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23 de agosto de 2022
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18:00

Medo, dificuldade de provar e disputa de versões dificultam punição à violência policial

Por
Luís Gomes
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Corpo de Gabriel Marques Cavalheiro foi encontrado em açude em São Gabriel (Foto: Brigada Militar/Divulgação)
Corpo de Gabriel Marques Cavalheiro foi encontrado em açude em São Gabriel (Foto: Brigada Militar/Divulgação)

A Brigada Militar informou na segunda-feira (22) que abriu inquérito para investigar o envolvimento de três policiais na morte do jovem Gabriel Marques Cavalheiro, dado como desaparecido em São Gabriel no dia 12 após ser alvo de uma abordagem e encontrado morto na última sexta-feira (19) em um açude. Apesar de ter indicadores de mortes em ações de agentes de segurança pública menores em relação a outros estados, o Rio Grande do Sul tem apresentado um número crescente de denúncias de violência policial e, na avaliação de profissionais que atuam com estes casos, uma grande dificuldade em responsabilizar os autores de abusos.

De acordo com dados do Anuário Brasileiro da Segurança Pública de 2022, o RS registrou em 2021 uma taxa de letalidade de 1,4 pessoas mortas pela polícia a cada 100 mil habitantes, o que o coloca na 15ª posição entre as unidades da federação, mas representa quase um terço da média nacional, 2,9 por 100 mil habitantes. O estado com a maior taxa de mortalidade por intervenções policiais é o Amapá, com 17,1 por 100 mil habitantes, seguido por Sergipe (9,0), Goiás (8,0), Rio de Janeiro (7,8) e Bahia (6,7).

Desde o início de 2022 até julho, o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul (NUDDH) recebeu até 246 novas denúncias de violação, a maior parte delas de violência policial em abordagens da Brigada Militar. Apesar de levar em conta apenas sete meses, o número de denúncias recebidas já supera o total de 2021, quando foram recebidas 203 ao longo de todo o ano.

A Defensoria também informa que, entre janeiro e julho, foram expedidos 345 ofícios, a maioria deles solicitando informações acerca de expedientes administrativos instaurados pela Corregedoria-Geral da Brigada Militar. O órgão, contudo, não revela informações individualizadas dos casos em razão da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

A defensora Aline Palermo Guimarães, dirigente do NUDDH, pontua que a dificuldade na responsabilização dos agentes de Estado começa pelo fato de que nem todas as vítimas que procuram a Defensoria desejam formalizar as denúncias. “Algumas pessoas já declinam no primeiro momento, falam que não têm interesse, porque têm receio de que alguma coisa mais grave aconteça, que haja algum tipo de perseguição, então não querem formalizar”, diz.

Uma segunda dificuldade é em relação às provas, especialmente pelo fato de que pessoas atendidas pela Defensoria Pública, em geral, moram em regiões de alta vulnerabilidade social. “Dificilmente vai haver testemunhas e, se há testemunha, muitas vezes ela não tem interesse em se envolver com a situação, por também ter receio de se incomodar. Dificilmente a situação foi gravada, não tem imagens, acaba ficando o relato da vítima da violência, que às vezes não tem nem marca. Se é um relato de sufocamento, de choque ou de violência psicológica, não deixa marca, a gente não consegue fazer nenhum tipo de comprovação”, afirma.

Além disso, mesmo quando há algum tipo de marca ou evidência, ela pontua que a apuração dos casos acaba resultando em uma disputa de versões, com a palavra das vítimas sendo colocada contra a dos agentes de Estado.

“A gente sabe que algumas abordagens exigem o uso moderado da força. A polícia, sim, tem legitimidade estatal para o exercício da força, mas dentro de determinadas condições, eles têm os protocolos de atuação. Daí fica uma guerra de versões, a versão da vítima dizendo que foi uma abordagem abusiva, que foi agredida, e a versão dos policiais dizendo que a vítima resistiu, desacatou, enfim, que foi necessário o uso da força. E fica bem difícil para distinguir o que de fato aconteceu”, diz.

Aline pontua que a Defensoria trabalha mais com casos de violência policial em que não há óbito e que os casos com vítimas fatais acabam sendo atribuídos ao Ministério Público. “Quando nos chega algum relato de óbito, eventualmente nos chega, é porque ou um familiar procura e tem essa desconfiança de que a morte do seu familiar tenha acontecido em algum contexto de abuso, de atuação abusiva da polícia, ou porque algumas ocorrências têm mais de um envolvido e alguns acabam mortos em confronto com a Brigada Militar e outros continuam vivos e respondem um processo criminal”, explica.

Defensoria Aline Palermo Guimarães, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do RS | Foto: Divulgação

A defensora diz que os casos de violência policial que chegam à Defensoria são de denúncias feitas por vítimas de agressão e tortura, física ou psicológica. “Tem muitos relatos de agressão físicas, de sufocamento, choque, algumas com lesão aparente, outras em que não fica lesão. E a gente faz o registro de todos esses relatos no nosso sistema da Defensoria Pública”, explica.

Apesar de, em geral, não atender casos em que há óbito, Aline Palermo avalia que as mesmas dificuldades são encontradas para a responsabilização de agentes públicos nos casos com vítima fatal, citando como exemplo a própria morte de Gabriel.

“Os policiais admitiram que levaram ele até aquela localidade, mas não se sabe o que aconteceu ali ou o que aconteceu antes, de que forma que se desenrolou ali o fato. E tivemos já outros acontecimentos, o do torcedor do Brasil de Pelotas, que felizmente não veio a óbito, mas chegou perto disso, ficou internado por muito tempo, fez várias cirurgias. Há uns dois anos atrás, tivemos aquele caso de Marau, que era um engenheiro elétrico que também acabou sendo morto na abordagem policial. Ao final se concluiu que teria acontecido no contexto do que a gente chama de legítima defesa putativa, num contexto em que o policial imaginou que ele sacaria uma arma, mas ele sequer estava armado, e acabou então atirando. São situações que a gente tem que reconstituir a partir dos relatos das pessoas que estavam presentes, porque não tinha imagem”, diz.

O advogado Pedro Gil Weyne, que ocupou uma cadeira no Conselho Estadual de Direitos Humanos até julho, também pontua que os casos de violência policial com óbito no Rio Grande do Sul são menos comuns do que em outros estados, destacando que o CEDH recebe, principalmente, denúncias de tortura.

“O que a gente trata muito ali é denúncia de tortura, pessoas que são torturadas e, como não tem resultado morte, elas ficam com receio de dar prosseguimento nessas denúncias, de reconhecer quem é que fez, isso acaba meio que morrendo, acaba sendo arquivado”, pontua.

Outro problema que ele identifica é que, mesmo nos casos em que a vítima denuncia, o resultado é a abertura de um Inquérito Policial Militar (IPM) que acaba sendo conduzido pelo batalhão que abriga os policiais militares alvos da denúncia de abuso.

“A Brigada Militar fala muito que a corregedoria é muito boa. Na verdade, a corregedoria atua no 1%, ela tem competência de avocar algumas investigações e ela avoca essas investigações que são mais midiáticas, mas 99%, a maioria, são os próprios batalhões que conduzem essas investigações. São colegas que estão investigando um ao outro, é óbvio que daí eles arquivam. ‘Ah, isso aí é falso, é só a comunidade que está insatisfeita com a atuação da Brigada’”, diz.

Pedro cita um caso analisado pelo CEDH em que o IPM concluiu que as denúncias seriam infundadas porque seriam oriundas da insatisfação de uma comunidade com a repressão ao tráfico de drogas no local. “É uma denúncia de tortura, a gente vê métodos de tortura da ditadura, afogamento, colocação de algema muito apertada, eles desencampam os fios do chuveiro e das tomadas e dão choque, botam a cabeça dentro do vaso ou também tem outra técnica que eles fazem que é botar a pessoa deitada e começar a jogar água no nariz para ela se afogar, bota uma toalha na boca, bota uma toalha no nariz, começa a molhar e a pessoa não consegue respirar e vai sendo afogada. Então, é isso, muitas ações que não deixam vestígios e fica uma guerra de versões. Também a questão das vítimas morarem em comunidades em que não se sentem seguras, vai denunciar o cara, que daí as duas da manhã ele vai estar lá patrulhando a tua casa? Vai chamar quem se a própria Brigada faz isso? É isso que chega muito para o CEDH e acaba sendo arquivado, não tem muito o que fazer porque não tem essa prova”, diz.

Para a defensora Aline Palermo, o principal instrumento disponível atualmente para a redução da violência policial seria o uso de câmeras em uniformes. “Isso pra gente é central, é urgente e seria a curto prazo a única medida que a gente percebe como tendo alguma possibilidade de controle desses casos, de uma melhor apuração, de respostas um pouco mais nessa questão da violência policial”, afirma.

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Episódio de torcedor hospitalizado reacende debate sobre câmeras em uniformes da polícia

Após a confirmação da morte de Gabriel, o governador Ranolfo Vieira Júnior anunciou a implementação de mil câmeras nos uniformes da Brigada Militar até o final do ano. O número, contudo, ainda é ínfimo diante do efetivo total da Brigada — cerca de 17 mil servidores.

Aline pontua ainda que, além da decisão de implementar as câmeras, é preciso regulamentar o seu uso. Ela lembra que uma lei de autoria da deputada Luciana Genro (PSOL), apresentada em 2020 e que levava o nome de Gustavo Amaral, engenheiro elétrico morto em ação policial em Marau, que foi rejeitada pela Assembleia Legislativa e reapresentada este ano, ainda aguardando votação.

“Não dá para deixar aberto para própria regulamentação interna da Brigada Militar, é preciso que tenha um ato normativo do Legislativo que regulamente essa utilização”, avalia.

Pedro Gil Weyne destaca que o CEDH também corrobora com a posição de que as câmeras de monitoramento da atividade policial devem ser implementas imediatamente no Rio Grande do Sul, principalmente nas equipes que patrulham locais vulneráveis de madrugada.

Em novembro de 2021, o CEDH divulgou a Recomendação nº 42 que solicitava justamente a instalação imediata de “captura de dados audiovisuais e georreferenciados nos uniformes de todos policiais civis e militares que exercem atividades externas, tais como a investigativa e a ostensiva, bem como em todas as viaturas automotivas que sirvam às áreas de segurança pública do Estado do Rio Grande do Sul, com o arquivamento dos dados pelo período mínimo de 05 (cinco) anos para atender eventuais demandas judiciais e administrativas”.

A recomendação também solicitava a divulgação pública do protocolo de uso das câmeras com o objetivo de permitir a fiscalização pela sociedade civil, universidades e entidades interessadas.

Aline Palermo ainda destaca que outro recurso importante para o esclarecimento dos casos é a utilização de tecnologias que permitem o rastreamento de viaturas. “Os recursos tecnológicos podem auxiliar muito no esclarecimento desses casos, a exemplo do sistema de georreferenciamento das viaturas da BM, que está sendo um elemento importante para a investigação da morte do jovem Gabriel”, afirma.


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