Geral
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9 de março de 2022
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09:22

Vídeos expõem escalada da violência na TI Guarita; defensora alerta para gravidade da situação

Por
Marco Weissheimer
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Protesto de moradores da TI do Guarita entre Redentora e Miraguaí, pedindo presença de autoridades. (Foto: Paulo Farias/Rádio Municipal de Tenente Portela/Instagram)
Protesto de moradores da TI do Guarita entre Redentora e Miraguaí, pedindo presença de autoridades. (Foto: Paulo Farias/Rádio Municipal de Tenente Portela/Instagram)

O Dia Internacional da Mulher foi de tensão e violência na comunidade kaingang da Terra Indígena Guarita, a maior reserva indígena do Estado. No início da tarde de terça-feira (8), começou a circular pelas redes sociais um vídeo do socorro prestado a Marta Camilo, moradora da TI, com as mãos e os braços ensanguentados pelos ferimentos que teriam sido causados com golpes de facão (ver vídeo abaixo). Segundo relato de uma liderança feminina da comunidade, ela teria sido agredida por homens ligados ao Carlinhos Alfaiate, cacique da Guarita até o ano passado, que se recusa a aceitar o resultado das eleições realizadas em dezembro de 2021.

 

Maior terra indígena do Rio Grande do Sul, com uma área de 23,4 mil hectares, abrangendo os municípios de Redentora, Tenente Portela e Herval Seco, no noroeste gaúcho, a Terra Indígena Guarita vive dias de tensão e escalada de violência. No dia 19 de dezembro de 2021, foi realizada eleição na área para a escolha do novo cacique da Guarita. A eleição teve a participação de 3.947 pessoas aptas a votar, o que representou um total de 60,27% do eleitorado.  A TI tem uma população de cerca de 6 mil habitantes (segundo dados de 2021, do IBGE), o que representa o maior contingente populacional kaingang no Estado.

No dia 22 de dezembro de 2021, Valdones Joaquim, vencedor da eleição, foi empossado pela Comissão Eleitoral. No entanto, no dia 27 de dezembro, o novo cacique, ex-vereador em Tenente Portal, foi preso pela Brigada Militar pois teria desrespeitado as regras do regime de liberdade condicional que estava cumprindo ao participar de uma reunião sem autorização judicial expressa. Com isso, a comissão eleitoral oficializou o nome do vice-cacique Joel Ribeiro de Freitas, que é vereador em Redentora, como cacique interino até que se resolva a situação de Valdones. Carlinhos Alfaiate, no entanto, não reconheceu e legalidade do processo eleitoral, sustentando que ele segue sendo o cacique. A partir daí, a escalada de tensão e violência só vem crescendo, como atestam os acontecimentos desse 8 de março, envolvendo ameaças, invasões de casas, agressões e bloqueios de estradas na região. Vídeos gravados pelos próprios moradores vem expondo essa escalada de violência.

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“Essa senhora é só uma das vítimas da atrocidade que aconteceu hoje de manhã na Estiva. O ex-cacique Carlinhos Alfaiate ainda se mantém na posição de não aceitar o resultado da eleição. Na semana passada, já tinham ido na casa dessa senhora e ela apanhou de facão. Ela fez boletim de ocorrência, pediu medida protetiva, pediu socorro. Hoje eles invadiram a casa dela, bateram nela e a agrediram com golpes de facão. Ela pode ter perdido dois dedos ao tentar proteger a cabeça. O marido dela, João Ferreira, estava desaparecido até o início da tarde”, relatou a liderança que terá o nome preservado por questões de segurança.

Carlinhos Alfaiate negou que tenha algo a ver com o episódio e disse que tudo não passou de uma “briga de família”. “É mais uma mentira dessa gente. Foi uma briga de família.  Essa mulher que tá ferida é a Marta, ela é irmã do Alceu Camilo que levou 12 pontos na cabeça dele”, disse Carlinhos ao Sul21 (ver outro vídeo sobre episódio abaixo).

Quanto ao conflito envolvendo o cacicado, ele alega ter um documento do Ministério Público Federal afirmando que o tempo de mandato é de 5 anos. “O tempo por cinco anos o MPF já deixou bem claro que tem existe o documento esclarecendo isso. A doutora Daniela na sua entrevista deixou bem claro também”, afirmou. A doutora Daniela é a procuradora da República Daniela Caselani Sitta, que atua no Ministério Público Federal em Passo Fundo.

 

No dia 17 de fevereiro deste ano, a procuradora expediu ofícios para os comandantes do 7º Batalhão da Brigada Militar em Três Passos e do Comando Regional de Polícia Ostensiva da Fronteira Noroeste, em Santa Rosa, com a requisição de “realização de policiamento ostensivo e de ações para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas na Terra Indígena Guarita, em caráter permanente, enquanto se tiver notícia de que a área se encontra conflagrada – na região noroeste do estado”.

Nestes ofícios, a procuradora afirma que  é de conhecimento público e notório que há um conflito entre indígenas na Terra Indígena Guarita, motivado, principalmente, pela eleição ocorrida em dezembro de 2021, que decidiu pela troca de cacique”. E acrescenta: Por conta do conflito, foi instaurado na unidade do MPF localizada em Passo Fundo um procedimento investigatório, onde já foi apurado que a eleição realizada para o cacicado em dezembro de 2021 desrespeitou o mandato do cacique anterior. É neste ponto que Carlinhos Alfaiate se agarra.

No entanto, em uma nota divulgada no dia 22 de fevereiro, o Ministério Público Federal afirma que o pedido de um reforço de segurança dentro da Terra Indígena do Guarita “não é um reconhecimento pelo legitimidade de nenhum dos grupos que brigam pelo poder”. Na nota enviada ao site Clic Portela, o MPF esclarece que não reconheceu a legalidade ou a ilegalidade da eleição e que apenas fez pontuações como justificativa para o pedido de reforço na segurança, uma vez que o clima de beligerância entre os dois grupos tem sido grande nos últimos dias”. Além disso, afirma que “respeita a autonomia da comunidade para definir as suas lideranças e a política interna da comunidade”. 

O MPF lembra ainda que, em atendimento à solicitação da Funai, os conselheiros indígenas integrantes do Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI) se reuniram no dia 31 de janeiro e deliberaram que as eleições ocorridas em dezembro de 2021 tinham validade e que, por isso, deveria ser respeitada a vontade da população indígena que foi às urnas. Em que pese isso, observa, os dois grupos continuaram em disputa, pois a decisão do CEPI não foi aceita pelo grupo ligado a Carlinhos Alfaiate.

Para a defensora pública Kedi Letícia Bagetti, que atua em Tenente Portela e vem acompanhando o conflito na Guarita, a situação é grave. A partir da decisão do Conselho Estadual dos Povos Indígenas, assinala a defensora pública, o novo cacique apontado no processo eleitoral, Joel Ribeiro de Freitas, começou a tomar algumas medidas como nova liderança. Tentou organizar um processo seletivo para contratar servidores da área da saúde. Esse processo seletivo acabou não saindo porque houve conflito dentro do espaço que estava reservado para isso. A partir daí, relata ainda Kedi Bagetti, começaram conflitos mais intensos, que só vem se agravando (ver vídeo abaixo).

 

“Tivemos várias situações de pessoas lesionadas, feridas e hospitalizadas em razão da disputa pelo cacicado. A Defensoria Pública e o Ministério Público fizeram várias reuniões para tratar dessa situação. Convocamos o Ministério Público Federal para se manifestar. Em um primeiro momento, tivemos uma negativa do MPF, que afirmou que não iria interferir em assuntos de disputa pelo cacicado, que essa seria uma questão interna da comunidade. Continuamos provocando o MPF e tivemos uma manifestação de uma procuradora da República, que falou que o mandato do Carlinhos seria de cinco anos. A partir disso, ela teria encaminhado um ofício à Brigada Militar, solicitando apoio da Brigada para que fizesse a segurança local”.

A partir daí, criou-se uma situação onde Carlinhos Alfaiate passou a se apoiar nesta manifestação da procuradora, enquanto o Conselho Estadual dos Povos Indígenas reconhecia a legalidade do processo eleitoral de dezembro de 2021, e a indicação de Joel Ribeiro de Freitas como novo cacique. A defensora resume assim o que aconteceu daí em diante:

“Estamos vivendo na comunidade um duplo cacicado há quase três meses. A gente consegue verificar que estão faltando direitos básicos à comunidade indígena, além do problema da violência que está espalhada. Por meio de um processo de diálogo, eu pela Defensoria Pública e o promotor de Justiça local, conseguimos manter a paz por algum tempo, mas já sabíamos que ia estourar em algum momento. Clamamos, diversas vezes, pela ajuda das autoridades de segurança pública, mas nada de efetivo foi feito”. 

Nesta terça-feira (8), acrescenta Kedi Bagetti, ocorreu uma situação que ela define como muito grave, com uma pessoa gravemente ferida, numa verdadeira tentativa de homicídio e outra pessoa que ficou desaparecida. “Tudo isso por não haver um órgão que diga de forma definitiva que a eleição está correta ou não está correta. A gente vem pedindo a participação do Ministério Público Federal e da Funai, que são os responsáveis por garantir a lisura desses procedimentos. Nós, enquanto órgãos estaduais, não temos essa atribuição. Estamos atuando para tentar manter a paz, mas não sabemos mais o que fazer”, alerta.


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