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30 de outubro de 2017
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22:30

A política local atual sob a visão do pensamento chinês arcaico (por Jorge Barcellos)

Por
Sul 21
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A política local atual sob a visão do pensamento chinês arcaico (por Jorge Barcellos)
A política local atual sob a visão do pensamento chinês arcaico (por Jorge Barcellos)
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Um pensamento estratégico

A propensão das coisas – uma história da eficácia na China (Editora Unesp, 2017), é um interessante livro do professor da Universidade de Paris VII Denis Diderot, François Julien. O valor da obra está em reconstruir o pensamento estratégico chinês arcaico do século IV e III no que ele tem de valor para o pensamento político do presente. Por exemplo, Julien afirma que os chineses antigos recusavam a intervenção de qualidades pessoais na política. Como não lembrar disso quando vamos o comportamento do prefeito eleito Nelson Marchezan Jr.?

Para conduzir nos campos da estratégia, os chineses ensinam em pensarmos em termos da disposição das coisas: hoje, pensamos em termos de condições, configurações, estrutura e de outro, diz Julien, em termos de força e movimento. Entre o estático e o dinâmico, esta é, para o pensamento chinês antigo, uma dicotomia abstrata, que simplifica e não esclarece.  O autor afirma, no entanto, que interessa ao pensamento chinês arcaico tudo aquilo que está no entremeio, que está condenado a inconsistência, o que leva pensar o dinamismo das coisas frente a nossa aparelhagem lógica. Na mais importante para pensar a política quando a própria ciência política tem dificuldades de interpretar o mundo político.

Julien diz que os chineses usam o termo “che”, palavra chinesa e termo relativamente comum, mas pouco usado em filosofia e de difícil significado para nomear as coisas da política e do poder. “Che” pode significar posição, circunstância, poder, potencial, e geralmente é considerado um termo prático inventado pelos chineses antigos pelas necessidades da política da estratégia. O que chama a atenção do autor é sua ambivalência, a capacidade de num único termo confundir o estático e o dinâmico. Trata-se de uma palavra que revela um sistema de pensamento que sempre se questionou sobre o real em sua transformação: “a eficácia não tem origem na iniciativa humana, mas é resultado da disposição das coisas”, diz Julien (p.15).

Um pensamento multidimensional sobre o poder

A filosofia chinesa é repleta de grandes noções, afirma o autor, referindo-se desde a noção de “caminho”, presente no Tao, a ideia de “princípio organizador”, presente no Li, outra obra de referência do pensamento chinês. “Che” é um termo presente na descrição da política à estética, da caligrafia à pintura e a exploração do autor da política me interessa. Ele se refere a tensão que está na política e que tem uma proximidade com a escrita dos caracteres chineses, com uma pintura e a literatura. Foi o que levou Julien a refletir sobre a estratégia na China Antiga, onde o pensamento político compartilha características com a estética e a língua e rejeita a intervenção de qualidades pessoais para alcançar o resultado desejado.  Hegel disse que o pensamento chinês permaneceu na infância porque não soube evoluir: para Julien, é o contrário, é aí que se encontra o valor de seu modo de pensamento, justamente no fato de que não privilegiou a formalização conceitual e que manteve sua preocupação com uma “estética do movimento”.

Para começar, Julien coloca que os termos “estratégia” e “política” remetem ao mesmo problema fundamental da conquista da eficácia. Como nas teorias do management atual, que fundam a estratégia neoliberal de exercício do poder, a ideia de eficácia da ação política persiste na atualidade. A eficácia trata de capacidades individuais ou relações de força que se encontram na política? Ao contrário, entre os séculos IV e III, o pensamento chinês dedicou-se a pensar sobre a propensão das coisas sobre nós, a ideia de harmonizar-nos com as coisas, com o mundo, “as coisas tendem por si mesmas”, diz Julien. E continua” toda intervenção da subjetividade é sempre uma ingerência que cria obstáculo, introduzindo supurações e cálculos a essa impecabilidade da tendência “ (p.48).

É uma proposta que parece inocente aos olhos ocidentais: em vez de querer dirigir o mundo por nossa ação, devíamos nos deixar ser conduzidos pelo sabor das circunstâncias, a ideia de que não devemos impor ao mundo nossas referências. A tradução disto para o plano político do governo Nelson Marchezan Jr é clara: ao contrário dessa redução da realidade, resulta que o Prefeito, se quisesse governar, deveria ter assumido antes uma disposição sobre sua posição hierárquica, que é, no caso, a de um Prefeito que respeita o legislativo, que negocia e não alguém que quer impor sua visão. Não foi aí que surgiram os principais conflitos entre o Poder Executivo e Legislativo? A ideia de impor algo quando deveria ter sido colocado um jogo está na raiz do fracasso de Nelson Marchezan Jr em seu primeiro ano de relacionamento político com a Câmara Municipal de Porto Alegre. Ele não aceitou sua posição hierárquica: Prefeito é Prefeito, Câmara é Câmara, pior, ele sequer se dispôs a negociar com ela.  O “che” chinês também significava isto, que assumir uma posição de poder é saber o seu papel na relação de autoridade. É preciso, para quem tem poder, saber exatamente qual é a sua posição hierárquica, diz o pensamento chinês. Não foi o que aconteceu com Marchezan?

Por uma política sem intervenção de características pessoais

Não detalharei os aspectos descritos pelo autor entre autores ou correntes do pensamento chinês antigo, mas saliento que o autor afirma que, no pensamento chinês domina a ideia de que a posição hierárquica é sempre independentemente do valor pessoal, da moral, da subjetividade daquele que o usa, o que significa que, não adianta chiar, gritar, espernear, mas o prefeito não vai levar a sucesso seus pleitos enquanto agir do modo como age.  Diz Julien que, para os chineses antigos, o homem não tira proveito de uma posição (che), como a de Prefeito para exercer influência sobre outros, nem mesmo estando próximos a eles. Como na estratégia chinesa onde não importa o número de tropas, mas seu aproveitamento, não é no exercício da força por um prefeito que ele exerce poder e é eficaz, mas é pela posição que assume, pela busca de apoios que consegue. Não se trata de força, mas de se colocar numa posição. Como no provérbio antigo chinês, “o estado é como uma carruagem e a posição de autoridade está mais nos cavalos que a puxam”, diz Chen Qiyou em sua obra Hanfeizi jishi (a versão do autor é de 1974). E continua: ”nas mãos de um bom cocheiro, a carruagem avança rápido e longe; nas mãos de um mau cocheiro, o resultado é o inverso. Dá para perceber a semelhança com o atual governo municipal?

O que está em jogo: o entendimento de que governar não é como executar uma ordem política ideal com que sonham os utopistas, diz Jullien, ou os neoliberais representados por Nelson Marchezan Jr, mas que governar é simplesmente manter o funcionamento regular da máquina do Estado: aqui, a palavra “che” significa justamente disposição natural, relação institucional de autoridade e o segundo deve ser retirado do primeiro para instaurar o quadro político. A administração dos negócios precisa de uma margem de manobra que é privado por um soberano arrogante. Imagine o político que quiser nesse lugar.

Para não se transforma em tiranos, os governantes devem ceder a necessidade. É para isso que serve saber qual sua posição hierárquica, o poder só é positivo se é suficiente para fazer reinar a ordem através da humanidade. Se o que se produz, dizem os antigos chineses, é ódio e caos, não é um bom governo. Isso só não ocorre quando a posição hierárquica exclui a capacidade pessoal pois o respeito a relação hierárquica é o que garante o bom funcionamento do Estado: é só pensar na relação do Prefeito com os servidores para ver o quanto foi perturbada esta relação com os projetos que foram enviados para Câmara Municipal e que tiram direitos dos servidores que mantinham a ordem do lugar.

A verdadeira eficácia da política

Entre aqueles que afirmam que a eficácia na política advém da adoção da primazia da moralidade e os que atribuem apenas a posição ocupada, estamos diante de um debate que remonta o fim dos séculos IV e III na China, entre os partidários do confucionismo e os que eram chamados de legalistas. Mas eles estavam discutindo, afirma Jullien, a forma monárquica de poder. Ora, quando vemos o Prefeito Nelson Marchezan Jr afirmar que está moralizando a administração, mas ao mesmo tempo, usando de atitudes baseadas na sua posição, de prefeito, buscando ultrapassar as prerrogativas do legislativo, também não estamos diante de uma posição…monárquica? Pois a imagem já existe nas críticas a ação do prefeito, chamado de “reizinho da cidade”.  Para os antigos chineses, o monarca tinha seu poder devido a uma ascendência moral, o mandato celeste; o prefeito acredita que o mandato das ruas é seu equivalente, mas, na China antiga, a posição legalista defendia o trabalho no limite da posição, no caso, posição monárquica. É preciso lembrar que a tradição chinesa estuda o poder, e não o direito.

Qual a posição do prefeito nisso tudo? Em termos de “che” como ideia chinesa de posição monárquica, de que o lugar é ocupado, a arrogância nasce na política do governante que não quer ser derrubado do trono, não ser usurpado, mas é preciso compreender que o poder não pode simplesmente passar de mãos, como a recusa de tratar com seriedade pelo prefeito Marchezan o pedido de impeachment.  É aí que o Prefeito revela a adoção de uma posição de monarca da cidade, de rei que se opõe a todos os outros: no passado, aos nobres e ministros, hoje, aos vereadores e servidores. É a teoria da posição chinesa: o príncipe só é sábio quando sabe a distância que deve manter entre ele e outros atores sociais “a semelhança dos animais selvagens que nos impressionam apenas porque se escondem no fundo das florestas” (p.57).

Um governo que dissocia estratégia de politica

Para o pensamento chinês antigo, o poder é mais bem exercido quando maiores as desigualdades das posições porque exige de o soberano fazer funcionar a seu favor a relação de forças para dominar o outro, ou nos termos do pensamento chinês, quando o “che” estratégico se combina com o “che” político, quando o apoio do príncipe é por sua posição de autoridade em relação aos outros, posição de soberania. Nesse sentido, as ações de Marchezan, ao dissociarem estratégia de política, corroem a soberania do poder Executivo e contribuem para sua dissolução. Logo, ainda que o atual pedido de impeachment de Marchezan tenha possibilidade de ser recusado, outros virão e a chance de ser aprovado serão maiores.

Jullien afirma que a inteligência dos teóricos chineses foi compreender que o poder político repousava sobre o caráter integral e rigoroso do saber sobre as pessoas. Diz o ditado chinês antigo que “dois olhos veem mais do que um”: hoje, um governante que não conheça o papel do parlamento, dos seus servidores, está fadado a cegueira administrativa: nesta visão de governo, o poder do soberano deve aceitar que ser confrontado é parte de sua natureza, que aceitar o confronto do legislativo e servidores, submeter-se a eles, é o que fortalece a soberania do executivo.

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Jorge Barcellos é historiador, Mestre e Doutor em Educação pela Faculdade de Educação/UFRGS(2013). Atualmente é Coordenador da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e integra o GT Politicas para família, gênero e gerações do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo da Universidade Federal do Rio Grande do SUL (CEGOV-UFRGS). É autor de Educação e Poder Legislativo (Aedos Editora, 2014) e O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017).  

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