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10 de dezembro de 2022
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09:07

Eventos com cobrança de ingresso reforçam debate sobre privatização de espaços públicos

Por
Luís Gomes
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Trecho da Orla 1 foi cercado para realização de evento fechado nas últimas semanas | Foto: Luiza Castro/Sul21
Trecho da Orla 1 foi cercado para realização de evento fechado nas últimas semanas | Foto: Luiza Castro/Sul21

Ao longo dos últimos meses de debates a respeito da concessão de parques, em especial do Parque Farroupilha (Redenção), a Prefeitura de Porto Alegre tem sido veemente nas negativas de que os processos em andamentos representam uma privatização de espaços públicos. Esta ideia tem sido martelada, por exemplo, pela secretária municipal de Parcerias, Ana Pellini, em entrevista recente ao Sul21.

Para a Prefeitura, não se pode falar em privatização porque não haverá venda de nenhum espaço público, apenas a transferência da gestão e da manutenção para uma empresa privada pelo prazo de 30 anos.

Contudo, o debate sobre a privatização de espaços públicos não se resume apenas à cobrança de ingresso para acesso a parques e áreas públicas, como parece ser o entendimento da Prefeitura sobre o termo. Recentemente, a jornalista Kátia Suman levantou o debate nas redes sociais ao questionar a realização de eventos fechados no Trecho 1 da Orla do Guaíba, com cobrança de ingressos, para a Copa do Mundo.

“Tem muita gente boa discutindo a questão da privatização da Redenção, mas não vi ninguém comentando a privatização da Orla (…). Pois não bastasse um uso indevido, há dois! Duas estruturas gigantescas na Orla, com cobrança de ingresso, com obstrução do passeio e da vista, com poluição sonora e visual”, questionou Kátia.

Procurada pela reportagem, a Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade de Porto Alegre (Smamus) explica que o edital de concessão conjunta do Trecho 1 da Orla e do Parque Harmonia prevê a realização de eventos fechados, colocando como contrapartida o pagamento de 1,5% da arrecadação anual à Prefeitura.

“O espaço cercado nesse trecho da Orla, está de acordo com o edital, sendo a realização de eventos uma das formas de arrecadação de receita. Portanto, permite-se a cobrança de ingresso durante um evento específico, no caso, a Copa. Após o término da Copa, o espaço será novamente liberado e a estrutura desmontada até o próximo evento, sempre de acordo com a avaliação do impacto ambiental da área pública realizada pela Smamus, uma vez que a área permanece pública”, diz a pasta em nota encaminhada à reportagem.

Já a Gam3 Parks, responsável pela concessão, explicou que os eventos podem ser realizados pela própria empresa ou por terceiros interessados. A aprovação passa, primeiro, pela concessionária e, após a sinalização positiva, os realizadores precisam obter alvarás de funcionamento junto à Prefeitura.

Não há, contudo, limitação de quantos eventos podem ser realizados ao longo do ano. “Interessados podem procurar a concessionária e apresentar seus projetos”, diz a Gam3 Parks.

No caso da Orla, os eventos ocorrem em áreas delimitadas, como nos decks e nas proximidades do Gasômetro, explica a Gam3.

A realização de eventos fechados na Orla acendeu o alerta do Coletivo Preserva Redenção, que se organizou em defesa da manutenção do caráter público do tradicional parque. O grupo teme que ações do tipo ocorram nos demais parques da cidade que estão sendo preparados para serem concedidos à iniciativa privada.

No momento, a Prefeitura estuda a concessão conjunta da Redenção e do Calçadão do Lami, bem como do Trecho 3 da Orla com a Parque Marinha do Brasil.

Maximiliano José Limbacher, um dos integrantes da coordenação do Coletivo, questiona a falta de regras e de limitações para os eventos na Orla.

“É uma estrutura colossal colocada em uma faixa exígua da Orla. Tira toda a vista do Guaíba, porque, além das estruturas, colocam tapumes para que ninguém entre. Tudo é cercado por tapume e grade. O contrato de concessão permite eventos, mas de qual porte? Isso extrapola o bom senso”, diz Maximiliano.

Questionada pela reportagem se a concessão dos parques em estudo adotará modelo semelhante, a Smamus explicou que o modelo poderá ser diferente, mas que também terá a previsão em contrato da realização de eventos com cobrança de ingresso.

 

Prefeitura pretende realizar a concessão da Redenção e outros parques em 2023 | Foto: Luiza Castro/Sul21

Ainda não é possível dizer como funcionará a concessão da Redenção e dos demais parques na prática. Contudo, documentos elaborados para subsidiar os processos indicam que a realização de eventos fechados será uma das principais fontes de receita das concessões.

O estudo de viabilidade técnico-econômica da Fundação Getúlio Vargas (FGV) da concessão conjunta da Redenção e do Calçadão do Lami, contratado pelo Prefeitura, sugere que, além do estacionamento, a receita da concessionária tenha origem no setor de alimentação, na publicidade e realização de eventos com cobrança de ingresso.

A FGV, inclusive, trouxe cálculos que levaram em conta a instalação de uma arquibancada móvel e a cobrança de R$ 150 de ticket médio de ingresso.

Outro documento elaborado pela FGV aponta a atual área da pista de atletismo como um espaço para eventos com 6,2 mil metros quadrados.

Foto: Reprodução

Já o Caderno de Encargos elaborado pela Prefeitura em preparação para o edital de concessão da Parque Farroupilha e do Calçadão do Lami prevê que a concessionária poderá criar uma “arena ao ar livre” para eventos dentro da Redenção, podendo cobrar ingresso para acesso ao local de forma temporária.

A advogada Emma Maria Torgo Gómez destaca que o documento prevê ainda que a área de esportes Ramiro Souto poderá ser revitalizada para utilização para “outros fins”, como eventos abertos, arena de shows, cinema ao ar livre, entre outros.

“É a mesma coisa que está acontecendo na Orla, não tem limitação de tempo, pode ser um ano ou um mês. Aquilo que não é limitado na letra do contrato pode ser feito”, diz Emma.

Estudo realizado pela FGV traz exemplo de cálculo para cobrança de ingressos | Foto: Reprodução

Maximiliano avalia que o cercamento de espaços, como ocorre na Orla, pode, sim, ser considerado um tipo de privatização, mesmo que não represente a privatização que se encaixa no conceito da Prefeitura.

“Tu cerca uma grande área de uma orla que é pública, que não deixou de ser pública. Assim como eles dizem que a Redenção não deixou de ser pública, mas tu vai cercar áreas em que tu vai ter que pagar para acessar. E, se tu não quiser assistir aos eventos, tu perde a oportunidade de usar o espaço para o teu lazer, para contemplar o Guaíba, no caso da Orla. No frigir dos ovos, os bens e espaços verdes públicos estão sendo entregues para a iniciativa privada auferir lucro, essa é a verdade, sem nenhuma preocupação com o bem-estar dos porto-alegrenses e com o meio ambiente”, diz.

A advogada Emma pontua ainda que não há, nos documentos apresentados até agora, qualquer delimitação de quais áreas poderiam ser cercadas para eventos, nem qualquer limite de área que os eventos poderão restringir. “Quando a secretária Ana Pellini fala que não vai haver cercamento, como não vai haver? Se é um evento pago, vai haver algum tipo de cercamento”, diz.

Ela lembra que a área gastronômica do Refúgio do Lago, durante a Copa, também limitou o acesso mediante a reserva prévia de ingresso, quando o contrato de concessão da área delimitaria que o acesso do público deveria ser livre.

Para Emma, o Caderno de Encargos, no item 5.10.5, ainda abre a possibilidade de a concessionária cobrar cobrar ingresso para atividades de lazer, turismo, entretenimento, cultura, gastronomia e outros serviços voltados aos usuários, não limitada a eventos e atividades associadas a estes.

“O que se entende por atividade de lazer? É algo muito amplo, pode ser tudo que fazemos hoje num bem público”, questiona. “A concessão implica na retirada de todo o serviço de aulas e quadro de qualificados Professores do Centro Desportivo Ramiro Souto. O direito às aulas, atividades esportivas orientadas pelos professores mantidos com os impostos que pagamos para a Prefeitura nos será retirado”, complementa.

O Caderno de Encargos diz que a realização de eventos deve seguir o regramento do Decreto no 21.126/2021, que versa sobre a regulamentação do Escritório de Eventos da Prefeitura, e poderá praticar com a cobrança de ingresso em horários e locais delimitados. Contudo, o Caderno de Encargos e o decreto não estabelecem limites de duração (dias) e área a ser utilizada para eventos em espaços públicos.

Em artigo que analisou a concessão de parques em Porto Alegre, a advogada Jaqueline Custódio, que há anos atua na área da preservação do patrimônio público da Capital, pontua que a Prefeitura tem atuado para atender as necessidades da iniciativa privada e que, sob a alegação da necessidade de viabilidade econômica, tem fomentado a privatização de espaços públicos.

“A estratégia para adequar a cidade ao mercado, especialmente o voltado à construção civil, começou com a apresentação de projetos de lei, por parte do Poder Executivo, flexibilizando a permanência dos espaços públicos em mãos do Estado. Assim, foi aprovada, em julho de 2019, a Lei n. 12.559, que autorizou ‘o Executivo Municipal a conceder o uso e os serviços de operação, administração, conservação, manutenção, implantação, reforma, ampliação ou melhoramento de praças e parques urbanos do Município de Porto Alegre’”, escreve Jaqueline.

Neste sentido, diz, coloca sob responsabilidade da gestão privada a autorização para a realização de muitas atividades antes praticadas de forma livre pela população em geral. “Restringindo a ocupação, seja por impedimento de atividades, seja por questões de incapacidade de consumo, há um esvaziamento do local, com seleção do público que ‘deve’ frequentar aquele ambiente. Prática compatível com a produção da cidade-mercadoria. (…) Como se vê, as funções de contemplação, as atividades físicas e até mesmo os piqueniques e almoços que eram feitos por famílias foram invisibilizados, pois não contabilizados por não serem ‘visitantes e usuários solventes’”, escreveu.

Caso a concessão seja concretizada, o Coletivo Preserva Redenção estuda a possibilidade de questionar judicialmente a realização de eventos fechados em áreas públicas, sob o argumento de que desrespeitaria legislação municipal e federal sobre áreas públicas, ainda mais no caso da Redenção, que é um patrimônio público tombado.


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