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11 de janeiro de 2018
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09:30

O preço que pagamos

Por
Sul 21
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O preço que pagamos
O preço que pagamos
Corredor de uma galeria do Presídio Central, em Porto Alegre. (Foto: Sidinei Brzuska/Facebook)

Marcos Rolim (*)

Nossas prisões nunca estiveram tão cheias e o Brasil nunca foi tão inseguro.

 As cenas divulgadas na semana passada, com detentos enfileirados em uma galeria do Presídio Central para uso de cocaína, correram o mundo. No RS, sindicâncias e inquéritos foram anunciados pelas autoridades para apurar responsabilidades. Pode-se deduzir, então, que as autoridades não sabiam que o consumo de drogas ilegais faz parte do cotidiano de nossas prisões. Se as autoridades não sabiam disso, o que exatamente elas sabem, então? Formulo a pergunta apenas para sublinhar o óbvio: as autoridades – do Poder Executivo, do Ministério Público e do Poder Judiciário – sabem muito bem o que ocorre nos fundos de uma galeria superlotada. O ponto é que, descontadas as exceções, elas não dão a mínima importância para isso. Tudo se passa como se o cotidiano da execução penal não produzisse efeitos na segurança pública. Estamos, assim, para além das vontades e dos discursos, diante de uma verdadeira Parceria Público Privada entre o Estado e as facções criminais, ambos atuando para fortalecer o crime.

O Brasil vive, já há algumas décadas, uma epidemia de violência que é, paradoxalmente, retroalimentada pela política criminal vigente e pela ação reativa e irracional do Poder Público. Ao invés de se debruçar sobre as dinâmicas causais que produzem a violência e o crime e focar na repressão aos delitos mais graves, o país segue apostando, independente do governo que desgraçadamente tenhamos, na repressão genérica, o que, em nossa experiência histórica, se traduz por encarceramento em massa. Temos, atualmente, mais de 700 mil presos (726.712, em junho de 2016), a terceira maior população carcerária do Planeta em números absolutos, apenas atrás dos EUA e da China. Nossas prisões nunca estiveram tão cheias e o Brasil nunca foi tão inseguro. Para se compreender porque a insegurança aumenta com tantos presos, ao invés de diminuir, é preciso fazer algumas perguntas. As duas primeiras são: 1) quem estamos prendendo? e 2) o que ocorre com esses que prendemos?

Quem prendemos

Os leigos imaginam que nossas prisões estejam repletas de assassinos e estupradores. Tal imagem, infelizmente, nada tem a ver com a realidade. Nos presídios brasileiros apenas 11% dos detentos respondem por homicídio e 6% por crimes sexuais. No RS, esse percentual é ainda menor, sendo os presos condenados por homicídio cerca de 4%. Os presos brasileiros são muito jovens. 55% deles possuem entre 18 e 29 anos (na população, apenas 19% estão nessa faixa etária). O percentual de negros e pardos nos presídios é sempre superior aos seus percentuais no conjunto da população, em todos os estados (14 pontos percentuais acima, em média). Nos estados do sul, negros e pardos são 21% da população, mas 33% da massa carcerária. Na região sudeste, a mais populosa do Brasil, a população negra e parda corresponde a 45% da população, mas é igual a 72% da massa carcerária. 75% dos presos brasileiros não chegaram ao ensino médio (um resultado 25 pontos percentuais pior que a média nacional). 46% dos presos respondem por furtos ou roubos e 28%, por tráfico de drogas. Esses delitos somados representam 74% da massa carcerária nacional. Quase 40% dos presos brasileiros nunca foram julgados. No RS, os presos sem condenação são 55,68%. A prevalência de HIV entre os presos (1.216 infectados para cada 100 mil) é 60 vezes maior que na população e a prevalência de casos de tuberculose (941 infectados para cada 100 mil) é 38 vezes maior que na população.

Não estamos prendendo, então, as pessoas realmente perigosas, aquelas capazes de matar ou de violar sexualmente. Também não prendemos, como regra, corruptos e corruptores – bandidos capazes de arruinar um país. Isso ocorre porque crimes dolosos contra a vida e crimes do colarinho branco demandam investigações complexas e não possuímos políticas de segurança pública que definam esses delitos como suas prioridades (o que significa concentrar recursos operacionais e de inteligência). As polícias brasileiras, aliás, operam em um vácuo de definições sobre Segurança e fora dos parâmetros elementares de eficiência, medição de resultados e prestação de contas (accountability).

O que ocorre com as pessoas que prendemos

As primeiras consequências são a organização e o fortalecimento de facções. Como não há vagas para separar os presos por celas, individualmente, como a lei determina, eles são agrupados em galerias. O critério de separação dos internos, então, passa a ser o de pertencimento às facções. Quem não é membro de um dos grupos criminais, se obriga a escolher um. Essa dinâmica promove uma socialização perversa. Jovens detidos por conta de crimes praticados sem violência real passam a conviver com presos mais experientes condenados por crimes mais graves.

Essa proximidade inaugura uma “associação diferencial” (Edwin Sutherland) pela qual valores e saberes são compartilhados. O resultado é a precipitação de vínculos criminais. As facções não precisam sequer se preocupar com recrutamento de novos membros, uma vez que as polícias, o Ministério Público e o Judiciário cumprem essa função de forma sistêmica.

Abarrotar os presídios com réus e condenados por crimes patrimoniais e por envolvimento com drogas produziu o efeito das prisões coletivas em galerias. O que viola frontalmente os dispositivos legais. No Presídio Central, são 400 a 500 presos por galeria, compartilhando o minúsculo espaço e o infinito tempo. Nesses lugares, o Estado não entra, salvo com o Batalhão de Choque. O presídio é uma instituição pública, mas suas galerias foram privatizadas para as facções. Ali, todos os negócios são viabilizados: venda de drogas, de bebidas, de mulheres, de colchões, de produtos de higiene, de cigarros, de celulares, de comida, etc. A vida também tem um preço nas galerias, razão pela qual todo o preso tem um pedaço de ferro pontiagudo (estoque) ao seu alcance. Cumprida a pena ou alcançada a liberdade condicional, temos dois tipos de egressos: os que iniciarão uma nova carreira criminal, agora fortalecidos pelo associação diferencial, e os que irão procurar emprego em busca de um recomeço.

Para o Estado e seus agentes, todos os egressos são iguais e nenhum merece consideração. O desprezo que marcou a execução penal, o desleixo, o desinteresse, a incapacidade de formular um programa efetivo de tratamento penal, o desrespeito, as humilhações, tudo isso segue inalterado. Na sociedade, os egressos se deparam com a indiferença sistemática e com a hostilidade latente. Todas as portas se fecham e raríssimas são as oportunidades concedidas por empregadores. Esse estigma social obstrui os caminhos da desistência criminal e empurra os egressos para alternativas ilegais de sobrevivência.

Esses dois processos – o da precipitação de vínculos criminais e o do estigma social sobre os egressos – promovem o crime e a violência em uma escala extraordinária, parte do preço que temos pago por permitir que a demagogia, a covardia e a incompetência nos governem há tanto tempo.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016).


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