédi por moradores que descendem de famílias que se instalaram na região há mais de 100 anos | Foto: Luiza Castro/Sul21

Localizada ao lado do Country Club de Porto Alegre, entre as avenidas Nilo Peçanha e Frei Caneca, bairro Boa Vista, a Vila Kédi tem esse nome em referência à função de “caddie”, que no golfe é usada para se referir ao responsável por carregar os tacos dos jogadores, quase sempre ligados à elite econômica de uma cidade.

De acordo com o laudo antropológico apresentado no âmbito do processo de regularização fundiária da área como território quilombola, em andamento no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), os moradores mais antigos do comunidade foram José Dutra Gonçalves, falecido em 1988, aos 98 anos, e Maria Otília Gonçalves (Dindinha), falecida em 1998, aos 105 anos. José Dutra teria se instalado na região ao chegar a Porto Alegre com 20 anos, no início do século 20.

Desde então, seus moradores estiveram entre a mão de obra empregada no próprio Country Club e na expansão da região, marcada pela construção do shopping center Iguatemi e da abertura da Av. Nilo Peçanha nos anos de 1980. Quem passa pela avenida, mesmo diariamente, pode nunca ter percebido que, entre uma corretora de imóveis e uma loja de acabamentos de alto padrão, está a comunidade instalada há mais de um século na região.

A cerca de 500 metros da Kédi fica a chamada “esquina mais desejada de Porto Alegre”, segundo anúncio da incorporadora CFL, que voltará a ser citada mais adiante.

A reivindicação quilombola é feita por uma parte das mais de 100 famílias — os números variam entre 100 e 120 pelos relatos da Prefeitura, Defensoria Pública do Estado (DPE) e da associação dos moradores do Quilombo Vila Kédi. Uma outra parte da comunidade, que somaria ao menos 40 famílias, está em negociação com a DPE e com a Procuradoria-Geral do Município (PGM) para deixar o local.

No dia 19 de setembro, o Sul21 publicou uma reportagem que informou que, em assembleia, moradores da Kédi reafirmaram a posição de permanecer no local, resistindo a propostas de reassentamento e reforçando o pleito para a demarcação da área como comunidade quilombola. A situação, contudo, demandava uma análise mais aprofundada devido a sua complexidade.

 

Quilombo Vila Kédi ocupa uma pequena área junto ao Country Club | Foto: Reprodução/NEGA

A área reivindicada como território quilombola é de cerca de quatro hectares, mas a área ocupada atualmente pelas famílias da Vila Kédi, que se auto reconhecem como quilombolas ou não, é de menos de um terço. Na prática, a Kédi ocupa as margens da Diretriz Viária 1513, traçado previsto no Plano Diretor de Porto Alegre para uma rua que passaria pela comunidade. Ao lado do Quilombo Silva, localizado do outro lado da Av. Nilo Peçanha, a Kédi é hoje um dos poucos resquícios de uma das regiões marcadas pela presença negra no início do século 20.

Vice-presidente da associação quilombola, Tânia, 52 anos, ligada ao tronco da família Dutra, conta que, quando nasceu, morava no Quilombo Silva, com seu avô fazendo parte da comunidade original de lá. “Às vezes, ele vinha para Kédi. Depois de um tempo, nós descemos para cá. A minha mãe tinha um bar. A minha mãe trabalhava, a gente ia para o colégio”. Mãe de 7 filhos, todos criados na Kédi.

Ela conta que a comunidade já foi muito maior e que ela se mudou antes mesmo da existência da Av. Nilo Peçanha como é conhecida hoje. “Nós vínhamos pelo barranco. Eu me lembro que não tinha água, a minha mãe mandava a gente buscar água numa vertente de galão, eu tinha pavor.”

 

Comunidade se encontra entre muros e empreendimentos de ambos os lados | Foto: Luiza Castro/Sul21

Para Tânia, o que está em andamento é um processo de achatamento e cercamento da comunidade. “Cada vez, eles estão nos oprimindo, apertando daqui e dali, porque a nossa comunidade era todo esse terreno aí. Agora estamos só nesse trilho, e mesmo assim querem nos tirar, onde nossos avós nos criaram”.

Como exemplo desse processo, ela destaca que, em 2021, foi erguido um muro que separa a Kédi de um empreendimento imobiliário futuro. Do outro lado, está outro muro, de um empreendimento em construção. No final da década passada, uma área que antigamente abrigou o terreiro da Mãe Teresa virou estacionamento de uma concessionária.

A reportagem do Sul21 conversou com ela em uma visita que se iniciou junto à sede da associação, um dos primeiros imóveis da comunidade. Erguido sob uma figueira, um marcador ligado a Exu, aquele que abre os caminhos, o imóvel no passado abrigou o terreiro de Mãe Eva, mas em 2011 havia sido convertido em capela. Outro terreiro famoso da região, da Mãe Dorsa, na Vila Mirim, deu lugar aos atuais Parque Germânia e o empreendimento de alto padrão Jardim Europa.

 

Sede da associação quilombola está localizada sob um grande figueira | Foto: Luiza Castro/Sul21

A associação destaca que a área reivindicada é maior do que a atual e lembra que parte do território já foi tomado ao longo do tempo. A Kédi já teria abrigado até 130 famílias e, no passado, incluía áreas de plantação e de chiqueiro que atravessavam a Av. Nilo Peçanha.

A área onde hoje se encontra uma concessionária de carros, por exemplo, era um banhado preservado, do qual ainda restam seringueiras, algodoeiros e figueiras, que são elementos de marcação territorial de matriz africana.

Advogado da associação dos moradores do Quilombo Vila Kédi e da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, Onir de Araújo diz que o processo para regularização fundiária como território quilombola está aberto desde 2021 por solicitação da comunidade.

Ele pontua que, desde então, o Ministério Público Federal (MPF) solicitou a abertura do processo administrativo junto ao Incra, o que foi feito, e já foram concluídas duas peças previstas na Instrução Normativa nº 57/2009 do Incra: o laudo antropológico e o pleito territorial da comunidade, que envolve uma área de quase 4 hectares.

O processo atualmente está em fase de execução do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Em caso de reconhecimento do pleito, é emitida uma Portaria de Reconhecimento do território pelo presidente do Incra.

No dia 9 de outubro, a Fundação Cultural Palmares (FCP), por meio da Advocacia-Geral da União, encaminhou à 4ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre um pedido de que o processo referente à Kédi que tramita na Justiça gaúcha seja remetido à Justiça Federal, sob o argumento de que ele envolve autarquia e fundação federais. No caso, o Incra e a própria FCP. A manifestação também solicita que a FCP seja incluída no processo na condição de assistente simples da parte ré e pontua que já foi iniciada e concluída Certificação de Auto Reconhecimento da Comunidade Remanescente do Quilombo Vila Kédi no âmbito da entidade.

Os descendentes diretos dos fundadores da comunidade, que se auto reconhecem como quilombolas, seriam de 20 a 30 famílias, com as demais tendo laços mais ou menos próximos, incluindo famílias que chegaram à comunidade posteriormente, sem vínculos diretos.

 

Terreno ao lado da Kédi, cercado para empreendimento imobiliário futuro | Foto: Luiza Castro/Sul21

Secretário de Habitação e Regularização Fundiária de Porto Alegre, André Machado pontua que, quando o prefeito Sebastião Melo (MDB) assumiu a Prefeitura de Porto Alegre, em janeiro de 2021, havia uma proposta em aberto para a área. Dentro do termo de conversão de área pública (TCAP) a ser firmado entre Prefeitura e a Country Empreendimentos Imobiliário LTDA — que tem como um de seus parceiros a incorporadora CFL –, as famílias da Kédi deveriam ser contempladas com o bônus moradia, que, na época, tinha o valor de R$ 78 mil.

O TCAP citado por Machado é referente ao parcelamento do solo de um terreno localizado na Av. Marechal Andrea, nº 350, dentro da área reivindicada pelos quilombolas. Pelo termo, a Country Empreendimentos Imobiliário ficaria responsável por custear o reassentamento das famílias que residem sobre o leito viário do prolongamento da Rua Frei Caneca, isto é, da Diretriz Viária 1513.

Machado diz que, pessoalmente, o primeiro contato que teve com a situação da Kédi foi em uma reunião promovida pela Comissão de Urbanização, Transportes e Habitação (CUTHAB) da Câmara Municipal de Porto Alegre, no primeiro semestre de 2021. Segundo o secretário, a reunião ocorreu antes da oficialização da reivindicação da área como território quilombola.

Ele diz que o processo de reassentamento das famílias é referente a uma decisão judicial de 2014, motivada por uma ação ajuizada pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS), em que o município foi condenado ao cadastramento e realocação das famílias.

“Esse processo ficou lá transitado em julgado e parado até que o governo Marchezan mexeu nele como um pedido para que a empresa que vai fazer uma obra, que não afeta a Kédi, ou a Kédi não afeta a obra, executasse algo que há muito tempo estava planejado no município, que é o complexo viário que envolve a Frei Caneca”, diz.

O promotor de Justiça de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística de Porto Alegre, Luís Felipe Tesheiner, explica que a motivação inicial do Ministério Público do Rio Grande do Sul para o processo que culminou na condenação do município de Porto Alegre a reassentar as famílias da Vila Kédi foi a “necessidade de regularização fundiária e urbanística, porquanto ocupada irregularmente área sobre a Rua Projetada Osório Tuiuty e ausente infraestrutura básica”.

Ele pontua que o não cumprimento da decisão decorre do desenvolvimento de tratativas visando um acordo com os moradores, o que seria uma medida sempre mais desejável do que uma decisão imposta.

 

Reunião Conjunta das Comissões CUTHAB e CEDECONDH na Vila Kédi para conversar com representantes da comunidade no próprio local, com a presença do Secretário André Machado, em 2021 | Foto: Elson Sempe Pedroso/PMPA

André Machado diz que visitou a comunidade em duas oportunidades, acompanhando vereadores da Cuthab e o Ministério Público, em que pode perceber problemas de infraestrutura, especialmente quanto à falta de saneamento básico adequado. “A vila não tem uma boa condição de infraestrutura que se possa dizer que aquelas pessoas que estão lá vivam dignamente”.

Machado diz que, diante de não ocorrer avanços na questão quilombola, o município avançou com a proposta de reassentamento.

Ele explica que a proposta anterior foi retirada e que foi pedido à CFL que fosse desenvolvido um projeto de habitação popular em um terreno de propriedade do município, o que deu origem à proposta de construção de um conjunto residencial na Rua Sotero dos Reis, bairro Passo das Pedras, apresentada à comunidade em audiência pública na escola Bahia, em 15 dezembro de 2022.

À época, diz Machado, as famílias que não quisessem ir para o empreendimento, teriam a opção de acessar o bônus-moradia, então com valor atualizado de cerca de R$ 90 mil — hoje está em R$ 128 mil, segundo o secretário.

A mudança foi rejeitada amplamente pelos moradores que participaram da reunião.

O secretário avalia que a proposta de reassentamento no residencial da Sotero dos Reis era “digna”, mas diz que não está mais na mesa, sendo agora estudada para ser inscrita no programa Minha Casa Minha Vida. “Disseram, não. O prefeito disse: ‘ok, estou pedindo ao Ministério Público que faça ação rescisória’, porque o MP é autor da ação. Não dá 24h, no outro dia de manhã, começa no whatsapp do Demhab (Departamento Municipal de Habitação) e no meu pessoal, que está nas redes sociais, a receber contatos de moradores da Kédi”, diz.

Segundo o secretário, as mensagens eram de moradores que confirmavam que não concordavam com a mudança para a Sotero dos Reis, mas que tinham intenção de deixar a comunidade e gostariam de continuar conversando. Ele diz que, em resposta, sugeriu às famílias que procurassem a Defensoria Pública, que seria o canal adequado para tratar de direitos de pessoas em situação de vulnerabilidade.

A defensora pública Ana Carolina Zacher, que está atuando com as famílias da Kédi, explica que participou da reunião realizada na escola Bahia e que, à época, acreditava que a rejeição à proposta feita pela Prefeitura significava que a comunidade tinha um pensamento uniforme, o que seria algo comum à realidade de outros quilombos urbanos com os quais trabalhara. Ainda assim, afirma que, após a reunião, colocou-se à disposição para auxiliar as famílias, mesmo pontuando que, por se tratar de área com reivindicação quilombola, seria de alçada da Defensoria Pública da União.

Entre o Natal e o Ano-Novo de 2022, foi procurada pelo secretário André Machado, que a informou de que famílias estavam interessadas em negociar uma solução alternativa de reassentamento. Essas famílias afirmavam, segundo a defensora, que não se identificavam como quilombolas.

Uma reunião foi marcada para o dia 6 de janeiro com as famílias que manifestaram intenção de deixar a Kédi, mas para a qual também apareceram representantes das famílias quilombolas e de movimentos sociais.

“As pessoas [que desejam sair] relataram que, de fato, moram ali há décadas, que fizeram marmita para quem construiu o Iguatemi. Mas que não se identificavam como quilombolas e que não queriam morar mais ali pelas condições. Eles queriam aproveitar a oportunidade para se mudar, mas não aceitavam o que foi proposto para o município inicialmente”, diz Ana Carolina.

“Foi uma reunião bastante tensa, porque foram também os que queriam ficar e pessoas ligadas ao movimento negro e à frente quilombola. As pessoas começaram a dizer: ‘eu não sou quilombola, eu quero sair’”, afirma André Machado.

A defensora afirma que, em fevereiro deste ano, desejava marcar uma visita à Kédi, mas que se sentiu rechaçada. “Eu percebi que as pessoas estavam se sentindo invadidas pela nossa proposta de ir lá”.

Diante deste cenário, foi aberto, então, um espaço para as pessoas irem à Defensoria. “Até que lá, em maio, tinha muita gente nos procurando, fomos até o local para ver se, de fato, aquelas pessoas moravam lá”.

Ana Carolina afirma que marcou atendimentos individuais com cada pessoa que já tinha procurado a Defensoria e que as pessoas expuseram o desejo de sair porque a comunidade estava desgastada.

Ela diz que sugeriu que, antes do reconhecimento pelo Incra, se promovesse a urbanização do local, que sofre com falta de esgoto, instalações de energia elétrica precárias, entre outros problemas de infraestrutura.

A ideia teria sido rechaçada por pessoas que desejavam sair por causa desse desgaste na relação. Contudo, pontua que algumas famílias que desejam sair se mostraram abertas a esperar essa possibilidade de qualificação da área.

O secretário André Machado diz que, na reunião de 6 de janeiro, 40 famílias manifestaram interesse em deixar a comunidade. Esse número teria aumentando posteriormente para cerca de 70 famílias, o que motivou a DPE a solicitar apoio ao Demhab, subordinado à pasta de André, para fazer uma verificação e confirmar se as pessoas, de fato, moravam na Kédi.

Até o dia 10 de outubro, a Defensoria trabalhava com o número de 40 famílias identificadas que estavam em processo de negociação para recebimento da indenização.

Simultaneamente, Machado diz que foram realizadas conversas com a construtora CFL, Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) e DPE, em que surgiu a possibilidade de indenizar as famílias que desejam deixar a Kédi com um pagamento de R$ 180 mil. “Para quem quisesse sair. Se forem 44, 44. Se forem 60, 60”, diz.

Machado afirma que o Demhab visitou as famílias que procuraram a Defensoria, mas que nunca foi feito um cadastramento geral e que não foram visitadas famílias que não manifestaram o interesse de sair da Kédi.

O objetivo da visita teria sido confirmar que as pessoas moravam na comunidade e, segundo ele, ocorreram casos em que pessoas foram tiradas da lista de famílias em negociação para receber a indenização por não terem sido encontradas.

 

Foto: Luiza Castro/Sul21

Para o secretário André Machado, a situação da Kédi trata da coexistência de dois direitos: o das famílias que querem ficar e daquelas que desejam sair. “Tem dois direitos que podem andar juntos, que é o direito de quem quer sair. Tem uma oportunidade agora e, se não aproveitar, não vai mais ter. E, do outro lado, a demanda dos que querem ficar. A gente precisa discutir a inserção dessas áreas quilombolas urbanas na vida da cidade. Não podem ser territórios apartados da vida da cidade. Isso é que imagino para a Kédi.”

Segundo o secretário, o Plano Diretor de Porto Alegre prevê, para a atual área da Kédi, duas praças e o prolongamento da rua. Ele afirma que não há nenhuma outra reivindicação para a área, sem qualquer possibilidade de ser passada para empresas privadas.

Também diz que não há, de parte da Prefeitura, questionamento sobre o território quilombola fora do processo no Incra.

“A Prefeitura não quer se adonar do território. O que a gente imagina que possa vir a acontecer, e eu acho que o tempo e deixar a poeira baixar vai permitir, é que as pessoas que querem permanecer e se autodeclaram quilombolas entendam que a gente pode aproveitar esse momento, através deste termo de conversão, e transformar aquele território, com a permanência das pessoas ali ou com uma readequação do território. Se entender que tem que se abrir a via, se abre a via e se reposiciona a comunidade. Se for de outra forma, mas, enfim, que a gente possa ter uma situação melhor”, afirma.

Contudo, ele também pontua que há, dentro da Prefeitura, questionamentos sobre a pertinência da reivindicação. “Tem laudos que dizem que não é um território quilombola, que é um núcleo urbano informal, como tantos outros em Porto Alegre, carente. Tem um laudo de um antropólogo nesse sentido”.

Ana Carolina também avalia que há dois direitos em questão, pontuando que eles seriam compatíveis. Ela descarta qualquer chance da área ficar com empresas privadas, por se tratar de uma área municipal, mas reconhece que esta é uma preocupação. “Eu compreendo, porque é uma comunidade que está sendo espremida há décadas ali. Eu entendo que eles sintam que é a apertada final, e é”.

 

Foto: Luiza Castro/Sul21

A defensora Ana Carolina diz que a partir das conversas que teve após a recusa da proposta de reassentamento na Sotero dos Reis ficou claro que um dos elementos que envolvem a situação da Kédi é o rompimento da unidade da comunidade. “A grande coisa é que eles não querem mais morar juntos”, diz, a respeito dos moradores que desejam sair da Kédi.

Com isso, a Defensoria passou então a conversar com a Prefeitura, MP e CFL na busca por alternativas para o reassentamento, tentando encontrar a melhor proposta para as famílias, o que resultou na ideia do pagamento de indenizações. “Bônus-moradia é um valor baixo, considerando que eles estão numa área super valorizada. Nós conseguimos uma proposta de indenização de valor muito melhor e não vinculada à compra de um imóvel. Foram R$ 180 mil”, diz.

Ana Carolina explica que as indenizações serão pagas em duas parcelas, uma de entrada e a segunda com a entrega das chaves das novas moradias. As pessoas poderão usar o valor como desejarem, mas precisam garantir a sua situação de moradia. “A gente sabe que é comum a pessoa receber um dinheiro e, daqui a pouco, estar num local irregular novamente. A gente tem que sair de uma situação para melhorar”.

Segundo ela, essa garantia de que empregarão ao menos parte do dinheiro para moradia virá do acompanhamento individualizado das famílias, em que será exigido que as pessoas não comprem ou se mudem para locais inadequados ou irregulares. “Pode ser até área de posse, mas não pode ter nenhuma vedação”.

Contudo, ressalta que esse acompanhamento pela Defensoria só será feito até o momento da compra e pagamento da indenização, com a família podendo negociar o imóvel posteriormente.

O secretário André Machado explica que as indenizações serão pagas com os recursos do TCAP apresentado em 2022, que “em tese” ainda estaria válido. Contudo, durante a conversa com a reportagem, no início de outubro, Machado afirmou que o formato ainda não estava oficializado, pois ainda estaria sendo analisado pela Procuradoria-Geral do Município.

Ainda assim, confirma que a indenização será de R$ 180 mil para as famílias fazerem o que desejarem e que não passa por nenhum programa habitacional, nem municipal, nem federal. Também não é o bônus-moradia, que é pago direto pela Prefeitura ao vendedor. O secretário afirma que a base legal para o pagamento é o processo de 2014.

Uma das moradoras que quer deixar a Kédi é Ângela Maria Oliveira da Silva, 67 anos, há 35 anos na comunidade. Ela diz que a mãe já morava na região e que, quando ficou viúva, com quatro filhos pequenos, um deles com apenas um ano, acabou se mudando para a comunidade para ter ajuda com as crianças. “Era um lugar bom, perto de tudo, mas ultimamente não está ficando mais bom para nós”, diz.

Ângela conta que ela e os quatro filhos, todos adultos e cada um deles morando em uma casa na Kédi, estão negociando para sair. Ela, inclusive, diz já ter encontrado um imóvel para comprar no IAPI e que estava pronta para assinar o acordo para receber a indenização nesta terça-feira (17) — . “A gente quer uma vida melhor. Aqui, a gente não tem espaço para nada. Tá muito difícil. Então, a gente quer uma vida melhor, num lugar melhor do que aqui.”

“Começaram a construir muita casa, a gente ficou sem espaço para nada. Não tem mais aquelas coisas boas que tinha antigamente. Foi muito bom aqui, mas a gente não quer mais, queremos mudar para outra vida melhor. “Uma indenização, um dinheiro para a gente comprar o que quiser, porque aqui nada é nosso. Eu quero uma coisa que seja minha, escriturada, que eu saiba que vou chegar em casa e ela vai estar ali, tudo tranquilo, é minha”.

Uma das coisas que piorou, segundo ela, foi a convivência entre as famílias. Segundo ela, a discussão sobre a permanência ou não da comunidade gerou conflitos. Contudo, também reconhece que a situação, agora, está tranquila. “Os que querem ir embora, vão. E que eles fiquem bem aqui. A gente quer o bem para a gente e para eles também. Eles querem ficar, tudo bem”.

Ângela diz que não se considera quilombola e que, até 2021, não tinha ouvido falar de reivindicação quilombola.

A respeito da proposta da Sotero dos Reis, ela confirma que a rejeição foi unanimidade na comunidade. “Aquela lá ninguém aceitou, porque daí vai todo mundo para o mesmo lugar e as pessoas não querem morar no mesmo lugar, querem morar separadas. Então, a gente se reuniu, não aceitamos, e fomos para a Defensoria”.

 

Foto: Luiza Castro/Sul21

O advogado Onir Araújo diz que um problema central das negociações em andamento com Defensoria e Prefeitura é que os territórios quilombolas são coletivos e não podem ser divididos, não sendo regidos por uma lógica de mercado.

“Se as pessoas querem sair, saiam, ninguém está impedindo. Agora, a pessoa não pode negociar uma história e uma memória que, de repente, não são delas. Isso é inegociável, está na Constituição Federal. Eu não posso chegar dentro de um quilombo e vender, não é assim. Mesmo com o processo ainda em andamento, porque a posse é coletiva da comunidade quilombola”, diz.

Ele argumenta que a Prefeitura e outras partes interessadas terão a oportunidade de contestar no âmbito do processo e que, no final do processo, em caso de reconhecimento do pleito quilombola, indenizações serão pagas para eventuais detentores de posse.

Por se tratar de um próprio municipal, diz que causa estranheza a perspectiva de acordos individuais sem que nenhum projeto tenha tramitado na Câmara de Vereadores a respeito da área. Além disso, pontua que, enquanto o processo está em andamento no Incra, o entendimento já consolidado em jurisprudências seria de que a discussão sobre a matéria possessória deveria ocorrer em âmbito federal, por tratar de tema em discussão na esfera federal.

“Tem um processo aberto no Incra, tem uma manifestação do MP-RS, que era o patrono da malfadada ação, de que tem que se aguardar o estudo feito pelo Incra, ou seja, se manter hígida a posse, que é coletiva, e isso está sendo desconsiderado, tanto pela Prefeitura, que tem atuado de acordo com os interesses de empreendimentos imobiliários, e, para a nossa surpresa, da própria Defensoria Pública do Estado, que está fazendo esses acordos individuais”, diz Onir.

A manifestação à qual o advogado se refere é assinada pela promotora de Justiça Débora Regina Menegat, que atuava no âmbito da ação da Kédi, em 15 de julho de 2022. No documento, a promotora “reitera” o entendimento de que o processo judicial deve ser suspenso “até a decisão acerca de eventual reconhecimento de comunidade quilombola, por se tratar de questão prejudicial, matéria de ordem pública, a eventual reassentamento da comunidade da Vila Caddie” (diferentes grafias são usadas para se referir à comunidade em documentos oficiais).

Procurado pela reportagem, o promotor Luís Felipe Tesheiner, responsável pelo caso no momento, diz que o Ministério Público tem acompanhado as negociações no âmbito judicial e extrajudicial e confirma que decisão judicial está suspensa para a busca de um acordo, considerando que a autodeclaração de parcela dos moradores não interfere nas tratativas.

“O Ministério Público Estadual, assim como o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública e o próprio Município de Porto Alegre vêm atuando na busca de um acordo que possibilite a justa indenização das famílias que desejam sair, a permanência dos autodeclarados quilombolas e também a abertura do traçado viário há décadas previsto para o local”, diz o promotor.

Onir também questiona a origem dos recursos públicos das indenizações, destacando que a indenização não estaria vinculada a nenhum programa habitacional. “Quem vai pagar esse dinheiro para essas pessoas que querem sair? De onde está vindo esse recurso? Como a Prefeitura faz uma negociação de um próprio municipal que tem uma ocupação de um século e que tem um processo aberto de regularização fundiária sob o ponto de vista quilombola?”

Outro questionamento do advogado é quanto à validade do TCAP e o seu uso parcial pela Prefeitura. Onir pontua que, com a rejeição da proposta apresentada à comunidade em dezembro de 2022, o termo não deveria mais estar válido. Destaca também que não há nenhum registro no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) da Prefeitura que indique movimentação no processo relacionada ao termo de conversão.

Diante dos questionamentos, Onir vê “muita insegurança jurídica” nos termos que as pessoas irão assinar, pontuando que elas estão sendo induzidas a acreditar que vão poder dispor do recurso, o que ele questiona. “Não é possível a Prefeitura simplesmente dar dinheiro para as pessoas, mesmo tendo um processo de reintegração de posse, sem ter vinculação com nenhum programa habitacional”, avalia.

As desconfianças da associação quilombola com a Prefeitura não vêm de hoje. Para além do histórico de remoção dos territórios e comunidades negras que marcaram a região nas últimas décadas, há questões mais recentes que contribuíram para este cenário.

Uma delas é o fato de que, durante o governo de Nelson Marchezan Júnior (PSDB), foi prometido às famílias um auxílio rancho de valor de R$ 250, o que acabou sendo usado para o cadastramento das famílias com o objetivo de dar cumprimento à sentença judicial e dar andamento ao processo de reassentamento. “Prometeram uma coisa para fazer outra. Quase ninguém pegou esse cartão e nem esses R$ 250, mas passaram em todas as casas”, diz Tânia.

André Machado diz que deixou claro à comunidade que um cadastro feito pelo Demhab, em 2020, para o pagamento do auxílio não tinha mais validade, porque fora dito para uma coisa e valia para outra. “Eu não validei aquele cadastro”, diz o secretário.

Apesar das falas do secretário André Machado e da defensora Ana Carolina de que não há chances da área passar para a posse das empresas, Tânia vê as manifestações com desconfiança.

“O que ia compensar eles tirarem as famílias e deixar o terreno ali? Lógico que a empresa vai querer pegar. Eles estão com medo, querem atropelar e tomar conta antes que o processo [no Incra] se conclua”, diz. “A realidade não é nada do que eles estão falando. Isso aí é história, porque já tinha até um jagunço aqui para tomar conta do lugar e impedir as pessoas de tomar posse. O prefeito Melo falou que não ia fazer mais nada, que a terra ia ficar com nós, aí chega a Defensoria e a Prefeitura fazer proposta para as pessoas que querem sair. Quer dizer, falam uma coisa, mas não cumprem, é bem complicado, porque o direito é das famílias que moram há mais de 100 anos nessa comunidade”.

Tânia afirma que a associação quilombola não é contra pessoas deixarem a comunidade. “A gente respeita o direito deles de ir embora e eles respeitem o nosso direito de ficar. A gente não quer conflito”.

Para ela, a divisão na comunidade foi provocada pela Prefeitura e pela Defensoria. Contudo, destaca que, no último final de semana, ocorreu uma festa de Dia das Crianças que envolveu toda a comunidade, o que demonstraria que as diferenças não significam uma relação quebrada.

Tânia pontua que um grande problema é as negociações estarem sendo feitas “por baixo dos panos”, sem transparência com os demais moradores. Ela diz que, por exemplo, ouviu nesta segunda-feira (16) que famílias devem começar a deixar a Kédi na próxima semana. “Para tu ver, a gente, que quer ficar, não sabe dessas coisas. Eles estavam bem quietinhos, agora que eu fui saber. E aí como fica? Vão indenizar as pessoas e tomar uma área que é de direito dos quilombolas?”.

Além dos elementos concretos que contribuíram para a desconfiança, há ainda questões mal explicadas e figuras suspeitas que circulariam entre a comunidade. Uma delas seria um segurança de empresa privada, o tal jagunço citado por Tânia. Este homem teria circulado na comunidade supostamente auxiliando no cadastramento das famílias.

Em um vídeo gravado pela Frente Quilombola, o homem aparece conversando com a defensora Ana Carolina. Logo em seguida, ele é questionado por representantes da Frente quanto à sua função. O homem desconversa, dizendo que a questão da comunidade está sendo tratada “pelos grandes” e que as perguntas feitas a ele deveriam ser feitas ao Ministério Público e à Defensoria. Ele ameaça de processo em caso de publicação do vídeo. Questionado se está armado, levanta a blusa para mostrar que não estaria.

Também há relatos de que pessoas de fora da comunidade concedem carona para levá-las à Defensoria.

As desconfianças sobre a relação da defensora Ana Carolina motivaram a associação dos moradores do Quilombo Vila Kédi a encaminhar à chefia e à corregedoria da Defensoria Pública do Estado, em 18 de setembro, um ofício pedindo que representantes do órgão cessem a sua atuação no âmbito do processo de cadastramento das famílias. A ação resultou na abertura de um termo de investigação prévia pela DPE.

 

 

Foto: Luiza Castro/Sul21

Ana Carolina confirmou, na entrevista ao Sul21, realizada no dia 10 de outubro, que tinha tomado conhecimento do ofício, mas que ainda não havia tido tempo para responder.

A defensora diz que ouviu relatos da existência de figuras externas à Prefeitura e à Defensoria atuando na comunidade. Ela afirma que tomou conhecimento sobre boatos de que esteve no local em viatura da Brigada Militar, de que pessoas estariam usando o nome dela de forma inadequada e mesmo que ela própria teria levado um segurança durante a visita. “São coisas que as pessoas vão construindo, eu não sei te dizer”.

A respeito do cidadão do vídeo gravado pela Frente Quilombola, ela diz que foi cumprimentada pelo homem quando esteve na comunidade no dia 15 de setembro, mas que não o conhecia e que a conversa não se estendeu.

Ana Carolina nega que qualquer agente externo tenha autorização para participar de conversas e negociações. “Não a meu pedido, não com a minha ciência e não com a minha autorização. O que ele está falando, não tem nada a ver com a Defensoria”, afirma.

Apesar de avaliar que não é possível precisar que tipo de influência externa há na região, ela confirma que orientou as famílias que não deveriam dar ouvidos para qualquer tipo de figura externa e que todas as informações viriam da Defensoria. “Eu rechaço qualquer participação externa. A única narrativa que eu tive é que tem uma pessoas trazendo os moradores. Eu perguntei, quem é? ‘É um Uber’”

Tânia diz que o suposto jagunço também não retornou à comunidade desde setembro, mas pontua que aguarda a saída das pessoas para saber o que acontecerá.

Para Onir, o que está acontecendo é que, ao tratar da relação com a terra sob o ponto de vista de negociações individuais, há um desconhecimento do pleito quilombola e das implicações previstas na Constituição, o que considera ser uma violência contra a comunidade.

“Eles querem criar uma situação de embretamento, de guetização da comunidade, já esbulharam quase 70% do território. A comunidade está numa tripa, numa faixinha do que antes ela utilizava”, diz. “Eles estão procurando esquentar um novo termo, readequar o termo a uma nova realidade. E, o pior, passando a impressão de que esse é um conflito interno da comunidade. Não, esse conflito veio de fora da comunidade, veio em função dos interesses desses empreendimentos imobiliários e também de um racismo categórico de expulsão daquela presença negra secular na região. Eles já conseguiram remover parte da Vila Mirim, removeram o terreiro da Mãe Dorsa. O bastião de resistência está sendo os Silva, a Kédi e o pouco que sobrou da Vila Mirim, mas as comunidades tradicionais estão sendo, literalmente, esmagadas, expulsas de uma região em que construíram suas vidas há cinco, seis gerações. Essa é a gravidade da violência, porque, na medida que você remove, você elimina os vínculos”, afirma o advogado.

O secretário André Machado avalia que o fato da comunidade ficar “cercada” é inevitável, independente do que acontecer nos processos atuais. “Se sair a obra, vão ser dois paredões, um de cada lado. Essa é uma realidade, não é um desejo nosso. Se tu olhar o projeto, tem um prédio grande que está saindo de um lado e vai ter outro prédio grande do outro lado. Vai ficar um corredor estranho, inclusive com pouca luz, mas tu tem que melhorar a qualidade de quem está ali”, diz Machado.

Questionado sobre o que acontecerá com a área onde hoje estão localizadas as casas das famílias que estão negociando para deixar a Kédi, André Machado diz que o assunto precisa ser discutido com as famílias que irão permanecer, mas pontua que o tema também está em debate na Prefeitura.

“O meu entendimento, e quem vai esclarecer isso é a Fundação Cultural Palmares e o Incra, é que quando tu trata de uma área quilombola, tu está tratando do território. Então, o território é quilombo. O que eu vejo é que nós precisamos acordar com quem ficar que não podemos readensar a área. Se tu quer construir um território melhor, a pessoa que estiver deixando uma casa, temos que demolir aquela casa ou reagrupar o território. Mas isso tu precisa sentar na mesa para discutir. Há quem entenda que o caminho não é esse”.

A defensora Ana Carolina também manifesta preocupação com uma nova ocupação da área. “O medo é que se torne uma rotatividade e isso a gente não quer que aconteça”.

Machado afirma que, caso a comunidade seja reconhecida pelo Incra como território quilombola, haverá a necessidade de discutir o que será feito de áreas reivindicadas e que hoje estão fora da comunidade, como um terreno ao lado cercado por muros e mesmo áreas onde já existem construções. Neste caso, o processo envolverá também os proprietários de áreas lindeiras.

Contudo, diz que esta situação não está posta, pois o processo ainda está no início. Ele afirma que colocou o município à disposição da Fundação Cultural Palmares para explicar sua posição. “O que a gente quer propor é que o espaço seja melhorado para quem quer ficar. E quem quer sair possa exercer o seu direito de transferência”.

 

Foto: Luiza Castro/Sul21

Para o secretário André Machado, a conciliação entre os interesses de todas as partes envolvidas não seria tão difícil. “O que eu acho que falta é desarmar as pessoas. Eu quero ter oportunidade de sentar com os que querem ficar para que a gente discuta o território”, afirma.

Ele estima que a Kédi tenha em torno de 100 famílias atualmente e que, se saírem 60, uma possibilidade seria reagrupar as cerca de 40 remanescentes em um território menor. “Se ali a gente consegue dar qualidade de vida para as pessoas e fazer o Quilombo Kédi, a gente tem um ganho para a cidade e para as famílias. Se elas entenderem que o importante é ter a área grande, nós vamos ter que esperar o processo, que é lento. Pelo que eu senti da Fundação Cultural Palmares, me parece que ainda é incipiente.”

Segundo Machado, o diálogo com a comunidade hoje estaria sendo dificultado pela reivindicação quilombola. “Eu não consigo identificar, hoje, quem são as lideranças locais da questão quilombola. Eles foram sempre capitaneados por uma líder externa, que ataca demais o município, que ataca demais a Defensoria, e por lideranças que não são da comunidade. Ao contrário dos que querem sair, que vêm e conversam”.

A defensora Ana Carolina pontua que o papel da DPE tem sido representar as famílias em situação de vulnerabilidade, o que passa por intermediar as negociações e encontrar uma solução satisfatória de moradia para quem deseja sair, mas também por olhar pela comunidade quilombola.

Contudo, reconhece que houve um afastamento e diz que, hoje, não há uma relação com os quilombolas. Segundo ela, o seu desejo é de que a situação das famílias quilombolas também seja melhorada, até mesmo antes da conclusão do processo no Incra, que poderia levar até 10 anos. Ela avalia, inclusive, que indenizações referentes às famílias que desejam permanecer poderiam ser aplicadas na área. “Fazer esgoto, fazer rede de energia elétrica, regularizar ali, tornar um lugar muito melhor para eles”.

Tânia avalia que o problema da falta de diálogo não parte das famílias quilombolas. “A dificuldade [de diálogo] é que eles estão nos oprimindo. A gente não impõe quem quer sair ou quem quer ficar, mas eles só se comunicam com a parte que quer sair, a gente não fica por dentro de nada”, afirma.

 

Foto: Luiza Castro/Sul21

Onir pontua que as famílias com a reivindicação quilombola também desejam melhorias na comunidade e que a falta de diálogo seria resultado das ações da própria Prefeitura, bem como da Defensoria Pública. “Veja bem, a postura da Prefeitura é extremamente belicosa com a comunidade, está eivada de irregularidades. Caso a Prefeitura interrompa essa violência que ela está fazendo, inclusive criando cizânia interna dentro da comunidade, com um procedimento ilegal praticamente de esbulho da comunidade”, diz. “A comunidade já teve a experiência de ter ilusão em relação ao secretário de Habitação. Então, perdeu tempo com isso e criou essa bomba de efeito retardado que a gente está colhendo agora.”

Em outro sentido, diz que o diálogo possível é o reconhecimento da reivindicação quilombola. “O que a gente cobra da Prefeitura é o seguinte: desafeta a área e titula em nome da comunidade. Repara a comunidade pelos malfeitos da Prefeitura. Pode fazer isso. Encaminha um projeto para a Câmara de Vereadores desafetando a área e titulando em nome da associação quilombola. Simples. Aí depois pode se ver a questão das políticas públicas que podem ser feitas. Se a Prefeitura quer ter uma postura correta, faça a coisa que tem que ser feita. É nesses termos que a gente pode conversar. Fora isso, não vamos negociar parte do território para ter melhoria em outra parte. Não existe essa possibilidade”, diz. “Se for para conversar, a gente quer conversar com a presença do Incra, com a presença do MPF, da Fundação Cultural Palmares e de uma forma que a Constituição seja respeitada. Não tem como dentro dessa lógica de sair de um lugar e ir para outro”, complementa.

Machado diz que, após as visitas feitas pelo Demhab nos dias 15 e 18 de setembro, não ocorreram mais reuniões na secretaria para tratar da Kédi, apenas tendo sido encaminhado um relatório dos atendimentos à Defensoria. Tampouco outras agendas estariam marcadas. Com isso, segundo ele, o Demhab seria, atualmente, apenas um espectador no processo, que seguiria em discussão na PGM e na DPE.


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