Entrevistas
|
20 de janeiro de 2024
|
07:05

Melo sobre compras da Smed: ‘Não é meu papel comprar, meu papel é ser prefeito. Eu deleguei à secretária’

Por
Sul 21
[email protected]
"Quem conhece o Melo sabe que eu não condeno, nem absolvo por antecipação", disse o prefeito ao analisar o escândalo da Secretaria de Educação. Foto: Willian Correa/Sul21

Quando a entrevista com Sebastião Melo (MDB), realizada pelo Sul21 em seu gabinete na última terça-feira (16), se aproximou de 30 minutos, o assessor acenou que já era hora de encerrar. O prefeito então disse que concluiria a resposta e que poderia haver mais uns minutos de conversa. Ele chegou a brincar com a reportagem: “Vocês nem me apertaram muito”.

Leia mais:
Melo: ‘Se tem 100 mil apartamentos vazios, é o capitalismo, não vou intervir’
Melo: ‘Quem não estiver preparado para crises, não pode ter sucesso em cadeira de prefeito’
Melo diz que já tem apoio de PL, PP e PRD à reeleição, mas só decidirá se concorre em abril

Foi quando houve a oportunidade de perguntar sobre o relatório da auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE) que investigou as compras suspeitas de material didático feitas pela Secretaria Municipal de Educação (Smed) durante o governo Melo. O trabalho se debruçou sobre 11 adesões a atas de registro de preços feitas em 2022 pela Smed – procedimento conhecido como “carona” por acelerar o gasto público dispensando licitação –, em diferentes regiões do País. Segundo o órgão, tais adesões não observaram os adequados preceitos legais.

O documento conclui ter havido contratação de empresa inidônea e completa falta de planejamento para a definição dos itens necessários à melhoria do ensino na Capital. O relatório sugere a responsabilização de Melo, da ex-secretária de Educação, Sônia da Rosa, e de outras 14 pessoas, além de quatro empresas – Astral Cientifica Comercio de Produtos e Equipamentos Ltda; Edulab – Comercio de Produtos e Equipamentos Ltda; Inca Tecnologia de Produtos e Servicos Ltda; e Wr Distribuidora e Industria Textil Ltda.

Ao ouvir que a auditoria do TCE sugere a sua responsabilização, Melo mudou completamente a postura. Se mexeu na cadeira e alterou o tom de voz. “Já tem um julgamento? Já me responsabilizaram? Quem é que julga? É o conselheiro ou o auditor?”, questionou, incomodado.

O documento da auditoria ainda recomenda a imposição de débito de R$ 6,2 milhões aos responsabilizados, consequência dos possíveis prejuízos causados aos cofres públicos da Prefeitura. As compras suspeitas, em valores totais que ultrapassam R$ 100 milhões, foram objeto de duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) em 2023, uma comandada pelos aliados do prefeito, tendo como presidente o vereador Idenir Cecchim (MDB), líder do governo na Câmara; e outra presidida pela vereadora Mari Pimentel (Novo), cujo desempenho firme em investigar as suspeitas fustigou a prefeitura. Por acordo, as duas CPIs acabaram unificando os trabalhos, ainda que mantendo dois presidentes distintos.

As compras suspeitas se referem a livros, materiais de laboratórios de ciências e matemática, brinquedos, mesas digitais, telas interativas, aparelhos esportivos e chromebooks. A auditoria avaliou ainda a compra de kits de robótica por inexigibilidade, ou seja, quando a compra é feita diretamente com determinado fornecedor sob a justificativa de não haver concorrente. No total, as compras realizadas pela prefeitura e analisadas pela auditoria do TCE somaram R$ 137 milhões.

“Primeiro, queria dizer o seguinte. Eu acho que a primeira manifestação que eu fiz e vou repetir, eu reconheci e reconheço o problema logístico na Smed. Mas a auditoria que foi produzida por servidores de carreira severíssimos, dentro da Prefeitura, um relatório de 121 páginas, que foi para o Ministério Público, para a Polícia Civil e para o Tribunal de Contas, que está investigando em cima daquele relatório. O relatório não apontou corrupção no governo, apontou exatamente o que eu disse. Talvez tu comprou a quantidade de computadores certa, mas as tomadas que você tinha para instalar os computadores não estavam corretas”, afirmou Melo, tentando minimizar o escândalo que sacudiu seu governo.

 

Membro da base do governo, Mauro Pinheiro (PL) foi o relator do documento final aprovado. Foto: Ederson Nunes/CMPA

O relatório da auditoria do TCE, entretanto, vai além de meros erros de logística. A análise aponta que a Secretaria Municipal de Educação (Smed) efetuou compras de milhões de reais de empresas classificadas de “inidôneas”, além de ter havido falta de planejamento na compra dos materiais.

“Desse relatório, eu tomei muitas decisões, inclusive sobre depósitos, sobre distribuição de materiais, abrimos vários procedimentos. Veio uma CPI, aliás foram duas CPIs, e a CPI apontou um relatório, que também não apontou nenhuma corrupção do governo, e agora vem uma auditoria que eu vou respondê-la no dia 5 de fevereiro”, explicou o prefeito.

De fato, o relatório do vereador Mauro Pinheiro (PL), aprovado dia 5 de dezembro do ano passado, não apontou corrupção na Prefeitura. Era o resultado esperado. A aprovação do texto nas duas CPIs era dada como certa em função da composição majoritária de aliados do prefeito. Entre os vereadores que votaram contra o relatório, a justificativa central foi de que o documento era superficial e favorável ao governo Melo por não apontar os indícios de fraude e formação de cartel que as investigações teriam revelado.

O prefeito argumenta ter sido responsabilizado no relatório do TCE por ter delegado para a ex-secretária Sônia da Rosa o direito de fazer as compras de materiais didáticos via adesão a atas de preço. Em maio de 2022, por decreto, Melo concedeu à Smed poderes para aderir às atas de preço diretamente, sem necessitar de análise prévia da Prefeitura. O ato foi exclusivo para a Secretaria de Educação e consolidou o projeto de aceleração dos gastos. Entre julho e dezembro de 2022, os gastos chegaram a R$ 73,5 milhões. Das 21 adesões realizadas pela Prefeitura em 2022, 11 foram da Secretaria de Educação.

“Eu não sou chefe de compras, eu sou o prefeito de Porto Alegre. Eu não comprei uma caneta, não comprei um livro, não é meu papel comprar, o meu papel é ser prefeito. E, portanto, deleguei à secretária, como delego a vários outros secretários, como o Tribunal de Contas delega, como o governador Eduardo delega, como o presidente Lula delega”, justificou o prefeito.

Buscando aparentar tranquilidade, Melo disse que irá responder a todos os itens apontados no relatório no “devido processo legal”. Ponderou que o trâmite do documento agora é ir para o relator de contas, que depois encaminha para o plenário do Tribunal. O prefeito projeta que o assunto se arrastará por dois, três ou quatro anos, para só depois ter um julgamento. “Esses apontamentos são feitos por auditores, que eu não quero aqui discutir, nem sequer apresentei a minha defesa ainda, estou dentro do prazo legal”, afirmou.

Melo: “Tenho uma vida de parlamentar, vice-prefeito e prefeito que, se tem uma coisa que não chega em mim, é corrupção”. Foto: Willian Correa/Sul21

Se o relatório do vereador Mauro Pinheiro cumpriu a expectativa de não pegar pesado com o governo municipal, o relatório paralelo escrito pela presidente da CPI da Educação, Mari Pimentel (Novo), seguiu caminho bem diferente.

O documento, entregue ao Ministério Público Estadual dia 29 de novembro do ano passado, organiza uma série de nomes de empresários, empresas e funcionários públicos que teriam participado das aquisições irregulares, ligando as relações pessoais e profissionais entre os envolvidos.

Na cronologia dos fatos, Mari afirma que a descoberta de uma fotografia onde o lobista J.F.S. se reuniu com a cúpula da prefeitura abriu uma das maiores linhas de investigação da CPI da Educação. Conhecido como “Jajá”, ele é representante comercial das empresas Inca Tecnologia e Astral Científica, comandadas pelo empresário Sérgio Bento de Araújo, e esteve diretamente envolvido em seis das 11 compras investigadas. Entre junho e outubro de 2022, foram mais de R$ 43 milhões recebidos da prefeitura pela venda de materiais pedagógicos que acabaram estocados em depósitos e escolas da cidade.

Ao longo do relatório, a vereadora procura explicar a intrincada teia de contatos que teria atuado nas compras suspeitas da Secretaria Municipal de Educação (Smed). O mesmo J.F.S., por exemplo, também é proprietário das empresas JBG3 e World Soluções, que, em tese, vendem os mesmos produtos das empresas Inca e Astral, das quais ele é representante. Segundo a vereadora, as empresas JBG3 e World Soluções apareceram nas licitações apenas para entregarem orçamentos mais altos, o que seria um indício de fraude nos processos de aquisição, com intuito de cumprir formalmente com o requisito da demonstração da vantajosidade da adesão à ata.

Desse modo, a Inca vendeu, em quatro contratos, cerca de 400 mil livros, no valor de R$ 27,9 milhões, material que depois ficou estocado em depósitos pela cidade. Desses livros, mais de 73 mil unidades foram entregues com erros de português e matemática e tiveram que ser devolvidos. “Essas compras foram realizadas com direcionamento de empresas e fraude à coleta de orçamentos, pegando carona em uma tomada de preços do governo de Sergipe”, sustenta a presidente da CPI da Educação no relatório.

Por sua vez, a empresa Astral vendeu 104 laboratórios de ciências ao custo de R$ 6,7 milhões. Os kits foram entregues pelo próprio J.F.S. no dia 14 de julho de 2022, no depósito alugado pela Smed no bairro Jardim Botânico.

Para que essa compra ocorresse, a empresa Sirius Tecnologias Educacionais apresentou orçamento mais alto. O detalhe é que a proprietária da empresa, Ana Sara Domingos Araújo, é sobrinha de Sérgio Bento de Araújo, o dono da empresa vencedora, e filha do irmão do empresário, Alfredo Bento de Araújo.

“Alfredo é investigado pelo Ministério Público Federal por conluio em outra concorrência forjada. Enquanto no caso denunciado pelo MPF a empresa de Alfredo apresentou orçamento superior ao da empresa do irmão Sérgio, no caso de Porto Alegre foi a empresa de sua filha, Ana Sara, que apresentou orçamento superior ao da empresa do tio Sérgio”, sustenta Mari Pimentel.

 

Presidente da CPI da Educação, Mari Pimentel investigou a fundo as suspeitas e causou incômodo na prefeitura. Foto: Elson Sempé Pedroso/CMPA

No documento entregue ao Ministério Público Estadual, a vereadora Mari Pimentel enfatiza que o relatório preliminar da auditoria realizada pela Prefeitura demonstrou irregularidades nos processos de compra da Secretaria Municipal de Educação (Smed). Não foram seguidos os procedimentos corretos de pesquisas de preço e nem justificativas que demonstrassem a impossibilidade de aquisição de itens similares ou a vantagem econômica.

A pesquisa de mercado é considerada uma etapa fundamental para a correta utilização da modalidade de adesão a ata de preços, de modo a garantir que não haja produtos similares por preços mais baixos do que os registrados no processo.

“Nas compras realizadas pela SMED, os documentos referentes a essa comprovação eram fracos e com notáveis problemas, como trechos inteiros copiados diretamente de peças de marketing das empresas contratadas. O objetivo era criar requisitos complexos, que descreviam diretamente os produtos oferecidos por certas companhias – ou seja, direcionar as compras”, afirma a presidente da CPI da Educação.

Ela pontua que ao longo da CPI houve a denúncia de que os processos de compra eram feitos com orçamentos forjados, direcionados para beneficiar empresas escolhidas previamente. Segundo áudios divulgados pela servidora Mabel Luiza Vieira, envelopes com pendrives eram entregues na Secretaria de Educação, com os documentos necessários para a adesão às “caronas”, como orçamentos e justificativas previamente elaboradas e com os vencedores definidos.

Conforme os áudios, os pendrives eram entregues por Alexandre Borck, secretário municipal de Inovação e presidente municipal do MDB.

“Eu estou muito tranquilo de que o que fiz, tanto na Educação, como em outras áreas do governo, fiz com o desejo, com a vontade e com consistência para melhorar a vida das pessoas e da cidade. Todos os governos podem ter seus problemas. Agora, eu posso dizer, tenho uma vida de parlamentar, vice-prefeito e prefeito que, se tem uma coisa que não chega em mim, é corrupção, eu não estou na política por causa disso”, afirmou.

Em que pese todos os indícios de irregularidades trazidos à tona durante a CPI, Melo manteve o discurso de que houve “problema de gestão e de logística”. Sobre as denúncias de suposta criação de cartel dentro da Smed para compras de material didático, disse que isso é trabalho para a polícia e o Ministério Público.

“Não sou delegado de polícia, não sou promotor, sou prefeito de Porto Alegre. Investiguei e mandei para os órgãos. Acho que essa pergunta tem que ser direcionada para os delegados de polícia, tem que ser direcionada ao Ministério Público, porque a eles competem. Eu sou um democrata que digo o seguinte, quem conhece o Melo sabe que eu não condeno, nem absolvo por antecipação. Toda a vez que eu tive um problema nesses três anos de governo, eu fui a primeiro a dizer”, ponderou.

E arrematou em seguida: “Eu não vou condenar e não vou absolver ninguém. Agora, eu mandei abrir todos os procedimentos e os inquéritos do mundo, o Ministério Público vai fazer, o Tribunal de Contas vai fazer e, no devido processo legal, é isso. Só o Alexandre de Moraes julga sem o devido processo legal. A democracia que eu defendo não permite isso”.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora