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17 de agosto de 2022
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16:40

Invasão e exploração de terras indígenas em 2021 é três vezes maior do que antes de Bolsonaro

Por
Luciano Velleda
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Relatório aponta 176 assassinatos de indígenas em 2021. Foto: Veronica Holanda/Cimi
Relatório aponta 176 assassinatos de indígenas em 2021. Foto: Veronica Holanda/Cimi

A última versão do relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – 2021, publicação anual do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), conclui que o ambiente institucional no governo de Jair Bolsonaro (PL) de ofensiva contra os direitos dos povos originários tem se refletido nos territórios por meio do aumento de invasões, ataques contra comunidades e lideranças indígenas e o acirramento de conflitos.

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Segundo o Cimi, o terceiro ano de mandato de Bolsonaro manteve sua promessa de não demarcar terras indígenas e se omitir em relação à proteção das terras já demarcadas. Para a entidade, tal postura representou o agravamento de um cenário que já era violento. Como consequência, em 2021 houve aumento, pelo sexto ano consecutivo, dos casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio”. O Cimi registrou a ocorrência de 305 casos do tipo no ano passado, que atingiram pelo menos 226 Terras Indígenas (TIs) em 22 estados do país. Em 2020, foram 263 casos de invasão, que afetaram 201 TIs em 19 estados. A quantidade de casos em 2021 é quase três vezes maior do que a registrada em 2018, último ano antes do início do governo Bolsonaro, quando foram contabilizados 109 casos do tipo.

“Além do aumento quantitativo de casos e terras afetadas pela ação ilegal de garimpeiros, madeireiros, caçadores, pescadores e grileiros, entre outros, os invasores intensificaram sua presença e a truculência de suas ações nos territórios indígenas”, afirma trecho do relatório, divulgado nesta quarta-feira (17), em Brasília.

Como exemplos dessa situação, o Cimi cita os casos dos povos Munduruku, no Pará, e Yanomami, em Roraima e Amazonas. Na Terra Indígena (TI) Yanomami, onde é estimada a presença de mais de 20 mil garimpeiros, a entidade denuncia que os invasores passaram a realizar ataques armados sistemáticos contra as comunidades indígenas, “espalhando um clima de terror e provocando mortes, inclusive de crianças”.

“Os ataques criminosos, com armamento pesado, foram denunciados de forma recorrente pelos indígenas – e ignorados pelo governo federal, que seguiu estimulando a mineração nestes territórios. Os garimpos, além disso, serviram como vetor de doenças como a covid-19 e a malária para os Yanomami”, critica o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

O relatório diz que, no Pará, garimpeiros que atuam ilegalmente na TI Munduruku atacaram a sede de uma associação de mulheres indígenas, tentaram impedir o deslocamento de lideranças do povo para manifestações em Brasília, fizeram ameaças de morte e queimaram a casa de uma liderança, em represália a seu posicionamento contra a mineração no território. “Enquanto essas ações ocorriam, a TI Munduruku seguiu sendo devastada, com rios e igarapés destruídos pelo maquinário pesado utilizado na extração ilegal de ouro”, afirma o estudo.

O relatório registrou aumento em 15 das 19 categorias de violência sistematizadas em relação ao ano de 2020, e uma grande quantidade de vidas indígenas interrompidas. Foram registrados 176 assassinatos de indígenas – apenas seis a menos do que em 2020, que registrou o maior número de homicídios desde que o Cimi passou a contabilizar este dado com base em fontes públicas, em 2014. Os 148 suicídios de indígenas em 2021 foi o maior número já registrado neste mesmo período.

Conforme o relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – 2021, o contexto dos ataques aos territórios, lideranças e comunidades indígenas está relacionado a uma série de medidas do governo federal que favoreceram a exploração e a apropriação privada de terras indígenas, além da aprovação de leis com o objetivo de desmontar a proteção constitucional aos povos indígenas e seus territórios.

É o caso, por exemplo, da Instrução Normativa 09, publicada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2020. O documento liberou a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas não homologadas. O Cimi destaca também a Instrução Normativa Conjunta da Funai e do Ibama que, em 2021, passou a permitir a exploração econômica de terras indígenas por associações e organizações de “composição mista” entre indígenas e não indígenas.

O relatório ainda cita, como possíveis riscos, o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que inviabiliza novas demarcações e abre as terras já demarcadas à exploração predatória, e o PL 191/2020, de autoria do governo federal, que pretende liberar a mineração em terras indígenas.

“Esse conjunto de ações deu aos invasores confiança para avançarem em suas ações ilegais nas terras indígenas. Garimpos desenvolveram ampla infraestrutura, invasores ampliaram o desmatamento de áreas de floresta para a abertura de pastos e o plantio de monoculturas, e caçadores, pescadores e madeireiros intensificaram suas incursões aos territórios”, afirma o estudo divulgado nesta quarta-feira (17).

O primeiro capítulo do relatório, intitulado “Violências contra o Patrimônio” dos povos indígenas, apresenta dados, tais como: omissão e morosidade na regularização de terras (871 casos); conflitos relativos a direitos territoriais (118 casos); e invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio (305 casos). Os registros somam um total de 1.294 casos de violências contra o patrimônio dos povos indígenas em 2021.

Segundo o Cimi, das 1.393 terras indígenas no Brasil, 871 (62%) seguem com pendências para sua regularização. Destas, 598 são áreas reivindicadas pelos povos indígenas que não contam com nenhuma providência do Estado para dar início ao processo de demarcação.

O estudo também destaca, nesta categoria, a queima de Casas de Reza, espaços para a espiritualidade de diversas comunidades indígenas. Foram registrados quatro casos no Mato Grosso do Sul, envolvendo os povos Guarani e Kaiowá, e um no Rio Grande do Sul, com o povo Guarani Mbya.

O segundo capítulo do relatório aborda a questão da violência física contra os povos indígenas. Nesta parte, o estudo registra abuso de poder (33 casos); ameaça de morte (19); ameaças várias (39); assassinatos (176); homicídio culposo (20); lesões corporais dolosas (21); racismo e discriminação étnico cultural (21); tentativa de assassinato (12) e violência sexual (14).

Ao todo, foram 355 casos de violência contra pessoas indígenas em 2021, maior número registrado desde 2013, quando o método de contagem dos casos foi alterado. Em 2020, haviam sido catalogados 304 casos do tipo.

Os estados que registraram maior número de assassinatos de indígenas em 2021, segundo dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e de secretarias estaduais de saúde, foram Amazonas (38), Mato Grosso do Sul (35) e Roraima (32). Os três estados também foram responsáveis pela maior quantidade de assassinatos em 2020 e em 2019.

O relatório ainda destaca casos de assassinatos de jovens e crianças indígenas praticados com crueldade e brutalidade. Entre os casos, em 2021, houve os assassinatos de Raíssa Cabreira Guarani Kaiowá, de apenas 11 anos, e Daiane Griá Sales, do povo Kaingang, de 14 anos – essa no RS. Ambas foram estupradas e mortas.

O terceiro capítulo do relatório trata dos casos de violência, definidas pelo Cimi, causadas por omissão do poder público. Neste recorte, também houve aumento geral e em quase todas as categorias em relação a 2020, com exceção dos casos de “desassistência geral” e da mortalidade na infância.

Com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), o Cimi obteve da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) informações parciais sobre as mortes de crianças indígenas de 0 a 5 anos de idade. Os dados, coletados pela secretaria em janeiro de 2022, revelam a ocorrência de 744 mortes de crianças indígenas de 0 a 5 anos de idade em 2021.

Os estados com a maior quantidade de mortes nesta faixa etária foram Amazonas (178), Roraima (149) e Mato Grosso (106). A quantidade de óbitos de crianças só foi maior, na última década, nos anos de 2014 (785), 2019 (825) e 2020 (776).

Ainda neste capítulo, foram registrados os seguintes dados: desassistência geral (34 casos); desassistência na área de educação escolar indígena (28); desassistência na área de saúde (107); disseminação de bebida alcóolica e outras drogas (13); e morte por desassistência à saúde (39), totalizando 221 casos; em 2020, os registros nestas categorias haviam somado 177 casos.

“Grande parte das ocorrências de omissão e desassistência são ligadas ao contexto da pandemia, especialmente em relação à falta de atendimento e equipes de saúde e falta de acesso a água e saneamento básico. Essa situação foi agravada pelas ações de desinformação sobre as vacinas contra a Covid- 19, que ocorreram em diversas regiões”, afirma trecho do relatório.

Apesar do início da vacinação, dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) analisados pelo Cimi registram 847 mortes de indígenas causadas pelo novo coronavírus em 2021. O número é mais do que o dobro do registrado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que indica a ocorrência de 315 óbitos de covid-19 no mesmo período.

Segundo o Cimi, a diferença pode ser explicada em função do SIM unificar os dados sobre óbitos ocorridos no Brasil, enquanto a Sesai abrange apenas a população indígena atendida pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, estimada em cerca de 755 mil pessoas.

O estudo Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – 2021 analisa ainda a situação dos povos indígenas em isolamento voluntário. A situação, segundo o relatório, também atingiu “profunda gravidade” devido a prática adotada pelo governo Bolsonaro de renovar as portarias que restringem o acesso a áreas com presença destes povos por períodos de apenas seis meses – ou nem renovar, como no caso da TI Jacareúba-Katawixi, que está sem qualquer proteção desde dezembro de 2021.

Foram pelo menos 28 invasões nestes territórios, colocando a própria existência desses grupos em risco. Essas áreas concentram 53 do total de 117 registros de povos isolados mantidos pela Equipe de Apoio aos Povos Indígenas Livres do Cimi, que analisa este cenário no quarto capítulo do relatório.


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