Revolução Russa -- 100 anos
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10 de abril de 2017
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12:05

VIII – Um presente terrível

Por
Sul 21
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Por Fernando Horta

Capa do “Le petit journal” de janeiro de 1916, mostrando o famoso “general inverno”. Aqui massacrando a própria população empobrecida. Foto do arquivo online do Le petit journal.

Dezessete milhões de mortos, incapacitados ou prisioneiros até 1917. Este é o número que historiador francês Marc Ferro apresenta para falar da devastação da Primeira Guerra Mundial. Destes, a Rússia tinha perdido mais de 5,8 milhões. Quase todos em função da diferença tecnológica para com os exércitos alemães, que já tinham desenvolvido na época metralhadoras. “Carnificina” é a palavra usava pelo historiador para definir a violência imposta aos russos. Todo este sofrimento serviu para desvendar essencialmente quatro pontos aos olhos da população russa: a fraqueza do império Romanov, a pobreza e desigualdade a que o país estava submetido, o papel das mulheres na sociedade russa e no conflito, e a força dos cidadãos-soldados.

Em 1904 o orgulhoso império Romanov sofreu uma acachapante derrota contra vizinhos sulistas. A chamada Guerra Nipo-Russa fez enfrentarem-se dois países que iniciaram o século XIX com desenvolvimento econômico semelhante. Tanto o Japão quanto a Rússia tinham suas economias ainda baseadas no trabalho camponês servil e toda a gama de relações pessoais semelhantes ao que ocorria na Europa durante a Idade Média. O Japão, contudo, havia passado pela chamada Revolução Meiji, a partir de 1868, quando o contato com os norte-americanos tornou o Japão um país submisso. Esta submissão tem como contrapartida um avanço social e econômico, direcionado pelos americanos, que colocou o Japão muito à frente da Rússia, no início do século XX. A vitória japonesa na guerra significou a vergonha para o exército do czar. Um império, que se mantinha pela força em uma vasta área que ia do norte da Ásia até a Europa, era derrotado militarmente por vizinhos que outrora pouco perigo representavam. Poucos na Rússia viam na transformação industrial japonesa o motivo da súbita superioridade demonstrada. O sentido da derrota, dentro do império, foi um sinal da fraqueza do exército do czar.

Quando a Primeira Guerra (1914) se inicia, as chacinas impostas aos russos traziam à tona a vergonha da derrota de 1904-1905 para o Japão. O império Romanov definitivamente não estava preparado para a guerra e a população russa era usada por seu número, sem possibilidades reais de vitória contra os alemães. Não era esta visão de futuro que o soldado russo no front contava em receber de seus superiores. Mesmo a ofensiva Brusilov, em junho de 1916, considerada bem sucedida, custou aos russos entre 500.000 a um milhão de mortos. Numa época em que o principal armamento era a baioneta, as ofensivas terrestres eram especialmente selvagens. Ferro chama a primeira guerra de “La Grand Guerre” e argumenta que ela representou mais terror no imaginário da Europa do que a Segunda Guerra Mundial.

Corpos de soldados russos durante o inverno de 1917 no front. Foto: Andrey Nenarokov.

O conflito cobrava seu preço também internamente. O esforço para alimentar e vestir os soldados no front fazia com que a comida fosse racionada, numa situação em que já havia a diminuição da produção em função do alistamento obrigatório também no campo. Especialmente nas cidades, os víveres ficaram escassos e foram organizados locais para compra de pão, por exemplo. Invariavelmente não havia alimentos para a população, que se acotovelava nas filas, às vezes durantes seis ou sete horas de espera. Esta situação tornava cada cidade no império um barril de pólvora, especialmente quando corriam as informações de que o mesmo racionamento não atingia à burguesia ou aos nobres. Em muitos casos, banquetes eram servidos em palácios a apenas centenas de metros de distância de massas famintas, sem que o czar ou seus subordinados com isto se preocupassem. De novembro a março, o inverno fazia com que o cenário de empobrecimento tomasse a própria população russa em condições muito precárias. Temperaturas de 40º Celsius negativos são comuns em muitas partes da Rússia, enfrentá-las sem carvão ou roupas apropriadas não é tarefa fácil.

Todas estas situações pesavam em dobro na população feminina. As mulheres sofriam a perda de seus filhos e maridos e tinham as jornadas de trabalho aumentadas, colocadas como trabalhadoras em fábricas. Eram obrigadas a esperarem em filas pela pouca comida distribuída e não raro viam-se sem condições de alimentar os filhos menores. A partir do final de 1915, as perdas na guerra fizeram com que o alistamento fosse extensivo para as mulheres, que chegaram a constituir batalhões inteiros de soldadas. Se no mundo todo o empoderamento feminino passou pela violência dos momentos de esforço de guerra, na Rússia esta situação foi muito mais brutal. Literalmente, as mulheres russas rasgavam por dentro a machista sociedade czarista e não por outros motivos constituíram-se essencial substrato para a revolução.

Batalhão feminino jurando a bandeira em junho de 1917. Foto: Andrei Nenarokov.

O front de guerra passou a ser outro estopim, uma vez que ali não havia como deixar de ver a precariedade da sociedade czarista frente ao ocidente. A política do czar, de alistar os bolcheviques preferencialmente nos batalhões de infantaria (e mandá-los ao front), objetivava a morte da ideia de revolução. Tal política, ao contrário, levou as ideias críticas dos bolcheviques para o lugar em que a realidade não podia ser negada e os seus participantes detinham armas. Os soldados no front, ao voltarem, contavam histórias muito diferentes daquilo que era a comunicação do governo. Os acordos internacionais que o czar e seus generais juravam manter não faziam sentido frente ao morticínio a que eram submetidos os soldados russos. Os bolcheviques tinham a comprovação de seus argumentos contra o czar e contra o regime em cada ofensiva, em cada massacre.

Lênin disse que “a guerra deu de presente à Rússia a revolução”. Ainda que se conheça o pragmatismo de Lênin, é difícil de se compreender como dezessete milhões de mortos poderiam ser um presente. O sentimento da violência da guerra marcou profundamente a sociedade russa e certamente serviu de combustível para a revolução. Muitas vezes, durante a Guerra Civil (1917-1921), os russos lutavam por aqueles que já tinham perecido “para que seus esforços não tenham sido em vão”. A revolução, portanto, não poderia falhar.

Soldados protestando contra a guerra em março de 1917. Foto Andrey Nenarokov.

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Fernando Horta é professor, historiador, doutorando na UnB.


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