Opinião
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10 de maio de 2024
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14:29

A reconstrução do RS: uma contribuição da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS

Foto: Ricardo Stuckert / PR
Foto: Ricardo Stuckert / PR

Maria de Lurdes Furno da Silva e André Moreira Cunha (*)

Mortes, sofrimento das famílias, descontinuidade na oferta de serviços públicos essenciais, destruição do patrimônio de empresas, pessoas e da infraestrutura. São ainda incomensuráveis os efeitos da crise em curso sobre a vida de milhões de sul-rio-grandenses. O que estamos presenciando no RS não é apenas uma calamidade pública, mas a concretização do cenário de multiplicação de eventos extremos por conta das mudanças climáticas. A responsabilidade por ela deve ser compartilhada pela maioria da sociedade, aqui e no mundo, que segue ignorando os avisos da comunidade científica e de instituições oficiais, privadas e não governamentais, que se debruçam sobre este tema. 

Da mesma forma, as elites econômicas e políticas minimizam tais alertas e continuam a tomar decisões que comprometem a nossa segurança coletiva. O uso irracional dos recursos naturais, o comprometimento de biomas importantes e a manutenção de padrões de produção e de consumo insustentáveis seguirão comprometendo vidas e, também, os próprios empreendimentos privados.

No momento, o peso deste drama coletivo recaí sobre o estado mais meridional do país. Nada impede o que o mesmo ocorra em outros lugares, com igual ou maior contundência, quer seja pelo excesso de chuvas, quer seja pela estiagem, as queimadas sem controle, os ventos muito acima do normal e assim por diante. 

Nas estimativas da OCDE, a incidência de episódios extremos do clima se multiplicou por quatro vezes na década de 2010, em comparação aos anos 1970. O Fórum Econômico Mundial estima em US$ 1,5 trilhão as perdas econômicas desta triste realidade. Os relatórios do Painel Intergovernamental paras as Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) detalham os riscos da falta de contundência na adoção de políticas públicas e ações privadas capazes de mitigar a trajetória acelerada de deterioração do meio ambiente. 

Estudos da Agência Internacional de Energia (IEA), das Nações Unidas e de consultorias privadas apontam que, para neutralizar a emissão de carbono até 2050, os esforços adicionais de investimentos seriam da ordem de US$ 3 trilhões a US$ 4 trilhões por ano até 2030. Quando estas estimativas foram feitas, equivaliam a algo entre 3 p.p. e 4 p.p. do produto interno bruto (PIB) mundial.  Tais esforços são necessários para a geração de energias renováveis e o aumento na eficiência do uso da energia pelas empresas e famílias, a adaptação das infraestruturas sociais (sistemas de transporte, distribuição de energia, comunicações, saneamento, prédios e aparelhos públicos em geral, e assim por diante) e a preservação e/ou recuperação de recursos hídricos e dos ecossistemas comprometidos.

Aplicando tais parâmetros para o Brasil, estimamos a necessidade de volumes adicionais de investimento para ampliar a resiliência às crises climáticas entre R$ 300 bilhões e R$ 400 bilhões/ano. No RS, seriam de R$ 22 bilhões a R$ 30 bilhões, dos quais entre R$ 6,0 bilhões e R$ 8,5 bilhões vindos do setor público, com os restantes R$ 16 bilhões a R$ 21,5 bilhões sob a responsabilidade do setor privado. Este, por sua vez, precisará de fontes estáveis e a custos razoáveis para o financiamento de longo prazo. É importante lembrar que tais estimativas não levam em contar a reconstrução da infraestrutura destruída pelas enchentes de maio de 2024.

Com a prolongada crise fiscal do Estado, a capacidade de investimento do setor público tornou-se muito baixa. Na média dos anos 2015-2022, o volume de recursos do Tesouro Estadual alocados na preservação do estoque de capital do RS ficou um pouco abaixo de R$ 1 bilhão/ano (valores a preços médios de 2022), o que equivale a metade dos investimentos públicos dos estados vizinhos na Região Sul. Sem a imediata reestruturação da dívida estadual junto à União, será impossível recuperar o estado e avançar na preparação do futuro.

No documento “A Reconstrução do Rio Grande do Sul” oferecemos um conjunto articulado de sugestões, as quais deverão passar pelo crivo do debate público, da análise de especialistas e das decisões parlamentares. Não temos a pretensão de oferecer um pacote pronto, fechado e detalhado. Isso é impossível neste momento tão difícil, em que vidas estão sendo perdidas ou ameaçadas. Ainda assim, colocamos à disposição da sociedade o acúmulo de conhecimentos e de análises sobre as economias sul-rio-grandense, nacional e internacional, nas mais diversas subáreas de conhecimento que compõem o pool de recursos humanos desta centenária instituição.

Além da renegociação da dívida estadual, sugerimos a criação de um Fundo Constitucional da Região Sul para a Mitigação de Riscos Climáticos (FUNDOSUL), similar aos fundos constitucionais já existentes para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Seu mandato teria esta finalidade específica e não a redução de assimetrias no desenvolvimento regional, como os já existentes. O FUNDOSUL seria gerido pelo BRDE, instituição financeira que opera no RS, SC, PR e MS, cujas origens remontam ao trabalho da FCE-UFRGS. O novo Fundo poderia ser utilizado para atender as elevadas demandas por crédito que advirão dos setores privado e público no processo de reconstrução.

Fala-se na necessidade de um “Plano Marshall” para o RS. Essa é uma boa analogia. Aquela iniciativa dos Estado Unidos gerou financiamentos que hoje seriam da ordem de US$ 1,3 trilhão, entre os anos de 1948-1951, e que foram fundamentais para a recuperação de vários países destruídos pela Segunda Grande Guerra Mundial. Todavia, o que pouco se discute é que o plano nasceu da subestimação dos custos da reconstrução, assim como se fundamentou na estratégia política de longo prazo de conter o que se considerava a ameaça da expansão soviética na Europa e na Ásia. Ademais, para viabilizá-lo foi criado o Comitê Europeu de Cooperação Econômica, posteriormente transformado na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Como no caso do Plano Marshall, além de dinheiro, será necessário mobilizar um corpo técnico capaz de elaborar informações, análises econômicas e projetos para a melhor alocação dos recursos. O estado do RS, por força de diversas estratégias de reestruturação do setor público, extinguiu Fundações de extrema importância para a realização deste trabalho. Neste sentido, sugerimos a criação da Fundação de Estudos Estratégicos do Rio Grande do Sul (FEE-RS), que será o órgão de estado responsável desenvolver as atividades de geração de informações estatísticas e análises estratégicas para a condução das políticas públicas. Ela reuniria, em um primeiro momento, servidores das distintas Fundações, que seguem em atividade no serviço público, sem pressões adicionais sobre o orçamento estadual. Ela atuaria em articulação com as universidades gaúchas, que são expoentes nacionais na produção de conhecimento científico em todas as áreas. 

Esta estrutura contribuiria imediatamente com uma visão sistêmica para as diversas ações e estratégias voltadas à reconstrução, permitindo uma continuidade no processo que transcenda os ciclos políticos. Outras medidas são delineadas, que perpassam a reestruturação de dívidas privadas, a revisão de medidas legislativas contrárias à preservação do meio ambiente e o redesenho de instrumentos já existentes. 

Entendemos que o nosso papel enquanto universidade é estimular a reflexão e o debate. Não é possível modificar o passado, por mais que possamos reunir evidências de que este ou aquele caminho poderia ter gerado resultados melhores. O importante agora é reconstruir. Olhar para a frente. Ainda assim, torna-se inequívoco constatar que diante de um alerta tão contundente da Natureza, não se poderá mais clamar inocência no futuro por conta de decisões baseadas em interesses menores, políticos ou econômicos. Já não temos a alternativa de escolher o status quo

Maria de Lurdes Furno da Silva – Diretora da FCE-UFRGS

André Moreira Cunha – Vice-Diretor da FCE-UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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