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27 de agosto de 2022
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09:05

‘Podia ser pior, podia estar tudo privatizado’: avanços e impasses no edital do Cais Mauá

Por
Luís Gomes
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Projeto apresentado pelo governo do Estado traz previsão de construção de nove torres na área das docas do Cais Mauá | Foto: Reprodução
Projeto apresentado pelo governo do Estado traz previsão de construção de nove torres na área das docas do Cais Mauá | Foto: Reprodução

No último dia 18, o governo do Estado publicou o edital de concessão do Cais Mauá, em Porto Alegre, trazendo algumas diferenças em relação ao que constava no projeto original, apresentado em novembro passado. As mudanças incluem a previsão de que o pórtico de entrada e os armazéns A e B do Cais, que são tombados, serão destinados exclusivamente para atividades culturais e não terão gestão privada. Outra mudança é a elevação do valor a ser pago pelo consórcio vencedor do edital para a exploração da área das docas, onde está prevista a construção de nove torres residenciais e comerciais, de R$ 94 milhões para R$ 145 milhões. O leilão deve ocorrer em 26 de setembro.

Apresentado oficialmente em novembro passado, o projeto de revitalização dos armazéns foi elaborado em conjunto com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o consórcio de escritórios de arquitetos Revitaliza. Secretário extraordinário de Parcerias do Estado do Rio Grande do Sul, Marcelo Spilki explica que as mudanças ocorreram após uma série de consultas públicas, duas audiências públicas, nove workshops e reuniões bilaterais fechadas com representantes setoriais. “Justamente para ouvir a sociedade como um todo, coletar essas contribuições e incorporar isso ao nosso edital. E o edital reflete isso”, diz.

Spilki destaca como a principal mudança justamente a garantia de que o pórtico e os armazéns A e B permanecerão sob gestão pública e com a garantia de destinação para atividades culturais. “A princípio se falou em um pavilhão, mas no fim nós achamos melhor colocar dois pavilhões. Esse pavilhões estão unicamente destinados para atividades culturais durante o ano inteiro. Ou seja, a Secretaria da Cultura aqui do Estado, que é o poder concedente, vai em conjunto com os interessados, com quem atua nessa área, fazer uma gestão para que tenha todo tipo de representação cultural ali, principalmente cultura local, que é uma questão importante”, diz.

Spilki destaca que, como o edital garante a gestão pública dos pavilhões, a área não está incluída nas projeções de equilíbrio econômico-financeiro da revitalização, uma vez que não terão o objetivo de auferir lucro. Sobre como será feita a gestão, ele diz que isso ainda será definido. “Provavelmente, a operação vai começar no ano que vem, mas não sabemos quem será o governador, muito menos secretário da Cultura. Mas, obviamente, vai ser uma gestão que vai ser feita pela Secretaria de Cultura em conjunto com os demais interessados”, diz.

Outra mudança do projeto inicial para o edital é a disponibilização de dois pavilhões, entre os nove que terão gestão privada, para que o poder público possa realizar eventos em ao menos 90 dias do ano, podendo ser ampliados em acordo entre o poder público e o consórcio. A previsão é que o espaço seja usado para eventos diversos, como a Bienal do Mercosul, a Feira do Livro e o South Summit Brasil.

“Isso é condição básica, o concessionário é obrigado a deixar disponível para isso, então entendemos também que é mais um avanço que veio dessas entidades representativas da sociedade, que foram alterações que vieram da consulta”, diz o secretário.

Um dos principais grupos que participou das discussões sobre o projeto é formado por professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e representantes do Coletivo Cais Cultural Já, que apresentaram, também em novembro passado, um projeto alternativo à privatização da região.

Eber Pires Marzulo, professor do Departamento de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura, avalia que a garantia de que o pórtico e os armazéns A e B permanecerão sob gestão pública é um grande avanço em relação à proposta original.

“Tem sido muito comum nessas práticas de privatização, utilizando inclusive o recurso da PPP, a perda do espaço público, o P de público. No Masterplan do consórcio Revitaliza, o único cara que falava em público era o arquiteto [Renato] Dal Pian, que é arquiteto de um escritório importante no País. Era o único membro do consórcio que tinha uma preocupação em manter o chão público, ou seja, que a privatização não produzisse áreas fechadas do tipo condomínio. Do jeito que está esse processo regressivo de perda do público, tu acaba ficando feliz quando alguém diz que o chão vai continuar público e as pessoas vão poder passar por ali, em que pese que pode ser tão público quando é o Embarcadero [empreendimento temporário em operação na área do Cais], aquela portinha com aviso de tudo que tu não pode levar contigo quando entrar no espaço”, diz.

 

Cais Embarcadero é uma operação temporária de restaurantes | Foto: Luiza Castro/Sul21

Para Marzulo, a mudança é resultado da pressão do coletivo de professores e do Cais Cultural. “A destinação cultural já estava no plano. A novidade deriva de uma divergência, que a gente tinha quanto ao grau de privatização, que era absoluto. Esse foi um grande avanço de um movimento que se constituiu, de uma relação desse movimento com uma universidade pública cumprindo o seu dever ético de colaborar com o conhecimento acadêmico-científico para a melhoria das condições de vida da sociedade onde ela está inserida”, pontua.

Em análise semelhante, o professor Pedro de Almeida Costa, da Escola de Administração da UFRGS, pontua que o objetivo do coletivo era que o Cais Mauá fosse 100% público e que não houvesse PPP, mas que, diante da inevitabilidade do edital, as mudanças realizadas podem ser consideradas um avanço e uma “minimização de damos”.

“Afinal de contas, podia ser pior, podia estar tudo privatizado. E se conseguiu também a criação de um pavilhão de exposições que é a soma de dois armazéns, que tem um número X de dias por ano que vão ser de uso público, para garantir feiras, coisas como a Bienal e a Feira do Livro. A gente achou pouco, nós tínhamos pedido algo que fosse próximo de 120 ou 180 dias, mas ficou os 90. O governo pintereode negociar ainda de ter mais uso por ano. Por exemplo, anos que tem Bienal e Feira do Livro, os 90 dias são insuficientes”, pontua.

Além disso, ele observa que os professores e o coletivo já propuseram ao governo que seja firmado um convênio com a UFGRS, enquanto instituição, não apenas com um grupo de docentes, para que a universidade participe da elaboração do modelo de relacionamento público e privado a ser desenvolvido no Cais Mauá. Inicialmente, para a gestão do espaço no período anterior ao início da operação, passando pelo compartilhamento da gestão nos espaços culturais e de eventos e, para o futuro, para a gestão após o fim da concessão.

“O prazo de concessão de 30 anos. Por que, quando findar esse prazo, volta para o Estado”, ressalta. “A gente quer propor um modelo diferente de governança, em que haja uma interação mais forte entre as organizações da sociedade civil e o governo do Estado e que não sejam os modelos atuais de concessão, mas uma interação bolando mecanismos de governança, conselhos, outros, etc.”

Outra mudança importante no edital em relação ao projeto original diz respeito ao valor a ser pago pela concessionária vencedora pela exploração dos terrenos das docas, que foi elevado de R$ 94 milhões para R$ 145 milhões.

José Daniel Craidy Simões, arquiteto e doutorando da UFRGS, argumenta que esta correção também é resultado da mobilização do coletivo de professores e do Cais Cultural Já. Ele explica que a avaliação de valor de um terreno segue metodologia prevista na Norma nº 14653, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), e que o critério utilizado no caso das docas foi a de possibilidade de geração de renda em um empreendimento a ser instalado no local.

Ele pontua que o valor inicial levava em conta o regramento urbanístico normal da região da cidade, desconsiderando as alterações realizadas pela Prefeitura recentemente para permitir maiores índices construtivos na área e no Centro Histórico.

“Eu comecei a questionar, nas reuniões que a gente fazia, o valor deles, porque eu queria saber se ele tinha sido elaborado a partir desse método, que era aventado por eles também como método de avaliação adequado, e eu queria saber informações a respeito do laudo de avaliação que não tinha aparecido, mas que era citado como um dos documentos daquele conjunto do BNDES. A partir daí, realizou-se duas ou três reuniões junto ao Tribunal de Contas, com o pessoal capacitado, e eu coloquei essas questões. Foi gerando um certo desconforto e o próprio Tribunal de Contas confirmou que os apontamentos que eu estava realizando eram pertinentes de fato. Passou-se alguns meses, e o valor de R$ 94 milhões inicialmente aventado pelo terreno das docas foi ajustado para esse valor de R$ 145 milhões na minuta de contrato”, explica.

Por sua vez, a advogada Jaqueline Custódio, integrante do Coletivo Cais Cultural Já e especializada na área do patrimônio histórico, avalia que as concessões do Estado foram limitadas. “A gente ganhou uma coisa que eles meio que já tinham previsto. Eu não me sinto muito feliz com o que vai acontecer com o Cais. Claro, é bom que a gente assegurou o uso de dois armazéns, que aliás são os menores, para a cultura e que eles vão continuar sendo públicos. Mas eu fico pensando no que a gente vai perder.”

Jaqueline acredita que, a partir da perspectiva do patrimônio histórico, o projeto resultará em uma “perda brutal” do patrimônio paisagístico que compõe a identidade de Porto Alegre. “A gente já teve uma amostra disso com o Embarcadero, e a gente vai ter os possíveis nove edifícios, cuja altura, o céu é o limite.”

Uma das ideias do projeto é garantir uma maior integração da região à cidade, o que passa pela retirada do Muro da Mauá, mas a advogada diz que este movimento é contraditório com a construção de nove torres na área das docas.

“Não é outro muro muito maior, no qual não vai passar ventilação, que vai alterar a insolação, que vai ter 70% de residências? ‘Ah, mas o solo é público’. Mas, daqui a pouco, vira ‘Ah, mas é melhor ter segurança, porque é muito inseguro’. Então vão começar a botar catraca. A gente já viu essa história, é como o Embarcadero. Se tu entrar lá, está escrito: ‘Essa é uma propriedade particular de uso público’. Desde quando? Tu não pode entrar com isso, não pode aquilo. O quanto é público mesmo? Quem vai decidir o que vai ser colocado nos outros armazéns, vai ser o privado. Tu tem um dos ícones da cidade em que a iniciativa privada vai dizer o que pode e o que não pode.”

 

Cais Mauá está fechado para o público desde 2010 | Foto: Luiza Castro/Sul21

O Cais Mauá encerrou as atividades portuárias em 2005 e, em 2010, foi concedido para a exploração privada, em um edital que teve como vencedor o Cais Mauá do Brasil S.A. No entanto, o projeto nunca saiu do papel, por motivos como o consórcio nunca ter apresentado as garantias financeiras para realizar a revitalização, e o contrato acabou rompido pelo governo do Estado em maio de 2019.

No edital anterior, o empreendedor deveria apresentar uma garantia de R$ 400 milhões para realizar as intervenções no Cais Mauá. Agora, a expectativa de investimentos, segundo o projeto do BNDES, é de R$ 1 bilhão.

O secretário Spilki argumenta que o edital prevê garantias para mitigar os riscos de uma nova concessão fracassada, destacando que foram colocadas garantias como a exigência de capital mínimo no momento da constituição do consórcio e o fato de que a construção na área das docas, principal atrativo em termos de lucratividade para as empresas, será liberada em etapas, conforme o avanço da revitalização.

“A experiência passada, que realmente não foi boa, nos coloca ainda mais um alerta da necessidade de ter todas essas garantias no projeto. Então, a gente obriga que seja constituída uma SPE (Sociedade de Propósito Específico) e eles têm que constituir capital social, ou seja, integralizar a capital social proporcionalmente à exposição de caixa que eles vão ter ao longo do projeto. Então, já de cara para assinar o contrato, eles têm que constituir, entre capital social, garantias, pela conta que a gente faz, em torno de um pouco mais de R$ 110 milhões”, diz. “Além disso, o terreno das docas, que é o que vai sustentar financeiramente o projeto, foi desmembrado em três matrículas. A medida que a concessionária for realizando os investimentos em infraestrutura, as reformas dos pavilhões, ou seja, tudo que tem que ser feito ao longo da área do Cais, ela vai recebendo as matrículas desses três imóveis de forma proporcional. E casado com isso, ela tem que também integralizando mais capital social”, complementa.

Spilki destaca que o edital ainda prevê que o consórcio vencedor seja composto por uma empresa com experiência com gestão de entretenimento — como estádios, auditórios, parques e espaços com visitação de pessoas — e outra voltada para a gestão dos terrenos, que poderá vendê-los ou mesmo atuar como incorporadora.

O projeto apresentado para a área das docas em novembro de 2021 previa a construção de seis edifícios residenciais com comércio no térreo, dois edifícios corporativos e um hotel, com a antiga estrutura do frigorífico que existia no último trecho do Cais sendo transformada em centro cultural, museu ou espaços de uso múltiplo. No entanto, o secretário destaca que este projeto é apenas referencial, podendo ser alterado pelo concessionário mediante licenciamento ambiental e aprovação do Estado, na figura do poder concedente.

“Os projetos têm que seguir algumas premissas, algumas exigências, mas podem ser diferentes. Por exemplo, manter o chão público. A gente não permite que exista ali um condomínio fechado ou alguma coisa assim. A área privada do prédio, a área interna do prédio, ok, essa ninguém entra porque é privada. Mas, na parte externa, as pessoas podem chegar na beira do rio, contemplar o pôr do sol, tomar um chimarrão, etc, aquilo ali tem que ficar aberto. Então, realmente, os prédios são referenciais, mas a concessionária tem a liberdade de propor algo diferente e tem que ser aprovado pelo poder concedente e pelo município”, explica.

Para o professor Pedro Costa, a proposta atual parece estar melhor amarrada juridicamente do que a concessão de 2010. “Há mecanismos de exigências de garantia e fundos que são formados para dar conta de desequilíbrios financeiros. Isso, em tese, deixa mais seguro. Ainda temos uma análise receosa sobre a atratividade do empreendimento para investidores privados, pois as taxas de retorno projetadas são próximas da SELIC. Mas o governo tem feito rodadas de apresentação em SP e Porto Alegre e a variação da altura de construções nas docas pode mudar essa taxa de retorno e tornar mais atrativo o investimento”, diz.

Já Eber Marzulo diz não acreditar que todo o projeto seja realizada na prática. “Eu acho que não tem capital suficiente, não é um lugar para tanto investimento. Não se trata de achar que não tem gente para comprar ou para alugar [os apartamentos ou escritórios das torres]. Não, a maior parte que compraria ali seriam investidores, os caras que querem fazer portfólio para atuar no mercado financeiro, e eu não sei se vai ter gente para isso”.

Contudo, mesmo que saia do papel, Marzulo acredita que a concessão, em si, é ruim para a cidade e uma declaração de incompetência por parte do poder público de que não consegue gerir o espaço. O professor pontua que o grande atrativo do projeto é “devolver” a área do Cais Mauá para a cidade, mas que este é um problema que foi gerado em grande parte pelo fechamento da área com a concessão de 2010.

“Esses governos que tem como uma das ações principais viabilizar a aquisição de áreas públicas sob responsabilidade do Estado para ação privada, em geral eles passam por um período de cercamento, literalmente. Ali, no caso, tem um muro, mas fecharam os portões. Em outras áreas, eles põem tapumes. Ou seja, eles tiram da cidade um pedaço que ela tinha à disposição. Ali uma parte histórica, nobre, de patrimônio. E depois, quando devolvem, privatizado, em muitos casos para uso de poucos, parece um ganho para a cidade porque, no caso, passaram 12 anos desde que o acesso público foi interrompido. Então, quando voltar, a sensação vai ser de que a cidade ganhou uma área, mas era uma área que era dela e tinha perdido.”

O professor avalia que as intervenções recentes na Orla são uma prova de que a privatização não era a única alternativa. “A Orla não foi privatizada, o uso é público e tem um uso impressionante, do Gasômetro até a área da pista de skate. Tem uma demanda impressionante, a cidade e a Região Metropolitana precisam de áreas públicas para uso do público. E a cidadania usa. Não é que não haja demanda. Ali, no caso, não tem empreendimento nenhum. Eu tenho críticas ao projeto, mas eu tenho que ser honesto que é extremamente utilizada e foi extremamente positiva para a população da região”.


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