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9 de dezembro de 2021
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07:56

Terra e poder: uso de áreas indígenas por produtores rurais produz dinheiro e violência

Por
Luciano Velleda
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Colaboradores do INKA em projetos educativos e culturais do povo Kaingáng foram recentemente espancados e expulsos da aldeia de Serrinha. Foto: Instituto Kaingáng/Divulgação
Colaboradores do INKA em projetos educativos e culturais do povo Kaingáng foram recentemente espancados e expulsos da aldeia de Serrinha. Foto: Instituto Kaingáng/Divulgação

Os homicídios ocorridos na Terra Indígena Serrinha em outubro deste ano, consequência de um conflito interno que se arrasta há algum tempo entre o cacique e grupos de oposição à sua liderança, têm origem remota nas aldeias kaingang do Rio Grande do Sul e do oeste de Santa Catarina. No centro da discórdia está a prática do arrendamento das terras para produtores não indígenas. No caso do território localizado no norte do Estado, em área que abrange os municípios de Ronda Alta, Três Palmeiras, Constantina e Engenho Velho, o arrendamento é prioritariamente para o plantio de soja.

A existência do modelo tem dois efeitos imediatos: a disputa pela posse das áreas que serão cedidas para arrendamento e a gestão dos lucros obtidos – que não são baixos. A prática é considerada ilegal em função das terras indígenas serem de propriedade da União e para uso exclusivo dos indígenas. Porém, nem sempre foi assim. Pelo contrário, durante muitas décadas o arrendamento foi incentivado e organizado pelo governo federal.

O fato do modelo ser praticado há muito tempo é apontado pelas partes envolvidas como o principal dificultador para que haja uma solução. E enquanto o problema se arrasta, as aldeias kainkang no RS seguem mergulhadas em conflitos violentos, com denúncias de perseguições, torturas e mortes.

Coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi Sul), Roberto Liebgott explica que o problema do arrendamento remonta ao começo do século 20, quando os governos estaduais nas regiões Sul e Sudeste mapeavam as regiões onde os indígenas estavam com a intenção de colonizar suas terras. O objetivo era demarcar os territórios para loteá-los e entregar aos colonizadores, normalmente famílias imigrantes da Europa que chegavam ao País no final do século 19. Ao ser criado, em 1910, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) torna-se responsável pela questão indígena no Brasil e mantém a lógica dos Estados.

“O primeiro movimento do SPI é a identificação e a remoção forçada dos índios para áreas que ele (SPI) criava, que são as reservas indígenas”, explica.

Segundo Liebgott, o objetivo do SPI era liberar as terras para a colonização e, ao mesmo tempo, promover a integração dos indígenas para que se tornassem “civilizados”. Ele avalia que a estratégia obteve êxito na remoção dos indígenas e na colonização, mas não deu certo na tentativa de “civilizar” os povos originários. “O que eles queriam na verdade é que os índios se constituíssem em trabalhadores para a agricultura”, afirma.

A reunião de diferentes etnias na mesma reserva foi um problema. Como cada povo tinha cultura e regras próprias, o SPI introduziu medidas de controle baseadas no militarismo. A ação está na raiz da estrutura que ainda vigora nas aldeias.

“Por isso que hoje temos nas terras kaingang, em geral, uma estrutura de poder do cacique e do vice-cacique como uma espécie de ‘generais’, e abaixo eles denominam os ‘capitães, cabos e soldados’, aqueles que vão cumprir as determinações que vêm do cacicado”, diz o coordenador do Cimi Sul.

No mesmo contexto são introduzidas regras de punição, origem das atuais cadeias existentes nos territórios kaingang. Em áreas como saúde, educação e atividades produtivas, a perspectiva da integração era um elemento central.

“Tudo funcionava na lógica de tentar transformar aquele indígena ‘selvagem’ em homem branco pra produzir na terra”, destaca. “Os militares usam os índios pra abrir roças. Eles começam a trabalhar pra essa estrutura de poder, desmatando as terras para plantarem. É o que os indígenas depois denominam de ‘panelões’, grandes mutirões pra promover o desmatamento e a abertura de roçados pro plantio, com a comida feita num grande panelão pra todos”, explica.

Ao longo da primeira metade do século 20, Liebgott diz que, enquanto os homens indígenas trabalhavam na lavoura, as mulheres ficavam na aldeia recebendo uma espécie de “catequese ideológica” para aprender os modos e costumes do branco, uma tentativa de introduzir outra perspectiva cultural no modo de ser indígena. O único ‘erro’ do governo, analisa o coordenador do Cimi Sul, foi não ter conseguido concluir a perspectiva da integração, ou seja, os índios deixarem de ser indígenas. As comunidades indígenas foram assimilando a nova estrutura de poder e se adaptando a ela, porém, sem deixar de serem kaingang ou guarani.

“Eles produzem uma nova lógica que é perversa, a lógica de lidar com a terra. O SPI transformou o indígena num trabalhador agrícola despossuído e quem gerencia o plantio e a lucratividade era o órgão indigenista, com os índios só servindo de mão-de-obra com o passar dos anos”, destaca Liebgott.

Em 1967, a Fundação Nacional do Índio (Funai) é criada em substituição ao SPI. A prática, todavia, perdura. A Constituição Federal de 1988 então proíbe o arrendamento e determina que a terra é da União para usufruto dos indígenas. A prática, no entanto, estava consolidada. Enquanto uns trabalhavam, outros eram instruídos a manter o sistema de produção.

“O kaingang não deixava de ser kaingang, o guarani não deixava de ser guarani, eles mantinham, apesar de toda a catequese ideológica, as suas perspectivas culturais, mas aí num ambiente contaminado no aspecto das estruturas e uso das terras que transcende a Constituição de 1988. O arrendamento passa a ser uma espécie de elemento já cultural dentro dos territórios, e romper com isso é bem difícil”, avalia o coordenador do Cimi Sul.

Em suas andanças recentes pelas aldeias indígenas no RS, Liebgott pondera que o arrendamento está introjetado não apenas no uso da terra, mas também em outras políticas públicas voltadas aos indígenas, como na educação e na saúde, em que atividades remuneradas ocorrem sob o controle das pessoas que detém o poder no território.

“Além do poder concentrado em torno da terra, também esses outros serviços são concentrados no mesmo grupo, ou seja, o arrendamento passa a ser uma espécie de ideia exercida para se obter privilégios e vantagens no território indígena. Há quem controle a terra, as políticas públicas, a renda, enquanto a maioria fica absolutamente excluída de tudo e vivendo à margem, sem acesso adequado à educação, à saúde e outros serviços e sem poder utilizar a terra, que é um bem comum destinado à toda a comunidade. Então se percebe que a lógica do arrendamento contamina todas as relações”, afirma.

Liebgott enfatiza que os indígenas não tinham o hábito de lidar com dinheiro e a prática de manejar o uso da terra também era diferente. O Estado brasileiro foi quem introduziu o arrendamento nas suas terras, desencadeando um processo violento entre eles. “Virou uma coisa quase cultural, mas uma cultura criminosa.”

Em setembro, famílias ameaçadas realizaram protesto em frente ao MPF em Passo Fundo. Foto: Reprodução

Marcos Kaingang, do Conselho de Missão entre Povos Indígenas (Comin), lembra que nas décadas de 1980 e 1990, a Funai iniciou um programa de fomento à produção agrícola em territórios indígenas, com culturas como soja e milho, no formato do arrendamento, sem a anuência das comunidades. A proposta do governo visava estimular o plantio em larga escala dentro dos territórios indígenas. Aos olhos do governo federal, os territórios eram vistos como áreas improdutivas.

“Nós éramos apenas mão de obra. Havia contrato da Funai com produtores rurais pra plantar dentro das terras indígenas, não havia participação indígena nesse processo de diálogo, havia somente a participação como mão de obra”, afirma Marcos, cujo pai trabalhou nos “panelões”.

A Constituição de 1988 tenta mudar a lógica e possibilitar que os indígenas recuperem a autonomia sobre o próprio território. O problema é que a prática do arrendamento já estava consolidada. A partir de então, os negócios seguiram sendo feitos diretamente entre indígenas e produtores, sem a intermediação da Funai.

Segundo o membro do Conselho de Missão entre Povos Indígenas (Comin), os indígenas mantiveram a prática por diferentes fatores, incluindo a dificuldade em obter financiamento para a compra de insumos. “Faltou uma série de políticas públicas para dar autonomia às comunidades indígena de produzirem dentro das suas terras. Eles viviam dentro de um modelo há muito tempo constituído, assumiram o protagonismo num dado momento, mas não tinham condições de dar desenvolvimento na área, e então viram como melhor alternativa ceder as terras para quem já vinha plantando dentro dos territórios indígenas”, explica.

Ele destaca que o Ministério Público Federal (MPF) questiona o modelo há muitos anos, mas ainda assim o arrendamento “corre solto” e não há fiscalização dos órgãos devidos, como a Funai. “Durante muito tempo a Funai incentivou essa prática e não iria mudar do nada sua característica pra fiscalizar. Até hoje a Funai não entendeu que é o órgão fiscalizador que deve coibir essa prática.”

O membro do Comin avalia que para os indígenas foi bom continuar recebendo recursos provenientes do plantio feito por terceiros, ainda que ficassem com uma pequena parte da produção e o lucro expressivo fosse mesmo do arrendatário. Com o tempo, porém, essa relação começou a causar conflitos internos. Muitas áreas do território foram sendo concentradas nas mãos da liderança da aldeia e, consequentemente, o lucro proveniente delas.

“Isso concentrou os recursos nas famílias da liderança, enquanto outras famílias da comunidade ficaram sem nada. Quando um tem muito, o outro não tem nada”, explica Marcos Kaingang.

Por ser o arrendamento uma prática ilegal, o negócio com o tempo foi mudando de nome, como “parceria agrícola” para tentar escapar da legislação. O membro do Comin destaca a atuação do MPF ao tentar fiscalizar a situação, embora, de certa forma, seja mais “cômodo” nada mudar.

“Boa parte das comunidades não tem condições de plantar nas áreas, ter um maquinário, um trator, uma colheitadeira, o maquinário é super caro, então é mais cômodo ceder a área para alguém explorar de fato. É o que chamo de ciclo vicioso”, analisa.

Marcos aponta haver falta de assistência técnica e real interesse dos órgãos públicos. O MPF, segundo ele, é exceção, com ações em determinados casos, como o conflito recente em Serrinha e na Terra Indígena de Nonoai, com a instituição de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) para constituir cooperativas dentro da terra indígena. A tentativa foi dar autonomia e possibilitar à comunidade os meios para ter autossuficiência na produção agrícola, com a cooperativa arrecadando recursos para investir em maquinário e, assim, por fim ao arrendamento do solo para produtores não indígenas. Na prática, entretanto, a ideia tomou outro rumo, e desencadeou numa disputa entre os indígenas pela cooperativa.

“Normalmente quem detém maior quantidade de terras indígenas ou o controle dessas terras são pessoas vinculadas à liderança indígena, normalmente os familiares”, explica. No caso de Nonoai, ele projeta que cerca de 20 famílias têm a posse de 90% da área indígena sob seu controle, num local com mais de 5 mil famílias.

“É assustador estar em poucas mãos. O usufruto deve ser coletivo e não individualizado. Então o arrendamento, além de ser ilegal, traz o problema da concentração de terra e da violência pra manutenção do poder. Quem está na liderança detém mais porções de terra, detém mais diálogo com os fazendeiros pra controle da prática, e as comunidades não aceitam esse modelo de desigualdade interna. A área deve gerar riqueza e bem-estar pra toda comunidade”, destaca.

Marco Kaingang explica que a proposta da cooperativa foi justamente a de propiciar o desenvolvimento social de forma coletiva nas aldeias. Em tese, os valores recebidos pelas cooperativas criadas em Serrinha e Nonoai, em forma de sacas de soja, deveriam servir pra estruturar e investir na produção própria dos indígenas. Porém, da teoria para a prática, afirma que as lideranças tomaram conta das cooperativas. E quem controla a cooperativa, controla o dinheiro.

Conflito que causou mortes na aldeia de Serrinha corre o risco de se repetir com a mesma gravidade na Terra Indígena de Nonoai. Foto: Arquivo Pessoal

O membro do Conselho de Missão entre Povos Indígenas (Comin) diz que a mesma violência que explodiu em outubro em Serrinha está para estourar em Nonoai, a segunda maior área agricultável do Rio Grande do Sul, onde vivem cerca de 5 mil kaingang. “Lá é o mesmo problema. Temos uma cooperativa, no mesmo modelo da Serrinha, e a liderança ocupa os cargos de presidente, vice-presidente e tesoureiro…”

Segundo ele, que é originário da terra de Nonoai, no último ano a cooperativa movimentou cerca de R$ 2,5 milhões. O valor deveria servir para investimento em maquinário e para auxiliar a comunidade, como a compra de alimentos. Assim como em Serrinha, a acusação é que em Nonoai também não há a gestão participativa da comunidade nos recursos. Em função das desavenças causadas pelo modelo de arrendamento, parte da comunidade de Nonoai quer dividir o território. No mesmo roteiro visto na Serrinha, em Nonoai a liderança da área também é acusada de prender e usar de violência pra reprimir as vozes dissidentes.

“Há famílias que não têm nada, enquanto a liderança tem tudo. A liderança anda de Hilux (caminhonete) enquanto a comunidade mal tem como se descolar”, afirma. “Qualquer questionamento contra a liderança é sinônimo de sofrer repressão, ser preso, sofrer violência, em alguns casos ser morto. Já está previamente anunciado um conflito idêntico ao que deu na Serrinha.”

A ação dos órgãos públicos é criticada, principalmente da Funai, acusada de não fiscalizar o Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) que estipulou regras para a gestão das cooperativas, incluindo a distribuição e investimento dos recursos obtidos. Sobram críticas também para o Ministério Público Federal (MPF), acusado de igualmente não fiscalizar os compromissos firmados no TAC. Marcos enfatiza que a liderança não é dona do território e tampouco tem direito de usar a violência para reprimir vozes contrárias.

“Quando a liderança tem muita terra, ela quer mandar todo mundo embora, acha que o território é dela, mas ela só tem mais terras porque tem a parte muito lucrativa do arrendamento”, pondera. Na sua opinião, as comunidades querem outro modelo ou, se for manter o arrendamento, que seja de fato coletivo e que os órgãos responsáveis fiscalizem.

Fernanda Alves de Oliveira, procuradora do Ministério Público Federal (MPF) em Passo Fundo, é uma pessoa no olho do furacão. Nos últimos anos, as disputas, brigas e desavenças causadas pelo arrendamento nas terras indígenas de Serrinha e Nonoai passam pelas suas mãos.

Ela reconhece que a situação é complicada e que o problema não é exclusivo de determinado território. Há várias ações penais na Justiça por causa de crimes cometidos envolvendo as disputas entre indígenas pela liderança e controle de diferentes áreas.

“É triste, mas infelizmente a situação de Serrinha não é a única. Enquanto a gente não conseguir mudar a questão do arrendamento na região, que não é exclusiva do Rio Grande do Sul e acontece também no oeste de Santa Catarina com os kaingang, infelizmente outras mortes podem acontecer, como vem acontecendo ao longo do tempo”, afirma.

A procuradora cita que o MPF move ação contra arrendatários e a Funai na Terra Indígena de Guarita desde os anos de 1990. Em outubro, quando houve os homicídios em Serrinha, a Força Nacional estava nas proximidades para apoiar a Funai na identificação dos atuais arrendatários na Guarita, obviamente hoje diferentes daqueles da década de 1990, quando a ação iniciou. “Mesmo quando a gente aciona o judiciário, a realidade não muda do dia pra noite”, lamenta.

E para que haja mudança, Fernanda argumenta depender de outros órgãos, como o engajamento da Funai e dos Estados. Ela explica que um dos motivos que levam os indígenas à prática do arrendamento é a dificuldade de plantar por conta própria, sem assistência técnica dos Estados para auxiliá-los a alcançarem a autonomia.

“É mais fácil manter como está do que fazer todo um planejamento e engajar as secretarias de Agricultura, a Emater, a Funai… Os indígenas têm dificuldade de ter acesso a crédito bancário. São muitos órgãos e articulações pra se tentar mudar a realidade nas áreas indígenas”, avalia.

Caso contrário, ela pondera que as ações do MPF acabam se arrastando por longo período. Fernanda acredita que se a ação for específica contra determinados arrendatários sem mudar a realidade de modo mais amplo, ocorre apenas a saída de uns e a entrada de outros, dando prosseguimento ao problema. “Se a gente não consegue mudar as condições que ‘favorecem’ a continuidade do arrendamento, você só muda os atores. É um eterno ‘enxugar gelo’.”

A dificuldade da fiscalização é apontada como um problema central pela procuradora do MPF. Ela ressalta que o antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), depois transformado na Funai, apoiava a prática do arrendamento, mas nos últimos anos a posição da Funai mudou. O problema da fiscalização, todavia, ainda não conseguiu transformar a mudança de entendimento em ação prática. Isso apesar da Funai ter poder de polícia em área indígena. A falta de pessoal e de estrutura são considerados fatores que inviabilizam o trabalho.

“São poucos servidores. O sucateamento da Funai vem acontecendo há vários anos, a situação vem piorando ao longo do tempo. Acho que nesse governo piorou, mas já vinha numa situação de sucateamento”, afirma. “Tem deficiência na fiscalização e a dificuldade de criar condições mais favoráveis pra mudar a realidade, pra que não seja simplesmente denunciar uma pessoa e depois outra assumir o lugar. A gente precisa criar condições pra que essa realidade mude.”

Sabedora das críticas que recebe por parte das famílias perseguidas pela liderança das aldeias, a procuradora faz questão de dizer que sua atuação não abrange a parte criminal dos processos. “Minha atuação é tentar apaziguar o conflito, tentar trabalhar nas coisas que levam ao conflito, mas os relatos de ameaça, prisão e cárcere privado não cabem a mim. Quando chegava alguma coisa sobre isso, minha atitude era comunicar pra Polícia Federal, mas a investigação sobre esses fatos e eventuais medidas de cunho criminal, não ficam a cargo da minha pessoa, e sim de outros colegas”, justifica. Acesso à saúde e educação e demarcação de terra indígena estão também na sua alçada. “A parte da violência e dos crimes não está comigo.”

A disputa pelo controle das áreas cedidas aos produtores rurais há décadas afeta a harmonia nas aldeias kaingang. Foto: Bibiana Canofre/Sul21

No final de outubro, a procuradora expediu uma recomendação para que a Funai não renove o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que envolve o funcionamento das cooperativas agrícolas criadas em Serrinha e em Nonoai, como tentativa de encontrar uma alternativa para o problema do arrendamento. O TAC de Serrinha foi assinado em 2019 e venceu em 2020, enquanto o TAC de Nonoai foi firmado em 2018.

Na ocasião, os indígenas alegaram não ser viável acabar com os arrendamentos de uma hora pra outra, sob risco de haver problema de segurança alimentar. A ideia então foi criar um projeto de transição, que consistia em transferir aos poucos para a cooperativa as áreas entregues ao arrendamento. Nesse período, a cooperativa iria se capitalizar e iniciar o plantio por conta própria, auxiliando os indígenas que não quisessem depender dos arrendatários.

“Esse projeto de transição traria transparência, porque a gente tinha a informação do arrendamento, mas não sabia valores, quem era beneficiado, onde esses valores eram empregados, quem estava envolvido. Então a ideia era ter transparência, fazer a transição pro plantio autônomo e, ao mesmo tempo, parte dos recursos serem empregados em benefício dos indígenas que não plantavam”, explica Fernanda.

Em julho de 2020, mesmo ano em que venceu o TAC de Serrinha, o cacique do território morreu vítima de covid-19, e isso desencadeou uma disputa pela liderança do local.

Em meio à pandemia, a procuradora comenta ter debatido com agentes da Funai se valeria a pena renovar os TACs, considerando a disputa no território pela liderança e denúncias de que o TAC estava sendo descumprindo nos termos da gestão da cooperativa. Ela explica que o projeto de transição foi previsto para durar cinco anos, porém optou por não assinar um TAC tão longo com receio de que esse não seria o melhor caminho. Caso se mostrasse efetivo, então se renovaria, com possíveis ajustes.

Nas conversas com a Funai para renovar ou modificar o TAC, Fernanda diz ter concluído que o processo precisava de melhorias no controle de fiscalização. A Funai, todavia, disse não ter condições de cumprir o que seriam as novas exigências. Diante do impasse, a procuradora decidiu que o Ministério Público Federal não iria mais participar do TAC.

“Não quero estar chancelando uma coisa que não sei se está cumprindo o papel que deveria”, argumenta. “Lá atrás, achei que o TAC tinha mais vantagens do que desvantagens. Na hora da renovação fiquei na dúvida, talvez ele não estivesse cumprindo o que deveria.”

O MPF, por sua vez, expediu recomendação para que a Funai, se renovasse, ouvisse as vozes críticas dos indígenas descontentes com o processo. O órgão do governo federal manifestou interesse em renovar o TAC com as cooperativas e disse ter ouvido as queixas dos indígenas em conflito com as lideranças – tal escuta, entretanto, ocorreu frente a frente com as lideranças e não de forma separada.

Para a procuradora, a atitude da Funai prejudicou o diálogo, em função do constrangimento dos indígenas perseguidos terem que se manifestar diante de quem eles acusam de perseguição. “Ali, pra mim, ficou claro que, por mais que a Funai não estivesse restringindo a participação dos grupos opositores, ela também não estava dando condições necessárias para que eles tivessem participação mais efetiva nas discussões”, avalia.

Até o momento, a Funai ainda não respondeu ao MPF se renovará o polêmico TAC que estipula o funcionamento das cooperativas.


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