Opinião
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15 de maio de 2024
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10:59

Deveríamos nos preocupar tanto com o custo da reconstrução e adaptação do RS? (por Francisco Santana)

Foto: Ricardo Stuckert/PR
Foto: Ricardo Stuckert/PR

Francisco de Carvalho Santana (*) 

As fortes e duradouras chuvas espalhadas por grande parte do território  gaúcho (450 dos 497 municípios do Estado foram afetados) resultaram em  inundações catastróficas nas margens de importantes rios e lagoas do Estado,  onde grandes contingentes populacionais se encontram. Muito se perdeu em  termos de vidas, memórias, infraestrutura pública e ativos privados. As  consequências da tragédia são de escala nacional: a inoperância do Estado (5,9% do PIB nacional, em 2023), interligado produtivamente a outras Unidades  Federativas através da compra e venda de insumos e produtos finais, e pela  incapacidade de exportar, impacta múltiplas dimensões e setores de toda economia brasileira. Ainda na dinâmica dos acontecimentos, a força do voluntariado e ações do Estado se voltam para o imediato, reconstruindo o  destruído e acolhendo os desabrigados. Tendo o médio e longo prazo como  perspectiva, especialistas de diferentes áreas já começam a divulgar suas  análises e recomendações para a reconstrução e adaptação à nova realidade que enfrentará condições climáticas mais hostis. Aos economistas, pergunta  que usualmente surge é: quanto custa [1] e de onde virá o dinheiro para financiar  as ações necessárias? 

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O debate econômico brasileiro é dominado, há algumas décadas, por  discussões voltadas a políticas de estabilização macroeconômica, dando  pouco espaço às análises vinculadas às políticas de desenvolvimento  produtivo. Essa característica, evidenciada em manchetes e opiniões de colunistas dos principais meios de comunicação, se deve ao domínio teórico de  correntes de pensamento que, a grosso modo, entendem que o melhor que o  Estado pode fazer é não atrapalhar o funcionamento racional e otimizador dos  agentes privados. Havendo fundamentos econômicos estáveis, a economia  operaria de acordo com sua trajetória natural de equilíbrio, com preços e  desemprego nos seus níveis naturais. O debate ao redor da estabilização  macroeconômica se debruça sobre qual seria o “correto” manuseio dos  instrumentos de política fiscal, monetária, cambial e regulatória à disposição do  governo. As popularizadas discussões sobre o Teto de Gastos de Temer e  Bolsonaro, o Novo Arcabouço Fiscal do governo Lula, a política de juros do  Banco Central, se encaixam no grupo de políticas voltadas à estabilização  macroeconômica. A preocupação, aqui, é manter as contas públicas  controladas.  

Um aspecto fundamental é que, para um país em desenvolvimento como  o Brasil, carente de múltiplos avanços sociais e econômicos, políticas  econômicas preocupadas em gerar uma sociedade mais inclusiva e  economicamente dinâmica (vinculadas ao segundo grupo de políticas  econômicas, as de desenvolvimento produtivo) devem ser consideradas e  analisadas com o mesmo afinco dedicado àquelas de estabilização, e não deixadas de lado como ocorre nas discussões econômicas brasileiras há  algumas décadas. As primeiras abarcariam os objetivos presumidos de prover  condições econômicas adequadas ao florescimento das atividades  empresariais percebidas de forma abstrata, enquanto que as políticas de  desenvolvimento produtivo elegem objetivamente elementos econômicos e  sociais estruturais, como, por exemplo, ter uma renda melhor distribuída,  empregos de melhor qualidade e remuneração, uma indústria mais produtiva e  menos poluente, entre outros. A despeito da importância fundamental de se ter  um “ambiente de negócios” adequado, os instrumentos utilizados para alcançar  tal panorama não podem minar as condições de florescimento dos objetivos  buscados pelas políticas de desenvolvimento produtivo. É necessário ter uma  coordenação entre estes dois grupos de políticas. Diversos pesquisadores que  têm seus campos de estudos voltados para a economia brasileira, se  debruçaram sobre este aspecto, concluindo que o manuseio dos instrumentos  de estabilização (principalmente o da taxa de juros) têm dificultado o alcance  dos objetivos de desenvolvimento produtivo [2], [3]. 

Para o leitor acostumado aos termos das discussões econômicas  presentes nas mídias empresariais de maior alcance, o cardápio de  instrumentos das políticas de desenvolvimento produtivo pode parecer  estranho: política de comércio exterior, de tecnologia e inovação, políticas  setoriais para qualificar setores específicos (agricultura, indústria e serviços),  dentre outras. Estes instrumentos têm o poder de impulsionar nossa estrutura  produtiva e empregatícia, quando utilizados de forma a cumprir prazos e metas  pré-estabelecidas e supervisionados de forma adequada. As atenções destas  políticas, portanto, são mais variadas do que as das políticas de estabilização,  estas preocupadas quase que unicamente com a contabilidade pública. O que se produz e o que se exporta, qual o perfil do emprego que geramos, quão  poluente é o nosso sistema produtivo, são algumas das preocupações que, em  tese, políticas de desenvolvimento produtivo devem endereçar.  

A situação trazida pelas chuvas no Rio Grande do Sul enseja uma  readequação da forma como debatemos as preocupações da “ciência  econômica” no Brasil. O debate necessitará incluir, pela força e frequência dos  choques climáticos prometidos, elementos que andaram desaparecidos nos  últimos tempos, vinculados sobretudo à necessidade de investimentos robustos em infraestrutura (a Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de  Base aponta um hiato de investimentos em infraestrutura da ordem de 2,32% do PIB em 2023) e à capacidade de planejamento e execução dos entes  públicos, de forma a não empreender obras do tipo “tapa-buraco”, mas de nos  adaptarmos às exigências climáticas. Devemos inverter a lógica apontada em  análise recente feita pelo Tribunal de Contas da União de que os gastos  públicos nos últimos 10 anos com defesa civil destinado à recuperação dos desastres equivalem a mais do que o dobro dos recursos destinados à  prevenção. Manifesto recém-lançado pelos professores da Faculdade de  Ciências Econômicas da UFRGS oferece um bom compilado de ações para lidarmos com os novos tempos.  

Mas afinal, quanto vai custar a reconstrução e adaptação do Rio Grande do  Sul, e do Brasil como um todo? A preocupação dos técnicos envolvidos, neste  momento, não deve ser de fazer o possível dentro de um dado limite  orçamentário, mas sim de fazer o necessário para reconstrução-adaptada do  Estado. Estabelecer uma institucionalidade funcional entre os três níveis de  governo, de forma a alcançar uma harmonia decisória, pautada no  planejamento elaborado por equipes técnicas capazes de formular planos  social, econômico e ambientalmente compromissados, é fundamental. Haverá  múltiplos desafios ao longo do trajeto, mas que, dotados de tamanha magnitude e importância, deverão passar por cima das barreiras postas pelos  negacionistas climáticos e por aqueles beneficiados por modelos  socioeconômicos que não mais se sustentam. Aqui no Estado dispomos de  uma ampla rede de pesquisadores, vinculados a instituições universitárias  públicas, privadas e comunitárias, inclusive localizadas em municípios afetados  pelos eventos atuais, e que possuem consolidado conhecimento acerca da  realidade de suas localidades. Que a nossa classe política saiba utilizar esse  potencial existente, para que, com políticas adequadas, possamos sair dessa  situação ainda mais fortes. 

Notas

[1] Em análise preliminar divulgada pelo governo do Estado do RS, estima-se que o custo de  reconstrução está na ordem de R$ 19 bilhões 

[2] Nassif, A.; Bresser-Pereira, L.; Feijó, C. “The case for reindustrialisation in developing countries:  towards the connection between the macroeconomic regime and the industrial policy in Brazil”.  Cambridge Journal of Economics 2018, v. 42, p. 355-381. 

[3] Terra, F. ; Ferrari-Filho, F. “Novo consenso macroeconômico, estagnação econômica e  desindustrialização: o caso Brasileiro”. In: Industrialização e Desindustrialização no Brasil – teorias, evidências e implicações de política (2024) (Orgs. Araújo, E. & Feijó, C.). Ed. Appris.

(*) Doutorando em Economia do  Desenvolvimento na UFRGS

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