Opinião
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19 de abril de 2024
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17:48

Afasta de mim esse cálice (por Marcos Rolim)

Desaparecidos da ditadura militar. Foto: Reprodução
Desaparecidos da ditadura militar. Foto: Reprodução

Marcos Rolim (*)

Há 60 anos, um golpe militar submeteu o Brasil a uma ditadura que duraria 21 anos e cuja herança está longe de ser superada. Naquele período, como ocorre em qualquer ditadura, de direita ou de esquerda, as liberdades foram suprimidas: milhares de pessoas foram perseguidas politicamente, presas, torturadas e/ou mortas. Com as garantias constitucionais suprimidas, com as organizações populares colocadas na ilegalidade, com a imprensa sob censura e com os poderes Legislativo e Judiciário dominados, o arbítrio e a violência estabeleceram a “paz dos cemitérios” e a injustiça e a mediocridade foram promovidas e enaltecidas. Longa noite.

Ainda hoje, sequer sabemos o número real dos que foram mortos pela ditadura militar. Há diferentes listas de pessoas desaparecidas, reclamadas por seus familiares a quem foi negado o direito à sepultura e à verdade, com números em torno de 400 mortos. Pesquisas mais recentes, entretanto, têm contabilizado centenas de outras mortes no campo e se estima que outras tantas possam ser contadas entre as vítimas indígenas.

Falar sobre ditadura pressupõe situar-se na defesa do ideal democrático. Afinal, se não sustentamos a democracia, se ela não é nosso objetivo, como ser coerente na crítica à ditadura? É possível e necessário que tenhamos uma postura crítica diante de qualquer regime político e as democracias contemporâneas, como a que temos no Brasil, estão cheias de imperfeições, privilégios e distorções que devem ser corrigidas. O ponto, entretanto, segue: em nome de que valores, que não os da democracia, é possível efetuar essa crítica? A questão é antiga e já foi objeto de muitos debates, mas é irresoluta para importantes partidos da esquerda que se alinham no plano internacional aos regimes autocráticos da Rússia e da China, versões liberticidas do capitalismo de Estado, e que simpatizam com ditaduras como as existentes na Venezuela, em Cuba e na Nicarágua.

O Brasil não construiu uma política pública de memória e verdade sobre as ditaduras que já tivemos. Não temos, por exemplo, museus sobre a tortura, uma prática que chegou por aqui com a colonização portuguesa, que atingiu dramaticamente – e por mais de três séculos – as pessoas negras escravizadas e, como regra, os pobres suspeitos e que se disseminou no Estado Novo e na ditadura militar com as garantias da impunidade oferecidas pelo Poder Público. Essa conta, aliás, envolve, além das Forças Armadas, boa parte das lideranças políticas, mas também muitos magistrados, promotores, empresários e lideranças civis e religiosa, que apoiaram o golpe e prestaram serviços ao horror, inclusive no financiamento do aparato clandestino de tortura e desaparição de corpos.

Normalmente, quando uma nação transita de um Estado de exceção para um regime democrático, se estabelece o que se convencionou chamar de “Justiça de Transição”, período em que se produz a verdade jurídica sobre os crimes cometidos e se define ações de reparação e memória. Em muitas experiências, como na Argentina, os responsáveis por crimes contra a humanidade, como a tortura, são condenados a longas penas de prisão; em outras experiências, como na África do Sul pós-Apartheid, ou como na experiência recente do acordo de paz na Colômbia, anistias são produzidas mediante o reconhecimento dos crimes cometidos e o arrependimento público. O processo de transição vivido no Brasil foi feito em sentido contrário. Aqui, a Anistia foi um projeto da ditadura (aliás, aprovado com os votos contrários da oposição) cujo único sentido foi assegurar a impunidade aos torturadores, aos estupradores de presas e aos assassinos do regime, de tal modo que a verdade nunca fosse produzida. A Anistia no Brasil pretendeu assegurar o silêncio ou, como os cínicos sempre disseram, o “esquecimento”.

Violações, abusos, maldades de toda a ordem se nutrem de silêncios. As ditaduras também. Alimentamos o mal quando a palavra não é dita ou quando as palavras mesmo perdem o sentido. O não dito é o resultado do medo ou do cálculo; é, por isso, frequentemente covardia ou conivência. Assim, importa falar, sempre. Lula escolheu não falar sobre a ditadura e até justificou dizendo que “não quer mexer com o passado”. Quem acha que a opção é postura nova, resultado da atual “correlação de forças”, não sabe da missa a metade. Houve quem se apressasse a justificar o presidente. Sempre há. O silêncio do Estado brasileiro, sob o comando de uma liderança tida como “de esquerda”, entretanto, assegura nova derrota moral ao campo democrático, exatamente porque, como o assinalou Faulkner, o passado sequer é passado. Com o silêncio oficial, aliás, se alarga o campo para o negacionismo sobre a própria ditadura, tema ao qual a extrema direita tem se dedicado muito.  Ao contrário do que pensa Lula, falar sobre a ditadura é mexer no futuro para que nunca mais. Calar cobra um preço muito alto; sempre.

(*) Marcos Rolim é Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016).

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