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15 de julho de 2020
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19:59

Democracia tutelada

Por
Sul 21
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Democracia tutelada
Democracia tutelada
 Foto: Marcos Corrêa/PR

Céli Pinto (*)

As provocações do ministro Gilmar Mendes às Forças Armadas, associando o que estaria acontecendo no Brasil devido às políticas – ou as não políticas – levadas a efeito pelo militarizado Ministério da Saúde a um genocídio, trouxeram de volta o tema da presença militar no governo Bolsonaro, principalmente de militares de alta patente do Exército.

Não seria correto afirmar que estamos vivendo sob o mando de um governo militar ditatorial, mas não estaríamos errados se disséssemos que o regime político brasileiro é uma democracia tutelada pelas Forças Armadas.  E uma democracia tutelada não é exatamente o que se entende por democracia.

Há uma exorbitante presença de militares no governo, com muito poder de decisão e autoridade. Militares comandantes das três forças assinam manifesto de repúdio, junto com o Ministro da Defesa, e interpelam ministros, seus iguais na hierarquia política, como se estivessem falando com um tenente ou um capitão reformado.

As Forças Armadas, com a complacência da grande mídia, se defendem da acusação de fazer parte do governo fazendo uma distinção entre militares da ativa e militares da reserva. Ora, esta distinção não se sustenta, ainda que possa aplacar brigas intestinas nas Forças Armadas, ou enganar aqueles que estão sempre na primeira fila, esperando para serem enganados.

A ditadura militar brasileira, instalada a partir do golpe civil-militar de 1º de abril de 1964, teve quatro presidentes militares. Foi um regime militar e – por maior que sejam as divergências entre os intérpretes – não há dúvidas sobre isso. Entretanto, os 4 presidentes, Castello Branco, Costa e Silva, Geisel e Figueiredo, passaram para a reserva antes de assumir a presidência. Depois, nunca ninguém jamais viu qualquer um deles uniformizado, atuando como ditador de plantão. Isto foi diferente na Argentina e no Chile, onde Vidella, Galtieri e  Pinochet exibiam seus uniformes militares medalhados, pois continuavam na ativa. Isto não salva a ditadura brasileira, apenas mostra uma diferença que ajuda a entender o cenário atual no Brasil.

Se nos detivermos nos grupos que sustentam o governo Bolsonaro neste momento, os militares se destacam como os que têm força e mais possibilidade de manter o capitão no poder até 2022.  O presidente da república, atualmente, é um não-ser. Além de falar no cercadinho, visitar padarias, se colocar frontalmente contra a ciência médica na administração da pandemia e tentar se safar de acusações no TSE e no Congresso Nacional, não tem qualquer importância pública. Nada propõe e, quando fala, causa um constrangimento planetário. É um parlapatão.

Junto a ele, no terceiro andar do Planalto, fica o chamado Gabinete do Ódio, que na verdade tem outra função e deveria ser chamado Gabinete do Rio de Janeiro, já que cuida dos interesses e dos problemas do grupo Bolsonaro, incluindo seus filhos, mas não apenas eles.  O Gabinete também é viveiro de fake news e de pessoas absurdas, ignorantes e grotescas, que alimentam os ressentimentos de uma parcela significativa da população brasileira e dão base para uma ideologia de extrema-direita com traços claramente fascistas.  Este grupo pode ser facilmente ameaçado pelo aparato institucional que ainda funciona. E, por sua baixíssima qualidade política, moral e intelectual, pode perder a funcionalidade, ou se tornar tão problemático a ponto de ter que ser escanteado.

Há  dois outros grupos  de apoiadores importantes: os políticos do centrão, constituídos por um conjunto de pequenos partidos de direta e extrema-direita,  que se tornam fortes quando apoiados por largos setores do DEM, MDB, PP (também de direita, mas não pequenos) e o grupo dos empresários, ou seja, o setor econômico, liderados pelo falso grande economista Paulo Guedes, que  muitas vezes faz manifestações tão destrambelhadas que podem ser confundidas com as do  seu chefe. O problema para o governo Bolsonaro é que qualquer um destes grupos desembarcará do governo imediatamente após perceberem que as perdas podem ser maiores que os ganhos. A história do Brasil está repleta de exemplos deste comportamento.

Resta, pois, o aparato militar do governo, que não tem razões para desembarcar. E, como tem um general na vice-presidência, está muito tranquilo como tutor do capitão, que, diga-se de passagem, soube recompensar os militares com milhares de cargos no aparato burocrático federal, com privilégios na reforma da previdência e com a entrega da metade dos ministérios para militares generais. E eles não estão sendo discretos, porque não precisam ser discretos, voltaram sem um golpe clássico, tutelando um governo de extrema-direita, armamentista, antiambientalista, com uma moral de calças curtas. Serão novamente artífices do aumento da desigualdade social e do ataque aos direitos humanos, mas desta vez não terão nem um “falso milagre econômico” para engambelar a classe média frequentadora de Miami.

Tendo em vista a plêiade de problemas que o governo Bolsonaro terá de enfrentar nos próximos meses e nos próximos anos, é possível aventar duas alternativas: ou o governo Bolsonaro-Morão cai , ou a presença militar se acentua. Na primeira alternativa, teremos uma chance de resguardar o pouco que resta de regime democrático e, a partir daí, retomar um projeto de país; na segunda, rumaremos para uma experiência fascista-militar cujos contornos são difíceis de prever.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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