50 anos do Golpe Civil-Militar
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3 de abril de 2014
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16:31

Operação Condor fortaleceu as garras da ditadura no Cone Sul

Por
Sul 21
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Rui Felten

No final de tarde do dia 17 de novembro de 1978, um jornalista e um fotógrafo da sucursal da editora Abril, em Porto Alegre, tocaram a campainha do apartamento 110 do prédio de número 621 na rua Botafogo, no bairro Menino Deus. Os dois repórteres procuravam por um casal de uruguaios que, segundo um homem com sotaque castelhano, que havia telefonado insistentemente naquela tarde para a redação da revista Veja, na capital gaúcha, vivia ali e estaria desaparecido. “Por favor, é preciso que alguém verifique o que está acontecendo. Não é possível que essas pessoas tenham viajado. Nós saberíamos”, disse o homem, sem se identificar e afirmando estar ligando de São Paulo.

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Ao checar a informação anônima, os jornalistas descobriram , além do sequestro do casal uruguaio, uma obscura artimanha, montada clandestinamente entre Brasil, Uruguai, Chile, Argentina, Paraguai e Bolívia para capturar, prender, torturar e até matar pessoas consideradas subversivas – ou seja, aquelas que se opunham às ditaduras implantadas nesses países pela força de golpes militares que derrubaram governos civis eleitos democraticamente. Essa conexão latino-americana permitia que os comandos militares das Forças Armadas, os serviços de inteligência e as polícias políticas dos países envolvidos atuassem livremente em todo o continente. A organização contava com apoio dos Estados Unidos e ganhou o nome de Operação Condor.  Uma denominação sinistra, que bem simbolizava os objetivos do intercâmbio repressivo: o condor é uma ave enorme que voa sobre a Cordilheira dos Andes, tem parentesco com o urubu e se alimenta de animais mortos.

 Universindo Diaz e Lilian Celiberti: sequestrados por policiais brasileiros e uruguaios | Foto: Daniel de Andrade Simões/CooJornal
Universindo Diaz e Lilian Celiberti: sequestrados por policiais brasileiros e uruguaios | Foto: Daniel de Andrade Simões/CooJornal

Quem atendeu ao toque da campainha no apartamento do bairro Menino Deus foi a uruguaia Lílian Celiberti, ativista política de esquerda que se refugiara em Porto Alegre com o companheiro Universindo Rodríguez Díaz, e os filhos dela, Camilo (8 anos) e Francesca (3 anos). Ela estava  enclausurada ali sob a mira de agentes do Dops (o Departamento de Ordem Política e Social, que controlava os movimentos contrários ao governo militar) e do capitão Eduardo Ferro, chefe de operações da Companhia de Contra-Informações do Exército Uruguaio. Lílian tinha sido sequestrada na rodoviária de Porto Alegre cinco dias antes, pelo delegado do Dops Pedro Seelig e o capitão Glauco Yannone, membro da companhia uruguaia de contra-informação, enquanto aguardava a chegada de um ônibus procedente de Montevidéu. Logo depois, foi aprisionada com Universindo e os filhos no apartamento onde moravam.

Mas antes de ser mantido em cárcere privado, o casal foi levado para a sede do Dops (localizada no mesmo prédio onde funcionava a Secretaria Estadual de Segurança Pública) e torturado. Quem os agentes policiais queriam mesmo era Hugo Cores, líder do Partido pela Vitória do Povo (PVP) em Montevidéu. Ele vivia escondido no Brasil, e Lílian e Universindo eram vistos como possíveis indicadores do paradeiro dele. Foi Cores o castelhano que ligou para a sucursal de Veja falando sobre o sumiço do casal uruguaio.

Cena da rua Botafogo era o retrato da  grande política

“O que acontecia ali dentro daquele apartamento no Menino Deus era apenas um reflexo do que se passava lá fora.  Não tinha começado naquela tarde, não acaba naquele lugar, não se reduzia a personagens secundários da polícia local. A cena de violência da rua Botafogo era o reflexo da grande política, dos grandes  personagens e das grandes tragédias que moldavam o Brasil do final dos anos 70. Era apenas um retrato em branco e preto daqueles tempos cinzentos que o país procurava vencer, deixando para trás o sufoco da ditadura em busca do ar limpo da democracia”, diz Luiz Cláudio Cunha, o jornalista de Veja que foi ao apartamento de Lílian Celiberti naquela tarde de novembro de 1978, em companhia do fotógrafo da revista Placar João Baptista Scalco.

Luiz Claudio e Sclado

Graças à chegada inesperada dos repórteres ao endereço do bairro Menino Deus (onde foram recebidos por canos de revólveres dos agentes policiais), a Operação Condor foi trazida à luz pela imprensa e Lílian e Universindo tiveram melhor sorte que outros tantos militantes contra a ditadura, que acabaram desaparecidos. “O sequestro de Porto Alegre virou um fiasco internacional, o que impediu o desaparecimento de praxe dos sequestrados. Mesmo assim, Lílian e Universindo foram condenados pela ditadura a cinco anos de prisão, acusados por uma falsa invasão ao Uruguai”, relembrou Luiz Cláudio em uma palestra que fez na semana passada na Universidade de São Paulo (USP). Em 2008, ele publicou o livro Operação Condor, O Sequestro dos Uruguaios – Uma reportagem dos tempos da ditadura (L&PM Editores), em que resgata os fatos desse episódio revelados na época, acrescidos de informações inéditas que colheu ao longo dos anos seguintes.

O passo a passo do programa repressivo

A Operação Condor teria começado a mostrar as garras oficialmente em 1975. Naquele ano, em agosto, os organizadores da 11ª Conferência dos Exércitos Americanos tiveram uma reunião inicial em Montevidéu, para tratar dos detalhes do evento, marcado para outubro, também na capital uruguaia. Depois, entre 6 e 12 de outubro, representantes dos serviços secretos do Cone Sul ocuparam uma das dependências do Hotel Carrasco, onde foram recepcionados pelo comandante do Serviço de Inteligência de Defesa, o general Amaury Prantl. “O Chile estava representado pelo coronel Manuel Contreras, chefe da Direção Nacional de Inteligência (DINA), que jogou sua carta na mesa propondo aos seus camaradas um programa repressivo transnacional”, relata Luiz Cláudio Cunha em seu livro.

livro luiz claudioNo dia 29 de outubro, foi então aberta a 11ª Conferência dos Exércitos Americanos, com uma saudação aos participantes, pronunciada pelo general Luís Queirolo, comandante das Forças Conjuntas Uruguaias. “A única coisa que nos separa são nossos uniformes. Acredito que nunca antes nos compreendemos uns aos outros como neste momento. Existe uma coordenação entre os exércitos do continente para combater e impedir a infiltração marxista ou qualquer outra forma de subversão”, proclamou Queirolo.

Ficou acertado que a partir de 25 de novembro seria realizado um encontro “absolutamente secreto” entre os representantes dos exércitos, desta vez em Santiago, no Chile. O general brasileiro João Baptista Figueiredo, que era chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) e que viria a ser presidente da República de 1979 a 1985, foi convidado a estar presente pelo coronel da Força Aérea Mario Jahn, vice-diretor da DINA chilena. Segundo o relato de Luiz Cláudio Cunha, Figueiredo e o coronel Manuel Contreras, chefe da DINA, eram amigos fraternos. Mas o general brasileiro não compareceu ao encontro. Preferiu providenciar o envio de dois representantes, um coronel e um major, orientados a apenas escutar e a não assinar nenhum documento. Viajaram para lá o major Thaumaturgo Sotero Vaz(também chamado de Dr. Sabino) e o coronel Flávio de Marco,  conhecido como Tio Caco. Ambos já tinham passado por experiências em atos repressivos na Guerrilha do Araguaia – desencadeada entre o final dos anos 1960 e a metade da década de 1970, na região amazônica, com o propósito de levantar uma revolução socialista.

O “homem Condor” em terras brasileiras

O jornalista norte-americano John Dinges, que trabalhou no Chile de 1972 a 1978, como correspondente do jornal Washington Post, e vem se dedicando desde então a pesquisar documentos a respeito das ditaduras latino-americanas, afirma que Figueiredo foi o “homem Condor no Brasil”. Mas ressalva que o país não assinou a ata de criação da Operação Condor, formalizada em 28 de novembro de 1975, em Santiago do Chile. “Oficialmente, o Brasil só se juntou à operação a partir do segundo encontro, em junho de 1976”, diz o ex-correspondente, que lançou em 2005 o livro Os Anos do Condor – Uma Década de Terrorismo Internacional no Cone Sul. A obra foi publicada no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Rosaura Eichenberg.

John Dinges:  “Oficialmente, o Brasil só se juntou à operação a partir do segundo encontro, em junho de 1976” |  Foto: elespectador.com
John Dinges: “Oficialmente, o Brasil só se juntou à operação a partir do segundo encontro, em junho de 1976” | Foto: elespectador.com

Dinges chama atenção também para o fato de que o Brasil teria sido sempre relutante em participar das ações da fase três da Operação Condor, que previa a execução de assassinatos de latino-americanos fora do continente. A fase um, segundo o jornalista, cuidava da troca de informações entre os órgãos repressores dos países integrantes da operação, e a fase dois, da caça a quem fosse identificado como subversivo.

Ele explica no livro que a divisão da operação em três etapas está descrita em um documento do FBI (a agência federal de investigação dos Estados Unidos) datado de setembro de 1976. “Muitos documentos americanos tornados públicos confirmam a evolução da Operação Condor em três fases, além de revelarem um envolvimento dos Estados Unidos maior do que se pensava”, afirma Dinges. Os Estados Unidos, no entanto, também teriam sido contra a terceira fase, de acordo com o jornalista: “Antes, acreditava-se que o país sabia apenas da existência da fase um. Isso se revelou falso. Os Estados Unidos conheciam as três fases e estavam numa posição de prevenir os assassinatos”.

João Baptista Figueiredo: o "!homem condor" no Brasil | Foto: http://www.farolblumenau.com/
João Baptista Figueiredo: o “!homem condor” no Brasil | Foto: http://www.farolblumenau.com/

Para o jornalista Luiz Cláudio Cunha, aceitar que o Brasil era “um sócio menor” da Operação Condor significa um equívoco de raciocínio. “Na irmandade do Condor, o Brasil não era um primo distante, alheio, alienado. Era apenas o irmão mais velho, mais forte, mais influente. Talvez o mais dissimulado. Certamente, o mais cínico, que fez o que era necessário fazer para organizar e sustentar a máquina de morte montada pelas ditaduras irmãs do Cone Sul”, enfatiza.

Ele vai adiante, ressaltando que “o Brasil não fez menos do que ninguém e, às vezes, fez primeiro e fez pior”. Salienta ainda que, deixando de lado o Paraguai, a ditadura brasileira foi instalada nove anos antes que a do Uruguai e do Chile, e 12 anos atrás da Argentina. Durou 21 anos, de 1964 a 1985. Isso equivale a um período de ditadura de quatro anos a mais que no Chile, nove a mais que no Uruguai e 14 anos além da era de repressão na Argentina.

Comparando a ditadura que vigorou no Brasil com a dos outros países do Cone Sul, o professor Enrique Padrós, do Departamento de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), avalia que aqui, provavelmente, houve menos assassinatos e se mandou menos  gente para o exílio e para a clandestinidade. Mas, também provavelmente, o Brasil terá sido o país que mais torturou. “E com o agravante de que exportou ajuda a outros países”, frisa Padrós.

Enrique Padrós: "sempre que julgou ser preciso, a ditadura do Brasil desencadeou os mecanismos do terrorismo de Estado em grande escala" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Enrique Padrós: “sempre que julgou ser preciso, a ditadura do Brasil desencadeou os mecanismos do terrorismo de Estado em grande escala” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

“Um país promove o terrorismo de Estado” – diz o professor – “quando aplica essa prática massivamente ou quando constrói a estrutura necessária para o funcionamento dessa prática. O Brasil pode ter aprisionado ou matado menos que Chile, Argentina ou Uruguai, mas não porque tivesse optado por uma ditadura mais branda, e sim porque não considerou necessário. Chile, Argentina e Uruguai, ao contrário do Brasil, tinham um movimento operário tradicionalmente melhor estruturado e com histórico de lutas políticas. Da mesma forma, o movimento estudantil brasileiro não tinha a mesma dimensão que no Uruguai e na Argentina, por exemplo. Mas sempre que julgou ser preciso, a ditadura do Brasil desencadeou os mecanismos do terrorismo de Estado em grande escala.”

Busca no Exterior veio antes da organização Condor

Embora os registros bibliográficos apontem o ano de 1975, no Chile, como ponto de partida da Operação Condor, o presidente e fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (com sede em Porto Alegre), Jair Krischke, contesta essa data. Ele afirma que, para ser fiel à história, é necessário reconhecer que a ditadura militar brasileira deflagrada com o golpe de 1964 – que derrubou o presidente João Goulart -, já exercia bem antes, de forma pioneira, a chamada Busca no Exterior. “Nada mais era do que a prática posteriormente adotada e incorporada pelas demais ditaduras da região com o nome de Operação Condor”, argumenta Krischke.  “Através dessa aliança, as ditaduras militares trocavam informações e prisioneiros, realizando operações conjuntas que muitas vezes resultaram em desaparições e assassinatos, absolutamente clandestinos, sem respeitar as normas internacionais e diplomáticas existentes.”

Jair Krischke: "a ditadura militar brasileira já exercia bem antes, de forma pioneira, a chamada Busca no Exterior" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Jair Krischke: “a ditadura militar brasileira já exercia bem antes, de forma pioneira, a chamada Busca no Exterior” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

O primeiro caso de busca no exterior comprovado por documentos, de acordo com Jair Krischke, ocorreu já em 11 de dezembro de 1970, em Buenos Aires. As vítimas foram dois brasileiros e um jovem uruguaio. “Tratava-se do então ex-coronel do Exército brasileiro Jefferson Cardin de Alencar Osório, de seu filho (também chamado Jefferson)  e de seu sobrinho uruguaio, Eduardo Lepetegui Buadas, que foi entregue às autoridades de seu país. Eles foram capturados pela repressão argentina, a pedido do Brasil e com a colaboração do país. Foram embarcados em um avião da FAB, rumo à Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro, onde foram brutalmente torturados. Posteriormente, o coronel Jefferson cumpriu condenação de sete anos de prisão”, relata Krischke.

Edmur Péricles Camargo: Edmur foi preso no Aeroporto de Ezeiza pela polícia argentina e entregue às autoridades brasileiras | Foto: memoriasreveladas.gov.br
Edmur Péricles Camargo: Edmur foi preso no Aeroporto de Ezeiza pela polícia argentina e entregue às autoridades brasileiras | Foto: memoriasreveladas.gov.br

Outro exemplo citado por ele, entre os muitos episódios catalogados, é o desaparecimento de Edmur Péricles Camargo, que era conhecido como “Gauchão”. Dia 16 de junho de 1971, ele viajava do Chile para o Uruguai em um avião da empresa Lan-Chile. A aeronave fez uma escala em Buenos Aires e Edmur foi preso no Aeroporto de Ezeiza pela polícia argentina e entregue às autoridades brasileiras. Jair Krischke sustenta: “São várias as peças probatórias que permitem concluir que o Brasil e a Argentina mantinham permanentes contatos e reuniões tratando da troca de informações de inteligência, visando especialmente desenvolver e coordenar atividades repressivas”.

Um levantamento mantido pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos informa que o número de mortos e desaparecidos no Brasil, durante o período da ditadura, foi de 366 pessoas. O país somou ainda 10 mil exilados, outros 10 mil torturados nos porões do DOI-CODI e 4.862 mandatos cassados com suspensão de direitos políticos. Na Argentina, o número oficial de mortos e desaparecidos é de 8.961, mas organizações não-governamentais (ONGs) estimam que chegou a 30 mil. No Chile, a  contagem é de 2.011 mortos e 1.186 desaparecidos. O Uruguai contabiliza 413 desaparecidos e 5.925 presos por motivos políticos. Já no Paraguai, teriam ocorrido entre mil e 2 mil desaparecimentos, e na Bolívia, 100.

http://youtu.be/XZ11FsyzAS0

Argentina, Uruguai e Chile já instituíram julgamentos e  condenações que levaram à prisão militares envolvidos com a Operação Condor. O general Jorge Rafael Videla, que assumiu o poder na Argentina após o golpe que derrubou Maria Estela de Perón, recebeu em novembro de 2010 a pena de detenção perpétua pela morte de 31 prisioneiros. Morreu na cadeia em 17 de maio de 2013. No Brasil, até hoje, não houve punições. O máximo a que se chegou, conforme assinala Jair Krischke, foi o reconhecimento do coronel gaúcho reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra (chefe do DOI-CODI em São Paulo de 1970 a 1974) como torturador, em uma ação declaratória da Justiça Federal.


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