Opinião
|
12 de março de 2024
|
07:22

‘Hard times’: despedida em três tempos (Coluna da APPOA)

Montagem: Acervo pessoal
Montagem: Acervo pessoal

Robson de Freitas Pereira (*)

My mama told me/before she passed away/ said, son when I’m gone/don’t forget to pray/ ‘cause there’ll be hard times/ hard times/  who knows better than I” – Ray Charles

No início dos anos 80 eu começava minhas incursões por Buenos Aires. Estava hospedado na casa de meu mestre e amigo Miguel Massolo. Dormia no quarto dos guris – Mariano e Sebastian que num gesto de desprendimento e carinho me cediam espaço. Em alguns momentos, no intervalo das caminhadas pelos bairros, conversava com Miguel, pesquisava sua biblioteca e garimpava na discoteca de vinis (sim vinil; cds e streaming ainda estavam distantes). Um destes discos era uma coletânea de Ray Charles [1] tocando arranjos de composições próprias e de outros. Somente instrumental, não cantava. Miguel dizia que esta fase instrumental de Ray mostrava às novas gerações a genialidade dele. Primeira música do lado A: Hard Times. Introdução de piano, com sax alto maravilhoso de David ‘fathead” Newman atacando o fraseado principal e o solo a seguir. Fui capturado. A música não saiu mais da minha memória. 

Meses depois, voltando ao Brasil, procurei o disco na Modern Sound, no Rio de Janeiro. A loja com maior repertório de discos importados, naquela época. Não encontrei a coletânea. Porém, havia um álbum de Ray Charles, onde Hard Times figurava [2]. Pedi para escutar e era uma canção muito diferente. Agora um blues em andamento clássico, com letra e voz de Ray iniciando com o verso citado acima; “my mama told me/before she passed away”. Levei o disco mesmo assim. Custou minhas economias, mas valia a pena. 

Passa o tempo e, em 1989, Eric Clapton lança seu trabalho Journeyman. Qual não foi minha surpresa quando vejo no repertório o título; Hard Times [3], com autoria de Ray. Lindo blues, com o mesmo andamento do original. Mudando somente os instrumentos do solo: agora a guitarra preponderava. Porém, numa homenagem explícita, na sessão de sopros estavam lá David Newman e Hank Crawford no tenor e alto. A partir daí, fiquei marcado pelas três versões. Mesmo nome, duas músicas diferentes, diferentes formas de blues. Tanto que gravei fitas cassetes, cds para presentear os amigos, ou mesmo para escutar no carro. Agora, já nos tempos de spotify, até fiz uma playlist incluindo as (três) versões, o que me ajudou a descobrir que a música que eu escutara no início dos anos 80 era uma parceria de Ray com David “fathead” Newman, apresentando o primeiro disco solo de Newman. O arranjo era de Hank Crawford e a autoria da composição de Paul Mitchell [4].

Este ano, no início de março, os versos da letra voltaram com força. Minha mãe se foi, depois de uma temporada no hospital em virtude de uma série de fragilidades. Soube que o fim estava chegando quando ela teve uma isquemia e perdeu a fala. Seu principal instrumento, sua força de expressão vital; pois havia algum tempo que sofrendo de artrose-reumática foi perdendo a mobilidade e até boa parte da motricidade fina. Mas gostava muito de conversar e sempre interessada no interlocutor. Quando sua voz se foi, o fim estava próximo. Ainda bem que conseguimos chegar a tempo de passar com ela a maior parte do dia. Ao anoitecer, fechou os olhos que mantivera abertos e atentos todo o dia e se foi serenamente. “One of these days/there´ll be no more sorrow/when I pass away”.

Na manhã em que fomos buscar suas cinzas para entregá-las ao mar, os versos de Hard Times reapareciam insistentemente. Naquela madrugada, antes de ir ao crematório, fiz um sonho: “tinha que ler uma página de um livro e na hora da leitura, perdia a página. A sequência de numeração das páginas estava desencontrada, aleatória. Eu já tinha lido antes a mesma página, sabia do que se tratava, mas agora não a encontrava. O livro se confundia com um caderno onde estavam notas e papéis colados. Me sentia pressionado, fui ficando angustiado e no ápice do desespero acordei”. Havia cancelado uma palestra que aconteceria naquele mesmo dia. Afinal, fazer o ritual, junto com pessoas amadas, dar um espaço simbólico a despedida era mais importante. 

Freud dizia que sentir a perda do ente querido, o pesar pela falta do objeto era a expressão inevitável de lidar com esta despedida; a fim de que “a sombra do objeto, não ocupasse permanentemente o espaço do Eu”, nos transformando em melancólicos. Onde há luto, a melancolia pode ir embora. Precisa tempo.

Uma nova página começava a ser escrita, precisava reconhecer as letras com as quais se organizava a nova escrita e leitura. A música, a literatura, ou mesmo os detalhes cotidianos ajudam e performatizam possibilidade de escutar a presença de uma ausência. Dentre os inúmeros detalhes, fragmentos, lembro quando ela me “ensinou” a andar de bicicleta. Depois de um tempo amparado, deu o empurrão necessário para que eu pudesse vencer o medo, sair pedalando e me equilibrando em duas rodas. Sabemos que com a despedida, se atualiza, se renova a relação com um objeto desde sempre perdido e irrepresentável. Há que buscar, na própria voz, uma “reza forte” para encontrar suas expressões próximas e íntimas. Sempre com ajuda da música, dos amigos; pois como diz o Samba da Benção; “é melhor ser alegre que ser triste/… pois prá fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza/senão, não se faz um samba não”.

Notas

[1] Pode ser escutado neste endereço.

[2] Pode ser escutado neste endereço

[3] Pode ser escutado aqui

[4] Neste link , é possível assistir Paul Mitchel trio interpretando sua música.

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora