Opinião
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9 de abril de 2024
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06:52

Os estupradores e seus cúmplices (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

Nenhum estuprador merece empatia. Simples assim: nenhum. Resta-lhes a aplicação implacável da Lei. 

Mas, por que aquilo que deveria ser óbvio precisa ser dito? Ora, frequentemente, o machismo reinante na nossa perversa lógica patriarcal – às vezes, de forma sutil; outras, através de argumentos vergonhosos – minimiza, relativiza e, até mesmo, nega a culpa do agressor pela violência abjeta cometida contra a vítima. Basta estar em uma roda de homens para ouvir alguém dizer algo do tipo: “o cara pode fazer loucuras de tanto tesão”, “muitas vezes, elas provocam e, na hora H, caem fora”, “também, naquele lugar, com aquela roupa”, ou, ainda, “primeiro ela consentiu; agora, faz essa denúncia: deve querer fama ou algum dinheiro”. 

Como já abordei em outra coluna, a tese do suposto “consentimento” é comum entre abusadores e pedófilos. Desse modo, responsabilizar as vítimas é uma estratégia de novamente retirar a voz dessas pessoas tomadas como objetos por aqueles que insistem em colocá-las nesse lugar. Além de tentar invalidar a palavra da mulher agredida, impõem-se, aí, o gozo de dominação de um discurso por meio do qual o abusador, perversamente, requer para si o lugar de vítima. 

Ao se apropriar violentamente da mulher, tomando-a como coisa, o estuprador busca legislar sobre o seu corpo, destituindo-a de sua condição de sujeito de desejo e de direitos. Logo, não é plausível qualquer tipo de relativização do caráter criminoso dessa barbárie, pois minimizar tamanha violência torna qualquer um cúmplice da lógica dos estupradores. Como é de conhecimento daqueles que pesquisam o tema, o estuprador tende a repetir seu ato, desprezando, dessa forma, reiteradas vezes, a condição humana de suas vítimas. Vale lembrar: o estupro é um crime de repetição.

Pode-se reduzir a compressão desse crime a questões meramente psicopatológicas, em função da psicopatia do abusador e de suas possíveis taras sexuais. No entanto, trata-se de algo mais complexo. Basta reconhecer o quanto é comum – desde argumentos lenientes com o macho estuprador, até a complexa lógica de poder inerente ao Estado opressor – o discurso capitalista que insiste em destituir a potência das mulheres. 

Como mencionei antes, por vezes, essa destituição ocorre de maneira explícita, outras, embalsamadas em forma de enigma, a exemplo de um questionamento que recentemente ouvi de um homem num debate: “Doutor, como explicar que jogadores como Daniel Alves e Robinho caíram nisso? Justo eles, pois poderiam ter as mulheres que quisessem. Não entendo. É burrice? As Marias chuteiras estão por aí, sempre assediando os famosos e eles sabem disso”. Vejam, nesse caso, a preocupação não está do lado das mulheres violentadas, mesmo porque, os estupradores teriam sido vítimas de suposta queda ou, ainda, de ardilosa armadilha (“como caíram nisso?”). Em nenhum momento, foi enunciado nesse questionamento: “eles cometeram um crime”. Assim, na verdade, a pergunta misógina, camuflada de ingenuidade, busca do “especialista” alguma resposta para se entender o que cada homem poderia ser capaz de fazer, inclusive ele próprio, caso tivesse os mesmos privilégios. Se essa hipótese faz algum sentido, torna-se fácil compreender a tendência masculina em sempre defender os manos da matilha perpetuando, dessa maneira, suas raivas das mulheres.

Na visão desse cidadão, um predador com dinheiro deve gozar do direito de usufruir de todas as mulheres. Logo, em sua opinião, os abusadores teriam apenas sido pouco inteligentes, tendo, talvez, pesado um pouquinho a mão, mas, na verdade, foram tolos por terem “caído numa cilada”. Poderíamos supor que sua arrogância e sua indiferença não lhe permitem reconhecer que, antes mesmo dos cinco anos, o menininho, advertido, já deveria ter compreendido: jamais ele poderá desejar todas as mulheres. Sigmund Freud chamou isso de castração. No entanto, é preciso admitir, seria exigir demais evocar o tema da lei, do simbólico e dos limites do gozo a quem é incapaz de reconhecer a diferença e aceitar: NÃO é NÃO. 

Apesar dessa importante observação freudiana, ela não é suficiente para se avançar nessa questão. Faz-se necessário colocar em discussão os mecanismos sociais que autorizam, senão legitimam, esse tipo de discurso responsável por sustentar uma política machista de gestão e controle do corpo da mulher. Essas falas estão disseminadas nas rodas entre amigos, nas discussões familiares, nas relações de trabalho e, inclusive, nas instituições de ensino. Em 2021, em aula virtual na faculdade de União da Vitória (PR), no curso de Engenharia da Produção do Centro Universitário Vale do Iguaçu, um professor, que fora gravado pelos alunos, disse: “Desculpe, meninas, sei que é chulo o que eu vou dizer, mas é aquele ditado: se o estupro é inevitável e iminente, relaxe e aproveite” [1]. Ele teria feito esse comentário enquanto falava sobre casos em que empresas precisam demitir pessoas. A gravação viralizou nas redes sociais, de modo que, diante da pressão, especialmente a dos movimentos feministas, o professor foi demitido. 

Embora as palavras desse professor em sala de aula sejam chocantes, elas apenas revelam a violência que, cotidianamente, as mulheres sofrem, através de “piadinhas” ou, até mesmo, de pedidos cínicos de desculpas. Deve-se observar, aí, o fato de “a cultura do estupro” estar instituída com naturalidade impressionante. Nessa perspectiva, os trabalhos da antropóloga argentina Rita Segato [2] trazem contribuições relevantes, inclusive serviram de inspiração para o hino feminista que nasceu no Chile e, logo depois, virou fenômeno global: “O Estado opressor é um macho estuprador / O Estado opressor é um macho estuprador / O estuprador é você / O estuprador é você”. Esses versos inspiraram a música e a coreografia que denunciam: “Um estuprador no seu caminho”, promovido pelo coletivo La Tesis [3], que tomou como referência os textos de Segato. Dentre outros motivos, pelo fato de a antropóloga sustentar que os crimes sexuais contra as mulheres devem ser lidos como crimes de dominação e submissão. A autora aponta a importância de desmistificar o estuprador como aquele que praticaria a violência devido à mera busca de prazer sexual. 

Segato chama a atenção para “o mandato do estupro” vigente na lógica patriarcal. Vejamos: “O estupro é um ato moral, moralizador, e é isso que a música diz. Hoje é óbvio nas ruas do Chile que quem estupra é a autoridade, quem estupra é o sujeito moral, que o sujeito estuprador é o sujeito moral por excelência e que o estupro moraliza, ou seja, coloca a mulher em seu lugar, a apanha em seu corpo, diz a ela que, mais do que uma pessoa, ela é um corpo. O estupro não se baseia em um desejo sexual, não é a libido descontrolada de homens, não é porque sequer é um ato sexual. É um ato de poder, de dominação, é um ato político. Um ato que se apropria, controla e reduz as mulheres por meio da apreensão de sua intimidade”. 

Quando passamos a prestar atenção nos modos como o machismo se materializa, no dia a dia das falas entre homens, torna-se impossível não se chocar com o quanto a nossa misoginia pode tomar proporções revoltantes. Certa vez, um amigo me contou que, ao ir buscar a sua filha na escola (na época, ela estava com apenas cinco anos de idade), ele encontrou outro pai esperando o seu filho. Ambos chegaram um pouco antes e esperavam os seus filhos no pátio da escolinha. Eis que, num dado momento, o tal indivíduo resolveu fazer uma pergunta: “você é pai de quem?”. Meu amigo, com sua simpatia habitual, prontamente respondeu: “sou o pai da fulana”. Nesse momento, o até então desconhecido lhe disse: “no meu caso, eu sou o pai de um menino”. Logo após, ele deu uma risadinha e disse: “a diferença entre nós é que eu sou pai de um consumidor e você é pai fornecedor”. Pode? Como não se insurgir diante de tamanho absurdo? Inacreditável, pois algo que poderia se resumir ao encontro de pais indo buscar seus filhos na saída da escola, em frações de segundos, ganha contornos bárbaros. Por isso, nunca é demais lembrar: a estupidez machista pode tomar proporções inimagináveis. Felizmente, meu amigo não silenciou e respondeu: “a diferença entre nós é que você é um imbecil”. 

A misoginia é transmitida naturalmente sem pudor. Ela está instituída entre os homens que criam seus filhos como predadores e olham as mulheres, ou melhor, as meninas como objetos de consumo. Essa distopia poderia ser vista como fato isolado. Contudo, trata-se de uma realidade frequente. Nesse sentido, não é de se estranhar que alguém, após ser condenado por estupro, pague fiança de cinco milhões de reais e saia da prisão de peito estufado, caminhando firme, nariz empinado. Entretanto, para aqueles que supõem a possibilidade de triunfar fazendo o mal, o crime não é suficiente. No mesmo dia de sua saída, Daniel Alves faz uma festa para os “manos”. Eles chegam usando capuz, tentando esconder as suas caras, porém celebram o seu ídolo, são dele cúmplices. Foi na balada o estupro; eles repetem a balada no primeiro dia de liberdade e, de certo modo, nos dizem: basta ter dinheiro para estuprar, sair da cadeia e continuar a festa.

Todo aquele que minimiza o horror de um estupro e imputa, de forma indecorosa, qualquer parcela de reponsabilidade à vítima sustenta um discurso conivente com o estuprador. Portanto, os homens, ao “passarem pano” para os seus algozes de estimação, contribuem para sequestrar as vozes das mulheres vítimas de violências. Engendra-se, assim, um ato político sádico, com uma estratégia de poder e de dominação que só se mantém devido à cumplicidade de muitos.  

Enfrentar o tema do estupro e as falas que tendem a relativizar a responsabilidade tanto legal quanto moral do estuprador consiste em uma posição ética de enfrentamento das inúmeras tentativas de objetificação das mulheres, as quais, por sua vez, legitima a cultura do estupro. Logo, a aplicação da lei deve ser acompanhada de profunda reflexão sócio-cultural-educacional acerca das políticas e dos discursos misóginos em nosso país. Um começo para avançarmos nessa discussão requer que assumamos o machismo que nos habita, reconhecendo assim, as devastadoras consequências sociais de nossa indiferença e/ou conivência com os abusadores. 

[1] A esse propósito ver: Se o estupro é inevitável e iminente, relaxe e aproveite, diz professor universitário

[2] A esse respeito, ver reportagem e entrevista realizadas por Mar Pichel, em 21 de dezembro de 2019, pela BBC News mundo.

[3] Nessa mesma entrevista, o coletivo chileno Las Tesis informa que, inicialmente, a performance “Um estuprador no seu caminho” foi criada como parte de uma peça de teatro que não chegou a ser lançada. A música e a coreografia – “de autoria do coletivo interdisciplinar – [foram apresentadas] pela primeira vez em 20 de novembro nas ruas de Valparaíso, a 120 quilômetros da capital chilena, em meio a uma série de intervenções convocadas por um grupo de teatro local. Em questão de dias, a performance viralizou e se tornou um fenômeno internacional, sendo interpretada em dezenas de cidades ao redor do mundo”.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Instituto APPOA, doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS, autor dos livros: Magnólias 57 (Appris, 2024); Lacan com Hamlet e alguns outros (Escuta, 2022); Ensaio sobre as pedofilias (Escuta, 2021); Perversões: o desejo do analista em questão (Appris, 2019).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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