Sandra Djambolakdjian Torossian (*)
Desmentido: em psicanálise refere-se a um modo de negação que apresenta diversas versões, pode-se não ter as condições de possibilidade necessárias para ver a realidade, ou pode se ver, mas produzir uma versão contrária ao que se vê. Nesta última, situa-se a perversão.
Pedrinho
Era uma vez uma mãe que com todo carinho e expectativa aguardava seu filho, do mesmo modo o pai, falava com ele. Lhe apresentava o mundo ainda quando ele não havia nascido.
Um filho que vinha para mudar a vida de ambos jovens os quais ali depositavam muitos dos seus sonhos de finalmente constituir uma família.
O bebê nasceu lindo, saudável e risonho. Foi sendo criado em casa até que chegou o dia do seu primeiro passeio. A tão esperada saída para conhecer parte do mundo que já fora narrado e apresentado pelo seu pai quando ele ainda envolto pela placenta materna podia escutar somente sua voz e mergulhar também num universo simbólico.
Convido os leitores a imaginarem qual seria o destino escolhido para esse passeio? Como lhe foi apresentado o mundo desta vez, num dia de sol que chamava pela rua? Terá ido à praia? À casa da vó? Ao parque?
O bebê no colo de sua mãe, pegou dois ônibus, um de linha e outro intermunicipal com o qual chegou ao presídio. Foi revistado, olhado como o filho de mais um bandido traficante, crime hediondo. Abriram-se as grades, fecharam-se atrás dele. Pedrinho sentiu a respiração ofegante de sua mãe, quando ainda com seu corpo não totalmente diferenciado do dela, a sentia a nervosa e enraivecida por ter de passar por revista vexatória, pouco tempo depois de ter parido.
Ouviu o barulho dos agentes, xingando e ofendendo a todos os que passavam, antes mesmo de ouvir a voz conhecida do seu pai. Aquele que lhe apresentou algo do mundo e que nele depositou grandes expectativas da sua nova vida. Tinha largado o tráfico já que estava formando família.
Mas se o tráfico excepcionalmente o perdoou e lhe deu essa rara liberdade de escolha, o Estado não. Crime hediondo precisa ser cumprido com privação de liberdade. Não foram suficientes as vozes da família, dos seus chefes dizendo do seu comprometimento com o trabalho, da sua responsabilidade e inteligência nesse tempo de regime semi-aberto. Não foram suficientes as vozes das técnicas do judiciário testemunhando a mudança de vida e posição subjetiva deste pai.
Crime hediondo a ser pago com privação de liberdade, foi o veredicto final para este jovem pobre e periférico.
Teria sido este o destino de um jovem branco, estudante do melhor colégio da cidade?
As letras
No mesmo bairro em que Pedrinho mora com a sua família boa parte das crianças não lê ou não compreende o que lê e não escreve. Mesmo que já tenham 11 ou 12 anos. São impossibilitados de ter contato com o mundo da literatura que sabemos produz imaginação, permite a circulação por outros mundos, permite-nos conhecer diversas saídas para nossos dramas. São vetados de ter acesso aos jornais, às mídias alternativas escritas, as quais muitas vezes permitem-nos olhar um mesmo fato a partir de diferentes pontos de vista. São excluídos do mundo das letras, retirando-os também de um modo de circular pela cidade.
E, ao mesmo tempo em que querem nos convencer de que a violência se enfrenta com armas, e não com acesso das crianças e dos jovens aos livros e às letras, propõem retirar uma das únicas políticas equitativas de acesso à educação superior. Segundo projeto de lei, apresentado nestes últimos dias, solicitando a retirada das cotas das universidades: “se quaisquer formas de discriminação são vedadas constitucionalmente, não cabe à legislação estabelecer distinções”. Ou seja, a narrativa da reparação social está sendo substituída pela narrativa da discriminação aos privilegiados.
E você aí sentado no seu confortável sofá, num lugar seco e protegido, com possibilidades de ler e interpretar o que lê, nega esta realidade porque não tem condições de enxergá-la? Ou vendo-a insiste em criar outra versão?
(*) Psicanalista, membro da Appoa, professora do Instituto de Psicologia/UFRGS
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