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30 de junho de 2017
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10:00

Canções de compromisso: O rei encantado

Por
Sul 21
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Por Raul Ellwanger (do livro Nas Velas do Violão)

Como ocorre em diversas canções, ao trabalhar sobre o texto desta lenda maranhense de origem lusitana também me socorri do fôlego compositivo. No caso, muito de acordo com o fôlego poético que o texto me inspirava. Destaco a intensidade artística e também política do poema, onde primeiro se descreve o messianismo sebastianista e depois se prega uma espécie de solução, de revelação do enigma. Tudo isto num breve espaço, onde nada é fortuito. Além de fôlego, neste caso foi preciso criação, síntese e energia redobradas.

Raul e Gullar

Dentro de uma estrutura geral mais ou menos velada, há uma longa parte A que apoia a descrição da crença popular, quase que num ritmo de conversa. Alternam-se nela arcos melódicos pouco sugestivos, que têm em torno de 16 notas (que sustentam dois heptassílabos fonéticos), ora ascendentes, ora descendentes. De pronto, o arco sobe uma terça, para logo retornar à altura original. Em cada final de seção, ocorre alguma nova tensão harmônica com o acorde de Dó maior, para desaborrecer.

Quero lembrar que a música ocidental e nosso ouvido treinado para o tonalismo e a quadratura tem a marca do binário, dos dois tempos, dos passos de ambas as pernas, dos movimentos do coração. A letra e a música da canção popular levam ao extremo esta tendência, amenizada ou pela soma de 2 + 1 que gera o ternário, ou muito especialmente pelo ritmo, pelo balanço, pela expressão e dinâmica. Ao encarar poemas do tipo deste Rei, em sua metade inicial tudo isto cai por terra. Tomando-se o heptassílabo como medida, temos uma seqüência de 4+8+6! Adeus, quadratura!

Já a parte B adquire um andamento cadenciado, com curvas e divisões melódicas que a diferenciam totalmente da anterior. Aqui o contrabaixo sutil de Everton Pires adquire importância, seja usando a divisão que se chamou toada moderna, seja costurando uma cadência cromática descendente para empurrar adiante a descrição melódica sob a letra “isso é o que diz a lenda”.

Ao dizer que “a encantação se desfaz”, a harmonia se abre numa tonalidade maior, para acentuar a ideia de fim do mistério. São evidentes nesta parte do texto as teorias expostas em A Ideologia Alemã (Marx e Engels), maravilhoso livro que nos ensina a ver a realidade por trás de sua aparência. Para chamar a atenção, caem as sílabas como quebradas em “seu próprio senhor”. Logo vem o ralentando para dizer o epílogo de toda a canção: é o povo quem está encantado! Sendo esta revelação acentuada pela nota Dó natural sob “que ele inventou”, muito tensa por estar fora do acorde da escala de Si menor que a sustenta.

Destaco na gravação o trabalho vocal de Santiago Ellwanger, que corrigiu e melhorou certas passagens da segunda voz, e o bandoneón de Carlos Magallanes navegando com alta expressividade no interlúdio, que neste caso tem função importante, pois imprime valor ao nome do rei que fica boiando e brilhando em solidão, bem na metade da canção. Armado numa cadência harmônica descendente de quatro tons inteiros, este interlúdio me foi sugerido pela devoção ao Concerto de Aranjuez, do compositor espanhol Joaquin Rodrigo, e funciona como repouso para dar-nos um respiro do acúmulo de informações que recebemos da letra e outorgar suavidade à própria dinâmica do tema musical. Simplificando: toque mais e fale menos!

O rei encantado

Raul Ellwanger – Ferreira Gullar

Diz a lenda que na Praia dos Lençóis no Maranhão
Há um touro negro encantado e que esse touro é Dom Sebastião

Dizem que se a noite é feia qualquer um pode escutar
O touro a correr na areia até se perder no mar
Onde vive num palácio feito de seda e de ouro
Mas todo esse encanto acaba se alguém enfrentar o touro

E se alguém matar o touro, o ouro se torna pão
Nunca mais haverá fome nas terras do Maranhão
E voltará a ser rei o rei Dom Sebastião

Isso é o que diz a lenda mas eu digo um pouco mais
Se o povo matar o touro a encantação se desfaz
Não é o rei, mas o povo que afinal se desencanta
Não é o rei, mas o povo que se desperta e levanta
Como seu próprio senhor!

Que o povo é o rei encantado
No touro que ele inventou.


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