Opinião
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8 de abril de 2024
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17:13

Desrotulando o direito penal: vingança e chance (por João Beccon de Almeida Neto)

Foto: Arquivo EBC
Foto: Arquivo EBC

João Beccon de Almeida Neto (*)

Lupicinio Rodrigues é considerado um dos primeiros artistas a realizar músicas de dor de cotovelo. Muitas dessas obras são autobiográficas, como em Nervos de Aço, em que narra a desilusão com sua primeira noiva: “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor/Ter loucura por uma mulher/ E depois encontrar esse amor, meu senhor/ Nos braços de um tipo qualquer?” E se ainda comenta sobre a sua tristeza: “Eu não sei se o que trago no peito/ É ciúme, é despeito, amizade ou horror/ Eu só sinto é que quando a vejo/ Me dá um desejo de morte ou de dor”. Uma descrição de sentimentos intensos. Não obstante, quero ainda chamar a atenção para outra canção ainda mais viceral: Vingança, outra desilusão amorosa em que o personagem da narrativa se mostra feliz com a tristeza vivida pela ex companheira ao comentar de seu nome. Uma letra triste que encerra assim: “Ela há de rolar qual as pedras/ Que rolam na estrada/ Sem ter nunca um cantinho de seu/ Para poder descansar”. E esses sentimentos, em especial a satisfação de uma vingança ou castigo é que gostaria de me ater aqui. Soa sentimentos intimamente ligados à justiça criminal e que em razão disso nós fez desenvolver o que conhecemos hoje como processo penal: uma estrutura de normas que não tem o objetivo de ser o caminho necessário pra se chegar a condenação, mas sim está intimamente ligado ao reconhecimento de que deve ser um espaço de exercício de direito de defesa na análise do fato. Já tivemos historicamente processos de implicações de castigos e penas com o objetivo de punição é assim de espaços vingativos. Tu ter o Estado, a partir do Poder Judiciário, o papel exclusivo de aplicação de penas criminais é justamente reconhecer que o direito penal não se realiza como justiça a partir da violência ou do castigo. 

Mas assim mesmo, mesmo pensando em tudo isso é que a violência empregada como um fim em si mesmo em nada guarda relação com um critério de justiça, ainda vamos nos ver pensando em como em determinadas situações queríamos que algo acontecesse, mesmo que de forma violenta. Em quantas situações não nos vemos julgadores? A reprodução de violência estrutural em nossa sociedade tem muita relação com isso. Não é que queremos em nosso interior a justiça na forma matemática de Talião (“olho por olho, dente por dente”), mas muitas vezes ocorrem, por atitudes e pensamentos preconceituosos, e muito em relação a posição em que nós vamos ocupar. Isso me lembra muito a imagem do quadro “A volta do filho pródigo”, parábola bíblica retratada por Rembrandt. 

Narra a triste história de um filho que retorna a casa do pai após gastar todo o dinheiro recebido por este com bebidas e jogos. O filho retorna muito pobre. Com um dos pés descalços e com as roupas rotas, Rembrandt quer ilustrar como este filho passou por privações e humilhações antes de retornar a casa do pai, que o recebe com muita alegria e amor, muito embora podemos observar a figura do filho mais velho em pé ao lado claramente não aprovando as atitudes feitas pelo irmão. Rembrandt, como de costume, faz uma série de jogo de luzes e símbolos para chamar atenção para o que seria o mais importante nesta parábola. Analisando o quadro, podemos observar que a luz é toda colocada para dar destaque aos braços do pai, que acolhe o seu filho apesar de não ter seguido suas recomendações e errado na administração do dinheiro que tinha. Se olharmos mais detalhadamente neste abraço, podemos ainda observar que as mãos do pai apresentam tamanhos e traços diferenciados, como se uma das mãos do pai fosse mais feminina. Não seria um erro do seu pintor, mas uma alegoria clara da metáfora do cuidado e acolhimento, que deve ter um equilíbrio entre o que poderia ser um assistencialismo ou paternalismo e o apoio a quem necessita ter sua autonomia respeitada.

É uma metáfora e convite para o pensar a partir da alteridade. Se colocar no lugar do outro. É um convite ao questionamento de quantos de nós não se colocaria na posição de acusador ou de julgador deste irmão que volta para casa arrependido de suas atitudes. Quantos de nós não serviria no papel do irmão mais velho, distante e julgador, uma vez que entende que fez tudo que o pai pediu e ficou ao lado deste como desejado.

Nesse sentido, quero colocar como reflexão a importância de pensarmos que muitas pessoas em cumprimento de pena criminal devem ser ouvidas. Não cair no lugar de irmão mais velho e dizer o devem fazer daqui a frente, mas escutadas de fato e permitir que montem seus objetivos. Uma grande parte de nossas penitenciárias são ocupadas por pessoas de baixa escolaridade e privadas de renda. O perfil de boa parte dos crimes são patrimoniais e sem violência contra vida, de modo que também devemos cuidar em não reproduzir discursos em que tratam pessoas privadas de liberdade como um bloco monolítico e uniforme. Isso também é reprodução de violência e só reafirma um posicionamento equidistante é preconceituoso. 

(*) Advogado. Criminalista, Professor da Unipampa  (@joao_beccon)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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