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2 de abril de 2017
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10:30

A culpa e o suicídio de Primo Levi

Por
Sul 21
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Por Franklin Cunha

Os campos de concentração do século XX são a “verdade” de todo o projeto político ocidental
Giorgio Agamben

Quando Primo Levi, prisioneiro em Auschwitz, sofrendo de intensas fome e sede, tentou pegar um pedaço de neve da janela de seu barracão, foi impedido por um soldado nazista que lhe gritou Alt !!! Levi então perguntou porque lhe proibiam algo que não prejudicava ninguém? Ao que o guarda respondeu: “ Não há porquês em Auschwitz “.

Recentemente, os jornais de Buenos Aires, relembrando os trinta anos de início das ditaduras militares que ensanguentaram o país, se referiram a dois fatos acontecidos à época. O primeiro foi a medida tomada por um governador de província quando da visita de um general-ditador. Para não revelar a miséria que campeava na capital provincial, transferiu cerca de cem mendigos para um deserto longínquo e inóspito. Após a visita do ditador, apenas dez mendigos sobreviventes voltaram à cidade.

Outro fato relembrado com fotos, foi a visita de congratulações que Jorge Luis Borges e Ernesto Sabato fizeram ao então general-presidente Videla, falecido recentemente na prisão onde cumpria pena por inúmeros assassinatos.
Comentando estas lembranças com o escritor J. J. Sebreli, ele lembrou que os dois acontecimentos foram escassamente noticiados pela grande imprensa e aceitos, passiva e até ativamente, pelos intelectuais e pela classe média portenhos.

Hoje a estupefata classe média brasileira, diante da crescente violência que grassa em todo o país também deveria perguntar:

“ Porque ? “.

A mesma pergunta que Primo Levi dirigiu para o militar nazista deveria ser motivo de preocupantes reflexões, principalmente pelas classes dirigentes e supostamente educadas de nosso país. Levi acabou se suicidando, talvez porque nunca encontrou uma explicação lúcida e coerente para suas perguntas ou quem sabe, ele pode ter chegado à conclusão de que não há “porquês “ em nosso modo de vida atual. A culpa que Levi sentia era a de que sobrevivera aos assassinatos em série dos campos à custa da vida de outros companheiros de tragédia.

Culpa que, diante dos assassinatos em série cometidos diuturnamente em nosso entorno social, parece não ser sentida e assumida por ninguém.

Tanto que a única solução apresentada em todos os foros de debates sobre o tema, é a repressão violenta e seletiva a qual exclui o humano sentimento de culpa. Porém, ainda resisto a crer que Giorgio Agamben tenha inteira razão. Para ele, o significado do termo paradigma é o Estado de exceção, isto é, uma nova jurisdição emergencial, que nos momentos de crises politica, social e econômica, suspende todo o ordenamento jurídico constitucional até então vigente. Nessa situação, se estabelece uma distinção entre quem está fora ou dentro do campo.Quem está dentro, não mais tem a proteção da lei, inclusive o direito à vida que ainda vigora para quem está fora.

É importante notar que com o novo paradigma se estabelece qual o valor da vida para uns e para outros. No atual caso brasileiro, é o critério de segurança pública, que se altera em ocasiões, locais e momentos diferenciados , para se decidir quais são as manifestações pacíficas e quais as violentas. Para as primeiras, não será utilizado o aparato repressivo do Estado. Para as outras , as detenções, as prisões, as repressões físicas e até mesmo os assassinatos , são tolerados, não punidos e mesmo aprovados por amplos setores da população e pela mídia ideologicamente partidarizada em sua visão paralática dos acontecimentos sociais.

Para uns para outros, não há porquês, como afirmou o sicário nazi para Primo Levi.

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Franklin Cunha é médico, membro da Academia Rio-Grandense de Letras.


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