Educação
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21 de dezembro de 2023
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06:27

Projeto de Leite para Educação acaba com gestão democrática das escolas, dizem pesquisadoras

Por
Luís Gomes
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Votação do pacote da educação na Assembleia Legislativa. Foto: Luiza Castro/Sul21
Votação do pacote da educação na Assembleia Legislativa. Foto: Luiza Castro/Sul21

A Assembleia Legislativa aprovou no dia 12 de dezembro quatro projetos de lei voltados para a educação do Rio Grande do Sul. O principal deles trata do chamado “Marco Legal da Educação Gaúcha”. Contudo, um dos projetos que mais tem causado preocupação entre os educadores é o PL 519/2023, que aborda a gestão democrática do ensino público estadual. O ponto chave da proposta é a mudança na lei de 1995 que trata do tema para afirmar que a “autonomia” das escolas deverá observar as diretrizes da Secretaria de Educação (Seduc).

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O principal objetivo do projeto, segundo o governo estadual, é adequar a legislação que trata da gestão democrática, promulgada em novembro de 1995, à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), promulgada em dezembro de 1996, e às demais normativas posteriores a 1995.

A reportagem do Sul21 tentou agendar uma entrevista com a secretária de Educação, Raquel Teixeira, para esclarecer as mudanças previstas no projeto de lei aprovado, mas obteve como retorno uma nota que afirma que o foco da proposta é o “fortalecimento do Conselho Escolar”, com a representatividade administrativa, e do processo de escolha de diretores, com a inclusão de etapas preliminares (com curso e prova) para os candidatos se habilitarem à votação direta. A nota da Seduc destaca também que as escolas teriam mais autonomia financeira, pois os conselhos escolares passarão a ser o órgão executor para recursos estaduais, assim como já ocorreria com os recursos federais.

Na justificativa, o projeto de lei afirma a necessidade de atualização da lei e do estabelecimento de novas diretrizes em razão das transformações dos sistemas de educação nos últimos 25 anos. “Buscando tornar a gestão das escolas estaduais ainda mais democrática, por exemplo, o Projeto de Lei propõe o fortalecimento do papel do Conselho Escolar, que poderá passar a constituir a unidade executora dos recursos estaduais direcionados à unidade escolar, estabelece novo procedimento para a designação de Diretores e Vice-Diretores, aprimorando os mecanismos de seleção que visam a qualificar os quadros em consonância com a Base Nacional Comum de Competências do Diretor Escolar”, diz o texto.

A promessa de tornar as escolas mais democráticas, contudo, é questionada pelo CPERS e por pesquisadoras ouvidas pela reportagem. Em análise técnica sobre o PL 519, o sindicato aponta como problemático o texto do Artigo 2º do projeto, que estabelece que a autonomia pedagógica, administrativa e financeira das instituições de ensino deverá observar diretrizes da Seduc.

“Pode parecer pouco, mas são estes tipos de amarras que efetivamente engessam a comunidade escolar de tomar decisões minimamente autônomas, porque ficam, para qualquer situação, obrigadas a consultar os interesses do governo. Os exemplos podem ser inúmeros, desde o conteúdo de uma palestra ou uma peça de teatro, até formas de abordagens em sala de aula sobre conteúdos sensíveis à sociedade, como preconceitos, etnia, religião ou a própria polarização política. Em suma, a liberdade pedagógica, a liberdade de cátedra, fica presa à ideologia do governo no poder”, diz parecer elaborado pela assessoria jurídica do CPERS.

O parecer também expressa preocupação com o fato de que, ao mesmo tempo que retira autonomia das comunidades escolares, o projeto aumenta suas responsabilidades, especialmente dos diretores, sem garantir o efetivo apoio para o cumprimento na prática. No campo pedagógico, isso é efetivado, na avaliação do parecer, com a substituição dos atuais Planos Integrados por dois novos instrumentos, o Projeto Político-Pedagógico e o Plano Anual de Ações e Metas, devendo ambos serem avaliados pela Seduc.

O documento também aponta que, no Artigo 7º, há previsão de “garantia do desenvolvimento profissional dos professores por meio de formação continuada” como diretriz da gestão pedagógica, mas que a realidade demonstraria que os professores não conseguem obter licenças para mestrado, por exemplo. “Quer dizer, é impossível o atingimento de metas sem que efetivamente o governo crie amarras jurídicas que de fato garantam aos professores e professoras o acesso à formação continuada. Enquanto os professores tiverem que fazer seus cursos de formação e extensão nos seus horários de descanso, não haverá de fato melhoria efetiva”, diz o documento.

Contudo, a principal crítica do parecer é quanto às mudanças nas regras para escolha de diretores. O Artigo 11º estabelece que as direções serão escolhidas mediante duas etapas: a) pré-seleção dos candidatos realizada pela Secretaria da Educação; b) votação direta pela comunidade escolar.

O parecer avalia que a pré-seleção, que será feita mediante curso preparatório de 60 horas (a ser realizado por todos candidatos) e prova de conhecimentos específicos, passa a permitir avaliações subjetivas, bem como pontua que os atuais diretores já passam por cursos preparatórios, mas apenas após a realização de processos seletivos em suas escolas.

“Uma vez aprovados na prova, os candidatos deverão apresentar o Plano de Gestão Escolar (PGE), com aspectos administrativos, financeiros e pedagógicos (que servirá de base do Projeto Político-Pedagógico a ser aprovado pelo Conselho Escolar no primeiro ano de mandato). O PGE deverá ser formulado a partir de documentos cujos modelos serão fornecidos pela Seduc (via decreto), e com as diretrizes da Seduc. Ou seja, é possível concluir que todos os PGEs deverão ser iguais, de modo que, se um candidato ousar colocar (ao crivo da eleição, diga-se) uma ideia de como entende que a escola deve se portar diante dos desafios colocados, poderão ser subjetivamente eliminado da disputa”, argumenta o parecer.

A análise ainda critica o fato de que o projeto de lei prevê que os Conselhos Escolares passarão a ser “unidades executoras” de políticas públicas, uma vez que ficarão responsáveis pela gestão financeira dos recursos repassados para as escolas por meio do Plano de Autonomia Financeira das Escolas, o que é apresentado pelo governo como uma media para dar maior agilidade para a aplicação de valores. Contudo, o parecer aponta que o texto do projeto não esclarece como o Conselho Escolar deverá funcionar na prática, deixando a matéria para ser regulamentada posteriormente por decreto do Poder Executivo.

A professora Vera Maria Vidal Peroni, coordenadora do Grupo de Pesquisa Relações entre o Público e o Privado em Educação da Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, também questiona a falta de clareza do projeto de lei, com questões importantes devendo ser regulamentadas posteriormente, e o que considera ser contradições.

“No Artigo 1º, fala que é para assegurar a participação, acompanhamento, monitoramento e fiscalização da gestão educacional. E aí, logo depois, no segundo, fala que existe autonomia dos estabelecimentos na gestão pedagógica. Como assim? No primeiro eles falaram que vão monitorar e fiscalizar, e depois fala no segundo que tu tem autonomia”, questiona, acrescentando que a contradição é ampliada com o fato de as políticas pedagógicas precisarem ser aprovadas pela Seduc. “Como assim tem que seguir o modelo que a secretaria vai dar e a escola tem autonomia?”.

Contudo, a maior preocupação da professora é com as brechas que o projeto abre para a responsabilização e substituição das direções em eventual descumprimento de diretrizes e metas previstas na lei e pela Seduc. Um exemplo disso seria a previsão, no Artigo 7º, de que a gestão pedagógica das escolas deve observar a garantia da igualdade de condições para acesso e permanência na educação básica.

“Essas garantias de igualdade de condições têm que ser feitas através de políticas públicas. Como que a escola, dentro dos seus limites, com o financiamento que não tem, vai promover esse tipo de política? Isso é coisa de política pública, de sistema, não de escola. Depois, adoção de medidas para apoiar estudantes em situação de vulnerabilidade. Isso também é política pública, isso seria um papel de gestão do sistema e não gestão da escola. Então, a gente vai vendo em todos os artigos que é uma responsabilização muito grande para a escola. Eles repassam a responsabilidade para a escola e falam assim: ‘não fez o que eu quis, eu tiro o diretor’”, afirma Vera Peroni.

A professora argumenta ainda que as mudanças no processo de seleção de direções configuram grandes perdas para a democracia. “Nós entendemos que a escola também é um espaço de aprendizagem da democracia. Eleger um diretor não pode ser simplesmente uma nomeação, é um aprendizado de democracia representativa para os alunos e para os pais, para eles entenderem quem está representando, com que proposta. A gente não aprende democracia só lendo um texto, mas nesses espaços de participação”, diz.

Mariângela Bairros, coordenadora do Grupo de Estudos em Políticas Públicas para o Ensino Médio (Geppem) da Faced, avalia que o PL amarrou a legislação para que todas as decisões passem pela Seduc, que passa a ter o papel de referendar as escolhas das comunidades escolares. “Ou seja, tira completamente a autonomia das escolas. Se chegar na Seduc e ela não concordar, não aprova. Por exemplo, o Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola deverá ser avaliado a cada nova gestão em quatro anos, ok, mas a avaliação do PPP deverá ser feita pela CRE [Coordenadoria Regional de Educação] em consonância com a Seduc. Ou seja, todos os projetos amarram, imobilizam a gestão das escolas sobre a tutela absoluta, de absolutismo, da Seduc”, afirma.

Ela salienta que o PL está inserido num contexto. Segundo dados do IBGE-Munic de 2018, 79,3% dos municípios do Brasil são responsáveis por indicar os diretores de escolas e que, no Rio Grande do Sul, isso ocorre em 418 dos 497 municípios gaúchos. “É um movimento de acabar com eleição de diretores”, afirma.

Mariângela aponta ainda que o PL 519 traz uma previsão inconstitucional de proibir que diretores sejam eleitos para entidades sindicais ou associativas, com a previsão de destituição do cargo.

Vera Peroni argumenta que a proposta, assim como a totalidade do pacote aprovado na semana passada, está inserida num processo de cooptação da gestão da educação pela agenda de grupos e fundações financiadas pelo grande empresariado brasileiro. “Quando a gente lutou pela gestão democrática lá na Constituição de 88, era para a escola ser um dos espaços de construção da democracia no país. Então, o que está se perdendo não é qualquer coisa, num período que se diz democrático, tu tira completamente o papel da escola na construção desse processo democrático e coloca as balizas de um projeto completamente vinculado ao mercado gerencial, com metas, com responsabilização. É uma mudança de paradigma muito grande e uma perda que talvez as pessoas ainda não tem noção de que perda foi essa para a educação do Rio Grande do Sul, nem os professores, nem as escolas e muito menos os deputados que votaram a favor dessa proposta”, afirma.

Geovana Affeldt, diretora da Escola Estadual de Ensino Médio Tuiuti, de Gravataí, expressou suas preocupações com o pacote de educação quando ele foi debatido na Comissão de Educação da Assembleia Legislativa no início de dezembro. Na ocasião, pontuou que as direções, a partir do PL 519, passam a ficar em situação vulnerável mediante a possibilidade de substituição, mesmo não recebendo do Estado as condições mínimas para cumprir metas e diretrizes pedagógicas da Seduc. No caso da Tuiuti, a direção travou uma luta de cinco anos pela substituição do forro de um pavilhão que desabou em 2018 — a escola recebeu uma reforma concluída em 2023 — e enfrenta anualmente o problema da falta de professores.

Na semana passada, Geovana foi chamada pela secretária Raquel Teixeira para uma conversa, em que a titular da Seduc se colocou à disposição para esclarecer dúvidas e tranquilizar a diretora com relação aos temores de perda de autonomia das escolas. Em conversa com o Sul21 após o encontro, pontuou que é cética em relação à posição da Seduc, uma vez que está “calejada” diante da falta de estrutura e falta de escuta por parte da secretaria. “Eu disse a ela que sou meio cética, meio incrédula, de que as coisas venham para melhorar, tendo em vista tudo que eu já passei aqui na escola, mas ela tentou me tranquilizar. Eu espero que seja isso, mas só vamos ver quando começar. Não tem nada dito como vai ser o curso, como vai ser a prova. A gente só vai ter certeza de que isso não vai prejudicar a gestão democrática se colocar isso em prática”, afirma.

Para Geovana, as medidas aprovadas vão desestimular professores de assumirem cargos de gestão em suas escolas. “Ser diretor já é uma coisa bem complicada, então quanto mais se dificulta, menos pessoas vão querer passar por isso”, avalia.

Questionada sobre qual seria a motivação existente para alguém assumir um cargo de direção atualmente, ela avalia que a principal seria uma “utopia de conseguir melhorar as coisas”. “Em todos esses anos que eu estou na direção [está em sua terceira gestão], a cada ano existe um acúmulo maior de funções para o diretor e uma responsabilização maior na pessoa do diretor. Com essa lei, então, o cumprimento de metas, o cumprimento do plano de ação, a gente é mais responsabilizado pelo sucesso ou pelo fracasso da escola. Nos é cobrado que a gente alcance o Ideb, mas continua faltando o professor. Nos é cobrado que a gente diminua a evasão, diminua a repetência, mas o caminho ali não mudou, a morosidade do RH, a falta de professores, a extinção de cargos, não ter mais biblioteca, essas coisas não mudaram. E aí, lá no fim, nos cobram metas. Eu percebo que, com essa lei, isso fica institucionalizado. Essa cobrança sempre existiu, mas agora ela é institucional, ela é legalizada, então isso me preocupa um pouco com relação à autonomia que a gente tem e o poder lutar pela pela tua comunidade sem risco de represália”, finaliza.

Mariângela Barros acrescenta ainda que, além das mudança na gestão das escolas, o pacote da educação encaminhado pelo governador Eduardo Leite também incluiu o Projeto de Lei 518, que muda a composição do Conselho Estadual de Educação (CEEd), reduzindo a proporção de vagas ocupadas por representantes da sociedade civil. Atualmente, o CEEd tem 22 vagas, 15 destinadas à representação da sociedade e sete nomes indicados pelo governo estadual. A proposta original do PL era reduzir para 20 vagas, sendo 10 para o governo e 10 para a sociedade civil. Uma emenda da aposição aprovada garantiu a manutenção de 14 representações da sociedade civil no conselho, mas o governo também passa a ter 14 assentos, totalizando 28.

Além disso, a proposta garante que o órgão será presidido pelo titular da Seduc quando estiver presente. “Nós não temos mais um órgão independente, que toma suas decisões que não necessariamente vão ao encontro do que a secretaria deseja. Quer dizer, é uma forma de imobilizar também, não tem mais como ser oposição, imobiliza”, afirma.

Vice-presidente do CPERS, Alex Santos Saratt, avalia que o pacote da educação, como um todo, é marcado por ser um conjunto de diretrizes bastante vagas, que necessitam de regulamentação posterior, e que está inserido num processo de responsabilidades do governo do Estado, seja para os municípios, por meio da municipalização do ensino fundamental, seja para o mercado privado.

“São diretrizes que vão depender depois de decretos ou de novas leis regulamentadoras, mas que vão estabelecer, entre outros aspectos, um caminho de municipalização da educação, que representa uma quebra, descontinuidade, representa o risco de demissões e desemprego para os professores e funcionários que prestam serviços na forma de contratos. Representa uma transferência de uma carga pesada para o ente federado que é mais frágil do ponto de vista financeiro e estrutural, que são os municípios. É uma desresponsabilização que o Eduardo Leite está fazendo à luz do dia e que ele consegue passar uma mensagem que aquilo é bom, quando, na verdade, ele tá lavando as mãos, passando uma atribuição que lhe caberia para que os municípios passem a gerir”, diz. “Não é um problema você dialogar com o setor produtivo e ter a educação conectada com um projeto de desenvolvimento, mas se torna um problema quando a educação, ao invés de ter essa relação política e econômica com o setor produtivo, passa a ter apenas uma relação mercantil e financeira com o setor privado. Então, repasse de recursos para empresas privadas, para o sistema S, para Fundações e ONGs que vão desempenhar determinadas funções que poderiam ser desempenhado pela própria rede ou por convênios e colaborações e cooperações com universidades federais, institutos federais e mesmo a UERGS [Universidade Estadual do Rio Grande do Sul]. Apesar de ter caído no esquecimento, nós temos uma universidade estadual que tem potencial”, complementa.


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