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28 de outubro de 2012
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16:27

O melhor livro de todos os tempos para Charlles Campos

Por
Sul 21
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O melhor livro de todos os tempos para Charlles Campos
O melhor livro de todos os tempos para Charlles Campos

Charlles Campos é médico veterinário, formado em História, e leitor profissional. 

Diariamente, durante todo o período da Feira do Livro de Porto Alegre — , publicaremos textos a respeito de “melhores livros” na visão de colaboradores e leitores do Sul21. Você também poderá enviar sua colaboração para [email protected](Milton Ribeiro)

Homem invisível, de Ralph Ellison, por Charlles Campos

Eu cheguei a Homem Invisível através de uma dessas tantas listas dos dez melhores romances do século XX. Eu conhecia e havia lido boa parte dos outros títulos da lista, os Mann, os Kafka, os Faulkner, os Joyce, mas nunca nem ouvira falar do romance cujo título soava como os de ficção científica e era assinado por um tal de Ralph Ellison que me era um completo desconhecido. Na época eu tinha lá os meus 25 anos e a onisciência disponibilizadora da internet ainda não era uma realidade, de forma que eu não tinha como obter mais informações sobre o livro além de rápidas notas em revistas antigas desencavadas de caixas empoeiradas de bibliotecas públicas e uma coluna de reverência acadêmica de uma enciclopédia que ressaltava ser Ellison o maior escritor negro da América e seu único romance um libelo contra a discriminação racial. Não eram informaçõe s que me despertavam maior interesse pela leitura da obra, devido seu proselitismo e seu acento de correção política que poderia nada ter de real valor literário; parecia uma concessão. A grande sorte é que eu já investira parte de meu tempo no conhecimento dos grandes escritores e sabia que nas mãos deles, até um panfleto se transformava em alta expressão espiritual, e me ajudava saber que a academia e a maçonaria dos professores de letras faziam seu papel de sistematizar ao extremo a leitura até torná-la uma substância temerosa e destituída de prazer, e suas catalogações insípidas de borboletas literárias não escondiam o mérito da obra por sua canonização pelo gosto de leitores sinceros.

Comprei um exemplar de Homem Invisível, o último da livraria, publicado pela Marco Zero, em ótima tradução assinada por uma tal de Márcia Serra. Foi uma das raras aquisições em que a expectativa formada correspondeu milimetricamente ao que o livro tinha para oferecer. Há alguns anos eu dedicara uma semana de umas férias e devorar Os Possessos em uma biblioteca pública, o romance baluarte de Dostoiévski que era quase impossível de se encontrar no mercado editorial brasileiro (a tradução da editora 34 era uma ideia em formação em idos de 1995), e aquele volume duplo português encadernado em vermelho e com pranchas internas mostrando rascunhos do autor com  seus desenhos distraídos de mujiques barbudos na beirada das páginas, mesmo pessimamente traduzido, foi o equivalente a um ferro em brasa gravando em mim a beleza cruel que a ficção era i ncumbida de oferecer em sua elevada concepção da natureza humana, em nada bajuladora, e sua capacidade de ser ainda uma carreadora de primeiro nível da percepção profunda da História e da Filosofia. Então, eu esperava encontrar a mesma natureza sanguínea e violenta, o mesmo turbilhão de olho do furacão, em Homem Invisível, pois a ele era atribuído o panfletarismo libertário que outrora fora equivocadamente atribuído ao romance de Dostoiévski: e sendo que no russo eu descobrira algo tão desoladamente lúcido no lugar da propaganda oficial que se fazia deste seu romance. E lendo Homem Invisível, nos eufóricos três dias intensos em que não consegui fazer mais nada que me lançar nele, deparei-me ali com a mesma falta de pudor de Os Possessos, a mesma ausência absoluta de intenção em agradar, em ser digerível, em ser ameno.

Homem Invisível está tão distante de ser um panfleto de luta racial quanto Os Possessos está de ser uma cartilha marxista sobre a revolução de classe. Ambos podem ser lidos em negativo de tudo que superficialmente são tidos como apologistas de determinados setores formados da exclusão. Homem Invisível, com aqueles primeiros parágrafos antológicos, de enorme beleza, começa por afrontar um tipo de exclusão espiritual que vai muito além das circunvoluções dos conflitos raciais dos Estados Unidos, afundando-se na ferida de que a discriminação violenta tida por sobre uma raça não a distingue como determinada à nobreza do estoicismo ou à dignidade dos mártires. O narrador, contudo, aponta sua invisibilidade social tanto devido à sua cor quanto ao atraso espiritual que o pior crime da discriminação racial determina: a inà ©rcia acomodada de ambos os lados da repressão, que gera a promiscuidade e o animalismo. E no contraste entre tema e tom da narrativa que está a força incomensurável desse livro: a prosa de Homem Invisível é a melhor, a mais bem composta, a mais elevada e nietzschiana, a mais bombástica e musical da exigente prosa norte-americana do século passado. Cada parágrafo é intenso de luz verbal, em uma história movimentada que apresenta dezenas de personagens e situações inusitadas desenhadas no cenário de submundo e de constantes e disparatados movimentos sociais norte-americanos. Dizer sobre o contexto político de uma obra é desmotivar a leitura dela: Homem Invisível é antes um romanção de primeira, de mexer com o leitor na poltrona, de não se conseguir despegá-lo até o fim da leitura, daqueles livros que verdadeiramente nos transformam, e isso nada tem a ver com uma visão específica sobre partidarismo político. Sua carga filosófic a e sua acentuada verdade incondicional é o que sobressai da voz frenética e concentrada do narrador, e depois desta jornada que pouco se dá tempo para a respiração tranquila, o narrador encerra com a mesma poesia magnífica ao anunciar: “quem sabe se, em esferas mais baixas, eu não esteja falando sobre vocês?“.

O mercado editorial nacional, um dos melhores e mais dedicados do mundo, vem cometendo uma grande injustiça com esse romance de Ellison, que deveria ter por aqui uma edição bonita, com ensaios sobre a obra feita por outros autores (o de Saul Bellow, por exemplo), e a promoção devida para diminuir o desconhecimento entre os leitores brasileiros dessa obra capital.

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