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5 de maio de 2015
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11:37

A realidade é fogo

Por
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A realidade é fogo
A realidade é fogo

Por Tarso Genro

Como todo adulto maduro — para ser um pouco generoso comigo mesmo —  um pequeno fato da vida cotidiana como ir a um cinema, ver um bom filme, trocar uma palavra especial com algum amigo, remexer nas prateleiras para organizar livros, fatos que nos movem sem maiores pretensões emocionais, de repente iluminam lembranças muito intensas. Ao abrir um livro a gente lê uma mensagem da filha, do dia dos pais, guardada ali de forma distraída e se comove. Um bom filme pode fazer pulsar algum tipo de lembrança escondida na memória, de forma inocente, que de repente, na sua irrealidade provocadora, faz a vida um pouco mais alegre. Um livro antigo, guardado na prateleira mais improvável, de repente invade a alma e dá um banho de luz, vinda do passado. Isso foi o que me aconteceu no feriadão.

Conheci, ao longo da minha vida, pessoas extraordinárias de todos os tipos, profissões, ideologias. Chamo de pessoas extraordinárias, aquelas que são verdadeiramente humanistas, ou seja, que medem as outras, na sua subjetividade, nos seus vícios e virtudes, como gostariam ser medidas. Pessoas compreensivas da humanidade da outra pessoa e que procuram, no interlocutor, o que ele tem de melhor, para olhá-lo como um ser humano integral e igual. Organizando meus livros no feriadão, selecionando bibliografias e separando outros livros (que devo ler e vou adiando), tomo nas nas mãos um livro de poesias. Livro de uma dessas pessoas extraordinárias, certamente pouco conhecida do público leitor, mas  que foi um grande poeta e um daqueles seres humanos extraordinários que compartilharam da nossa vida: Afif Jorge Simões Filho, que dá o seu nome à Fundação Cultural da cidade de São Sepé, onde ele amou, viveu, trabalhou e escreveu.

Na contracorrente da adesão de boa parte dos profissionais liberais das pequenas cidades, especialmente advogados, aos governos militares na década de setenta, Afif manteve-se, na pequena São Sepé, altivo, independente e de esquerda. Sem se impressionar com  concretismos, neoconcretismos e outras formas poéticas, não raro fugidias de um mundo real, à época, muito repressivo, escrevia muitos sonetos. Distante da linguagem bacharelesca  -como bom advogado que era-  chegou a defender, com sucesso, clientes processados por  pequenos furtos, em versos, para chegar mais além da lei, no coração dos Juízes com sentimento de Justiça. Esse era o Afif, com seus ternos olhos escuros, seu sorriso fraterno, às vezes triste, que não podia sair mais de um dia da sua comunidade de São Sepé, porque ficava angustiado. O Afif que nos recebia, não só em noturnas missões políticas, mas também nos dias claros de passagem, que calculávamos para chegada ao meio dia.

Caiu nas minhas mãos, então, neste feriado “O Menino Submerso”, livro de sonetos de Afif, com “orelha” do professor Celso Luft, que chama atenção para a beleza da obra, falando sobre “a infância, a passagem do tempo, o amor perdido, a solidão”. E deparo-me com um soneto que, à época -o livro é de trinta e dois anos atrás- me pareceu um pouco pessimista. Já avançávamos muito na luta pela Constituinte e, apesar de todas as perdas, recuperávamos aquele sentimento de utopia que nos move, quando acreditamos que as lutas valem a pena. Dizem, os dois últimos versos do soneto “Palavras a um sonhador”:

Não penses, vagabundo e distraído,
Que o caminho de pedras por que vamos
Ficará de repente florescido.

A realidade é fogo e, como tal,
Calcina o grande sonho que sonhamos,
Derrete a asa de cera do ideal.

A realidade “calcina o grande sonho que sonhamos”. É sempre bom atentarmos para o pessimismo da inteligência, que está contido nesses versos de Afif. Versos que confrontam com panfletos que a extrema direita vem distribuindo, em alguns pontos da cidade, que revelam , de um lado, um arredio sentimento de isolamento político, mas também um profundo desprezo pela democracia e pela inteligência do povo brasileiro. O que, por si só, diz o que eles fariam se um dia chegassem ao poder: “”Juntos, FHC e Lula, formam uma dupla perfeita. Em apenas 20 anos, conseguiram habilmente, transformar a nação brasileira em 198 milhões de trouxas, É muito trouxa, por metro quadrado”.

Para servir-me, novamente, do grande Afif desejo que este apelo autoritário seja considerado “apenas um verso noturnamente triste preso como um molusco à crosta do silêncio.”


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