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10 de outubro de 2011
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12:00

Hegemonia gauchesca (final)

Por
Sul 21
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Na crítica expressa pelos autores do Manifesto contra o Tradicionalismo ao MTG, obviamente, existem concepções sobre história e cultura. Consideram “indispensável para a cultura regional distinguir os fenômenos da história dos da memória”. Enquanto a História auxilia no conhecimento, a Memória, instrumentalizada no “memorialismo” consagra o status quo, nomeia os espaços com os personagens do poder, encrava monumentos de celebração.

Leia os artigos anteriores desta série:
Hegemonia gauchesca I
Hegemonia gauchesca II

O Manifesto propõe uma metodologia que identifique “os eventos em seus tempos históricos” e se desenvolvam saberes para que “não sejam diluídos nas celebrações contemporâneas e seus interesses ideológicos, culturais e econômicos.” Através das posições assumidas pelos tradicionalistas carreiristas, em especial nos órgãos de governo, nas empresas, na mídia e na publicidade, o MTG, vale relembrar, conseguiu “institucionalizar” a sua versão de cultura cívica e de lazer. A sua legitimação, “reforçada e inserida na indústria cultural pilchada, impõe uma visão da sociedade e do passado, segundo a ótica dos interesses dos indivíduos que operam socialmente na atualidade.” Isso lhe deu o domínio de uma falsa historicidade. Assim, seus membros legitimaram-se como “autênticos” e “podem especular com este inventivo selo de qualidade.” Sob o poncho do civismo tradicionalista existe uma mercadoria.

A contracultura metegista implica, por sua vez, no mínimo, não consumir produtos que tenham a sua marca. No geral, este “selo” representa uma especulação sobre produtores sérios, cujos produtos, ao contrário do que pensa o Tradicionalismo é que servem de condutores e impregnam de valor o MTG. Para ser didático, uma boa erva para o mate depende do fabricante. Da certificação de laboratórios capacitados, a exemplo dos universitários. Arvorar-se de certificador de qualidade sem chancela técnica é uma falcatrua. Mas a marca não expressa a realidade e sim o domínio simbólico.

O próprio MTG também é um produto poderoso. Para adquirir o fetiche de algo especial e raro, a sua atividade militante aculturadora precisou ressignificar símbolos, ícones e eventos históricos. Impregnar-se deles. Elaborou “um espaço praticado e imaginado como ethos de uma estância atemporal, empobrecendo culturalmente o Rio Grande do Sul.” O resultado é evidente: relegou etnias e grupos sociais historicamente importantes, como se fossem refugos, rebanhos sem simbologia. Resta-lhes somente, se não quiserem viver a esmo como almas penadas e “desmemoriadas”, marcarem-se com o ferro autêntico do tradicionalismo. Ungirem-se de tradicionalidade.

Identidade, ideologia e dogmatismo simbólico constituem alquimia perigosa. Em especial quando o interdito é dogmático. Os escolhidos da tradição patrulham “a sociedade como um espectro opressivo.” Professam sobre aqueles que não ideologizam as pilchas uma espécie de maldição. Não se pode mensurar seus efeitos, exceto que “aqueles que se libertam de sua doutrina, depois do longo processo de adestramento, geralmente iniciado na infância, enfrentam traumas de identidade”, precisam emergir de um devaneio esquizofrênico.

No campo do saber, o tempo perdido com “versões manipulatórias da história”, sem qualquer respeitabilidade pública e nas esferas minimamente eruditas, é quase irrecuperável. Ao iniciarem estudos metodologicamente criteriosos, sustentados na documentação, chocam-se diante dos fatos de que a população do Rio Grande do Sul jamais se levantou contra o Império, os farroupilhas nunca foram republicanos, exceto nas propostas confusas de uma minoria, em momento algum libertaram seus escravos.

Nesse particular é necessário uma pedagogia prudente. Sem a arrogância acadêmica e erudita, com seu viés elitista, de que não se deve perder tempo com isso. Ora, a ascensão do nazismo e do fascismo, assim como diversos movimentos que se consolidaram especulando com as massas, ganharam espaço devido à postura de plateia dos intelectuais, muitos pacificamente assistindo o estilo histriônico dos bandos uniformizados e suas celebrações. Outros entraram na peleia proposta e adotaram o deboche como argumento, considerando, por se tratar de uma metodologia inspirada nos bretes e mangueiras, esse esforço de reconstrução do passado como “bostória”.

Courama

Entretanto, o importante não é a “bostória”, mas a sua produção de realidades, sua formação de indivíduos, seus condicionamentos públicos. Ela é tão superficial que basta uma pequena faca da história para remover-lhe o couro e perceber a sua carcaça. Não é necessário exímio carneador. De certa forma, é uma irresponsabilidade intelectual não debater, propor e escrever a história com método e racionalidade processual para o público. Há o pedantismo de que ele não compreenderia.

O conhecimento basilar sobre a história de uma região não depende de formulações privilegiadas de pesquisadores. Invariavelmente, internalizar uma versão fantasiosa do poder simbólico é muito mais complicado do que entender os fenômenos concretos, pois seus eventos estão referenciados pela racionalidade e a ponderação da experiência humana. Incorporar um discurso de igualdade entre patrão e peão requer talento imensurável, operação sistemática de inversão da vida real, pois qualquer trabalhador (não necessariamente somente do campo) e indivíduo do povo detém a experiência dessa inverdade. No entanto, a pretensa solidariedade da cuia do chimarrão, o churrasco virtual da igualdade, o desfile alegórico da fraternidade, eleva as massas da representação da realidade para a alienação da esfera simbólica. Como a realidade só pode ser compreendida como representação, percebe-se o dano.

Mesmo que se chegasse a conclusão equivocada de que o Tradicionalismo não faz nenhum dano publicamente, ainda assim, o seu crime seria a criação de ambientes que retiram da população a possibilidade de conhecer a sua história. O memorialismo gauchesco instalou-se como um inóspito deserto “memorialista” a ser atravessado para se atingir o conhecimento.

As massas sequer se propõem fazer essa travessia. Os oásis da tradição gauchesca, fortalecidos por interesses de consumo e oportunismo político, interpõem a felicidade ilusória do êxtase alienante e impedem a jornada. Quando qualquer pessoa comum conhece e repete as três mentiras lapidares do Tradicionalismo sobre a história sul-rio-grandense estamos diante de uma longa formação; ela foi “educada” para isso, já que, como é elementar, a informação não é capim que brota espontaneamente na natureza. Como afirmaram os autores do Manifesto, na vivência memorialista, na mídia de massa e nas celebrações de efemérides, o MTG “pratica a demência cronológica e estatística, impondo a deturpação de que o povo se levantou contra o Império e os imigrantes e seus descendentes também cultuaram a Revolução Farroupilha, quando, quase em sua totalidade, não estavam no RS entre 1835 e 1845. Se um dia aportaram no Brasil, isso se deve ao projeto de colonização do Império. Os projetos de colonização fundamentais, que contribuíram para a formação do Rio Grande do Sul contemporâneo, não pertenceram aos farroupilhas.” Qualquer ato contra esse reconhecimento implica na violação da memória dos pioneiros.

A façanha

Portanto, a herança farroupilha é uma façanha da mentira. Se considerarmos a população do Rio Grande, a esmagadora maioria não possui descendência farrapa, tomando como referências as principais cidades, vilas e índices elevados da população rural do período. Militarmente, no auge de sua ofensiva, as tropas farroupilhas jamais passaram de 6.000 homens em uma demografia oficial de cerca de 400.000 habitantes. Isso perfaz 1,5%. Por óbvio, 98,5% estavam em armas a favor do Brasil, defendendo as cidades e vilas, protegendo suas propriedades da expropriação, ou alheia à guerra civil, além daqueles que fugiam da arregimentação compulsória.

As divergências entre as três correntes rebeldes mermaram qualquer projeto no já confuso programa caudilhesco de suas lideranças. Traiam-se, matavam-se, disputavam as estâncias e bens dos “legalistas”. De 1835 a 1842, no conflito preponderaram contingentes internos. O barão de Caxias chegou somente em 1842. Reorganizou o exército imperial, elevando seus efetivos a aproximadamente 12.000 homens, na maioria arregimentados na própria província. Estes milhares de rio-grandenses foram simplesmente apagados do imaginário popular. Por óbvio, os antepassados do povo, que, pela inversão metegista, hoje celebram seus inimigos.

Em ação contínua, Caxias embretou os farroupilhas na fronteira com o Uruguai, enquanto o Rio Grande levava vida relativamente normal. Foram minguando. Por fim, os oficiais de um exército esquálido, calculado em 1.800 indivíduos, aceitaram a anistia. Pediram perdão a Pedro II, foram indenizados, e se recolheram.

O evento foi uma guerra civil e não, conforme a deturpação tradicionalista e demais correntes conservadoras (e inclusive de algum anuzinho da esquerda) de uma guerra de libertação regional. Os estadistas imperiais sempre souberam que os farroupilhas eram produto da fronteira. Através dela buscavam seu oxigênio. Primeiro com Rosas e Oribe; depois, com Rivera. De certa forma, a guerra civil no Rio Grande foi o primeiro ato da hegemonia continental brasileira, consagrada na guerra contra Rosas, em 1852, depois de remover as oposições e sustentar governos aliados no Uruguai e províncias argentinas.

Assassinato…

Durante anos, o ex-ministro farroupilha Domingos José de Almeida usou o seu arquivo e recolheu documentos para escrever a história do movimento de seus pares. Solicitou os relatos dos participantes dos eventos. Recolheu informes. Entretanto teve muitas dificuldades. Formou-se um grupo contrário a sua iniciativa. Estes farroupilhas “não querem que eu escreva esta história”, escreveu, mas a cavalaria urbana do Tradicionalismo pula essas páginas. Quando Almeida descobriu as mútuas traições, os acertos com os imperiais para pacificar os renitentes com uma derrota em Porongos – e, em especial, que Bento Gonçalves andava protegido com salvo-conduto dado por Caxias, depois de ter perdido o governo (obviamente traindo a “revolução”) – desistiu da empreitada em 1860.

A contundência dos fatos e os seus registros históricos para a posteridade silenciaram Domingos José de Almeida. Desmoronou o herói de seu projeto: Bento Gonçalves. Em seu épico farroupilha também não tinham mais lugar membros do governo e militares. Em 3 de abril de 1860, ele escreveu ao ex-oficial farrapo Antunes Porciúncula comunicando-lhe sua decisão e temores: “Eis meu Antunes porque não querem que eu escreva essa história; e estarei livre de algum assassinato!” Ele conhecia perfeitamente o passado recente e as práticas de seus correligionários.

Almeida rejeitou a missão historiográfica, mas deixou aos rio-grandenses o seu monumental acervo, o qual constitui hoje grande parte da Coleção Varela, disponível no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Somente depois de um século, sem preocupação com as veracidades da História, correspondendo a interesses contemporâneos, a militância tradicionalista pode inventar sua fantasiosa versão sob os mais torpes interesses, com o efeito lesivo de alienação das massas. Tarefa que não seria concretizada sem a colaboração da mídia e dos partidos políticos.

Cada vez mais fica evidente que o Tradicionalismo é um problema conjuntural, com sua trajetória de poucas décadas. Já a guerra civil de 1835-45 é um tema da historiografia. Comprar um cavalo e mantê-lo em alguma hospedaria urbana, pilchar-se, frequentar CTG e adotar um vocabulário gauchesco nas celebrações, não habilita ninguém para produzir representações do passado como se fosse chancelada sem percorrer requisitos metodológicos.

Ave pampa!

Como reifica o Manifesto, o corolário de força alienadora tem suas consequências: “Ajudou a instituir e alimenta em seu calendário de celebrações, nas escolas, na mídia, um panteão de heróis, na sua maioria senhores de escravos”; trabalha contra a criação de uma mentalidade ilustrada; ao transpor para o presente esses personagens como “lumes tutelares a serem adorados, impediu que se fizesse, nesse particular, um movimento cultural com a densidade dos princípios consagrados pela Revolução Burguesa.” Trata-se de um enxerto maldito, pois o MTG transformou “a população em adoradora de senhores de escravos (no geral, sem saber)”, pois as senzalas foram extirpadas do imaginário edênico dos CTGs e de suas narrativas trovadorescas sobre a história e a estância tradicional. Falta justamente a parte do mundo do trabalho nessa representação.

O mais grave é que impõe uma força impeditiva da formação de capitais simbólicos nas diversas regiões do RS e onde se estabelece como expressão dominadora.

Nessa perspectiva também produziu uma ilusão geográfica. Retirou as noções de territórios humanamente praticados das diferentes regiões. Criou o estereótipo pampeano. A parte simbolicamente “nobre” do Rio Grande se sobrepõe. Onde pastaram os rebanhos da oligarquia está o espaço da identidade. Secundarizou os demais. Sem reconhecer o precipício à frente, refugiam-se na calma e imutável planície imaginária.

Entretanto, sem poder desconhecer uma cultura pecuária e da presença marcante de cavaleiros na metade norte do Rio Grande, onde nunca existiram os grupos gaúchos históricos, aceitou-a como algo subsidiário na figura do “gaúcho serrano”. É o predomínio da bobagem de que homem + cavalo = gaúcho. Assim também foi secundarizado o universo dos caboclos, dos birivas, dos tropeiros, dos campeiros, do espaço social não pampeano.

Tradicionalizando

Foi nessa lógica que o MTG transformou o tradicionalista, “arbitrária e oficialmente, em uma imagem gentílica”. Converteu-se em “movimento de intolerância cultural através de instalações de CTGs que não respeitam as culturas locais”. Os grupos discriminadores passaram a ter nele forte parceiro. Invadem como intrusos localidades de tradições emblemáticas, “usurpando seus espaços, destruindo sua poética popular e deturpando sua arquitetura. Nessa operação, o Tradicionalismo não é uma representação aceitável da cultura sulina, mas o instrumento de uma aculturação massificada, da não inserção dos grupos migrantes nas culturas locais, transformando-se, de fato, em agente de destruição.”

Ao se converter em uma representação do Rio Grande do Sul e exercitar sua arrogância em outros espaços socioculturais, fazendo escolhas pela não inserção e respeito às populações do restante do Brasil e do mundo, está desencadeando movimentos de reação discriminatória contra os sul-rio-grandenses. “Devido às posturas dos tradicionalistas, tornam-se cada vez mais frequentes campanhas populares de Fora gaúchos em outros estados da federação”, confundindo os tradicionalistas com o habitante do Rio Grande, jogando sobre o seu povo “um estigma motivado unicamente pelo cetegismo.” Consequentemente, “essa militância tradicionalista contribui, de fato, para a difusão da intolerância na população sulina.”

No extremo, o MTG se apresenta militantemente em outras unidades da federação como uma “etnia gaúcha”, deturpando a formação multi-étnica e mestiça sul-rio-grandense. Ofende, além de tudo, os conceitos mais elementares da Antropologia. Pressiona outros estados brasileiros para adotar a “pilcha gauchesca” como traje oficial, produzindo ainda maior rejeição. Fortalece essa aversão a sua articulação incessante para se transformar na cultura oficial, ou ser reconhecido como “uma representação externa”.

Na guaiaca pública

A esfera cultural e simbólica possui potencialidade abstrata. Entretanto, no aspecto material se evidencia a usurpação do patrimônio e erário público. Talvez em nenhum outro momento, uma força de opinião como a do Manifesto tenha tocado no assunto com argumentos de explosiva legalidade. Como entidade privada, o MTG “tange, em sua arreada intolerante, grande parte das verbas públicas dos setores da cultura, da educação, do turismo, da publicidade e da Lei de Incentivo à Cultura das empresas estatais, fundações e autarquias, para o seu imenso calendário de eventos, onde, nem sempre, se distingue a cultura do turismo e do lazer.” Para se ter uma mínima ideia, não se sabe, não existem indicadores confiáveis, do montante arreado dos cofres públicos para o Tradicionalismo. O Tribunal de Contas do Estado não possui rubrica para auferir. Parece evidente que não se faz política pública sem indicadores. E, por óbvio, não se faz também ciência, se produz conhecimento, sem dados estatísticos.

Há cinco anos, os autores do Manifesto, “em defesa da cultura rio-grandense” e da cidadania, postulam “pela instalação de uma CPI na Assembleia Legislativa.” Seu objetivo principal é “investigar a transferência de verbas e infra-estruturas públicas para as atividades tradicionalistas” de esfera particular. Essa flagrante usurpação do público não estimulou ainda nenhum deputado. No passado recente, pilchas foram distribuídas na rede de ensino público como material educacional enquanto falta o elementar. Nos municípios ocorrem verdadeiros saques. Tradicionalistas, oportunistas, demagogos andam à gaúcha no patrimônio da população. Como se sabe, no século XIX, andar à gaúcha era usurpar o alheio, inclusive com métodos que iam do simples abigeato ao assassinato e estupros.

De mesmo modo, os autores do Manifesto indicaram a necessidade do Conselho de Cultura “realizar audiências públicas para discutir a canalização da LIC (Lei de Incentivo à Cultura) para um excessivo predomínio de projetos tradicionalistas, muitos de caráter turístico e de lazer, iludindo a natureza da Lei.” Desde que surgiram as leis de incentivo ao esporte, de mesma forma, começaram as arreadas sobre os fundos públicos, com argumentos de que as atividades campeiras e de lazer são habilidades… esportivas. E já estão em carga sobre o erário. O tiro de laço, a gineatada, etc, que tiveram removidos seus aspectos de técnica de trabalho nos rodeios, agora ostentam também habilidades. Passaram a ser consideradas disputas esportivas, assim como o jogo de osso, o truco, e quaisquer práticas dos hábitos e costumes. Ironicamente, o oportunismo acabou revelando a manipulação simbólica e a carnavalização do mundo rural pelo metegismo.

A metodologia da transparência também deveria ser adotada pelo Conselho de Educação. É premente discutir a deturpação dos currículos e dos princípios de Educação Pública, em consequência da infestação, da usurpação e da distorção pedagógica representada pela invasão tradicionalista nas escolas, substituindo os preceitos do “saber”, do “estudar”, pelo “culto” e pelos “manuais” tradicionalistas.

Indicaram como elemento dessa distorção e atropelo obscurantista a transformação do próprio espaço escolar, com a criação de piquetes e invernadas artísticas. O argumento é longo e pertinente: “Essa situação revela a falência pedagógica da escola, o abandono de sua natureza laica e republicana. Os alunos são induzidos a comportamentos e práticas dogmáticas, adestradoras, apresilhados a uma identidade questionável, originada em um mito fundante. Essa escola doutrinariamente cívica, gentílica e de orgulho gaúcho exercita a fé, a pertença alienada. Ela significa a falência da Educação. Por essa razão, reconhecemos como legítima a revolta daqueles professores que rejeitam a sua conversão em instrumentos de realização do calendário tradicionalista, como se fossem meros executores de seus manuais dentro dos educandários. Reconhecemos como legítima a resistência dos professores às pressões para serem transformados em pregadores pelas direções, pelo poder e por alguns ciclos de pais e mestres, pois esse enquadramento significa a negação de suas funções constitucionais de educadores.”

A militância de tradicionalização de todos os espaços é mais suscetível nos órgãos públicos. Grande parte deles possui ambientes de piquetes, galpões, etc., para onde os funcionários se transportam em seu “tempo livre”. Ou, invariavelmente, o tempo livre vai sendo estendido como prolongamento do trabalho. Têm-se aí dois problemas. O primeiro é legal; o segundo, político. As gestões estão minadas pelo passadismo, ausência de utopia, possuídas pelo revir, um imaginário que opera no presente como reposição do ethos artificial. Trata-se de uma espécie de sarandeio que anda em círculo; alimenta-se de sua própria pajada.

Nesse particular, o Manifesto contra o Tradicionalismo tem subsidiado políticas públicas para evitar a instrumentalização ou abuso da esfera pública. Seu texto republicano estabeleceu paradigmas para essa reflexão, insistindo que o “público” não é um lugar vago a ser ocupado pelas “representações”. No mínimo coloca na mão do governante um aceno de legalidade para conter os intrusos, ou notadamente um semblante de estranhamento para os agalponamentos nos espaços públicos. O problema é quem “controla” legalmente o tradicionalista investido de poder…

Regional-universal

Desse modo, a polaridade entre Tradicionalismo e seu grupo opositor também se expressa na esfera das propostas. O Manifesto defende “o RS da inclusão, da convivência multicultural, de todas as indumentárias, de todos os ritmos, de todas as danças, de todas as emoções, de todos os trabalhos e ofícios, de poéticas de múltiplos espaços, e não da territorialidade simbólica exclusiva do pampa.” Postula “construir espaços poéticos que representem também a complexidade de nosso tempo”; “direitos elementares da liberdade, da igualdade e da fraternidade”.

Defende princípios de identidades regionais harmonizados com as culturas locais das demais regiões brasileiras. Posiciona-se contra a “mediocrização do Rio Grande do Sul em seus aspectos culturais”, sem inserção moderna e respeitosa no Brasil e na América, pois o controle metegista produz “uma incapacidade de leitura crítica da sociedade rio-grandense e do mundo.” Enfatiza que, “nas últimas décadas, os acontecimentos culturais populares importantes se constituíram na relação e na contradição com o Tradicionalismo. Na maioria dos casos tiveram que superá-lo, ou negá-lo, para sobreviverem e afirmarem os seus espaços estéticos.”

No Manifesto ainda há uma lição de republicanismo. Defende “o MTG quanto ao seu direito privado, ao seu exclusivo espaço cultural, à noção de que ele é apenas um segmento interpretativo da história e da cultura do Rio Grande do Sul, sem que as suas convicções singulares tenham a ambição e a ação militante ilegítima de aculturação das demais esferas sociais e culturais do estado, sem que se coloque no topo de uma hierarquia dominante e exclusivamente gauchesca da identidade.” Nesse particular é “contra o MTG, exclusivamente, no que tange à usurpação das esferas públicas e à coerção de nossos direitos civis, culturais e estéticos.” Identifica “nele a alimentação de uma sinergia cultural que atolou o Rio Grande do Sul no passadismo conservador, criando uma força de pertencimento que bloqueia o desenvolvimento de uma energia socialmente humana moderna, humanista, republicana, respeitosa com os sentimentos historicamente multiculturais da população rio-grandense.”

Por último, o Manifesto se coloca em defesa dos “reprimidos, cerceados e vitimados, cultural e profissionalmente”, identificando o MTG como uma força militantemente dogmática contra os direitos da cidadania; do Folclore representativo da multiplicidade étnica e das recriações da mestiçagem. E considera “as frações da Tradição que expressam as relações humanizadas e o espírito solidário do povo sul-rio-grandense, a Cultura Popular, os espaços efetivos para uma cultura que expresse nossa historicidade, desde o passado até a atualidade, e, principalmente, porque postulamos uma estética sem embretamentos, capaz de apreender a complexidade regional com suas particularidades e conexões universais.”

No aspecto da história da cultura, o Manifesto representa a conjuntura para onde se avolumou as reflexões críticas, os trabalhos acadêmicos, mas especialmente o desaguadouro dos sentimentos de artistas e grupos culturais. Muitos deles oriundos ou com longa convivência nos espaços tradicionalistas. Essa realidade nos coloca numa espécie de gauchismo de fronteira entre diversas posições, cada um no entre-lugar de acontecimentos e vivências; de realidades e fantasias; de utopias e devaneios; de espelhos e rejeições. As nossas alteridades, sempre, em alguma situação, estão nas esferas dessa identidade impregnada de contradições. Não se sabe por quanto tempo ainda existirá como o espectro dos indivíduos do Sul. Já constituiu a sua historicidade.

Em uma sociedade tão polarizada, somente o contrato republicano pode mediar a convivência. Nela, tanto os governantes como segmentos particulares, precisam se despir dos adereços patronais, que reproduzem a pretensão de se colocar acima, de se considerar melhor, mesmo quando reconhece a diversidade. O tradicionalismo militante, por adquirir a força de criação de realidades e domínio sobre a representação simbólica, é bem mais que uma carnavalização pilchada, como imagina a intelectualidade pedante, cuja imobilidade colaboradora mantém a porteira aberta para o seu fortalecimento.


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