Opinião
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6 de março de 2024
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09:45

Dias perfeitos – ainda sobre os anjos de Wim Wenders (Coluna da APPOA)

Cena do filme
Cena do filme "Asas do Desejo". Foto: Divulgação

Manuela Sampaio de Mattos (*)

Em 1987, após oito anos residindo nos Estados Unidos, Wim Wenders voltou a morar na Alemanha porque, em suas palavras, passou a sentir saudade de sua língua materna. Entendeu essa mensagem quando começou a sonhar em inglês e percebeu que isso não estava sendo bom para ele. No retorno ao seu país, quis fazer um filme em Berlim, pois para ele esta era a cidade mais próxima de seu coração. À época, andando pela Berlim murada e acompanhado das leituras de Rilke, via anjos em todos os lugares. A partir daí foi nascendo a ideia de filmar uma história sobre anjos que também pudesse contar da história de Berlim, o que veio a se concretizar em seu brilhante filme “Asas do Desejo” (Der Himmel über Berlin).

Wenders comentou certa vez em uma entrevista que o “Angelus Novus” de Paul Klee, o anjo da história conforme Walter Benjamin se referiu ao desenho na nona teste sobre o conceito de história, acabou influenciando a própria concepção de “Asas do Desejo”. Foi o que levou o diretor a acreditar na possibilidade de fazer um filme sobre anjos. A capa do roteiro inclusive tinha a imagem do desenho de Paul Klee. Neste filme belíssimo, alçado a um clássico do cinema por diversos motivos, mas também por continuar falando muito à contemporaneidade 37 anos depois de seu lançamento, os personagens anjos-da-guarda vagueiam pela cidade de Berlim escutando e velando os habitantes de uma cidade dividida, capital de duas Alemanhas. As imagens em preto e branco nos conduzem até o momento em que um dos protagonistas anjo, ao se ver tomado de amor por uma trapezista, escolhe tornar-se humano e passa a ver o mundo em cores.

Dentre tantas temáticas presentes em “Asas do Desejo”, destacam-se as perguntas perenes que envolvem a existência e que motivam a história do pensamento, das artes, das religiões, da política. O que significa ser humano? Quais as possibilidades de narrar diante das ruínas do mundo? Quais as possibilidades de amar? Com que grau de seriedade devemos encarar as tragédias humanas? Personagens metade humanos, metade anjos, podem expressar e até mesmo brincar com essas questões, conforme explica o diretor, buscando os fios que conectam as singularidades que compõem uma coletividade.

Interessante notar que esses personagens habitam posições importantes sobretudo para nós analistas, já que procuram se situar a uma certa distância, enfrentando os desconfortos do silêncio para poderem escutar e olhar desde um outro lugar, quem sabe de um lugar capaz de abrigar a função de articulação entre mundos distintos, entre distintas formas de ser e de amar.

O último filme de Wenders, “Dias Perfeitos”, também parece ser um filme sobre anjos. O diretor foi convidado pela equipe “The Tokyo Toilet” para fazer um documentário a respeito da renovação arquitetônica de 17 banheiros públicos no distrito de Shibuya, em Tóquio, capital do Japão. Para retratar esse projeto arquitetônico, Wenders se distanciou do documentário, optando por filmar uma ficção que pudesse contar a história de alguém que simbolizasse a ideia de bem comum. Desse contexto nasceu o silencioso personagem Hirayama, não apenas um exímio limpador de banheiros públicos, mas um verdadeiro zelador do espaço público – outro anjo-da-guarda de Wim Wenders.

A dedicação do protagonista na limpeza dos banheiros, seus gestos repetitivos e metódicos na organização de sua rotina e seu silêncio poderiam nos introduzir em um cenário de isolamento sintomático, quadro tão presente na contemporaneidade. Entretanto, o filme nos permite conhecer, através desse anjo-coletor-colecionador-de-restos-da-história, uma outra forma de habitar a linguagem, uma forma silenciosa e profundamente expressiva de existir, justamente por enaltecer aquilo que diz respeito ao comum tanto no que se refere ao simples, quanto ao que se compartilha.

Suas pequenas alegrias são também as nossas em qualquer lugar do mundo: colocar as músicas favoritas para acompanhar a jornada, poder ajudar uma criança, vê-la se localizar, atravessar a rua e a vida, sorrir para alguém, receber um sorriso, tomar um banho, comer uma boa comida, ler um livro, ser lembrado, sonhar, buscar as imagens do sonho, os jogos de luz e sombra, brincar com um desconhecido, envergonhar-se, apaixonar-se, etc. As poucas palavras do personagem dão ainda mais ênfase à sua forma de existir, intimamente conectada com a coletividade e o comum não só em uma cidade específica, mas no mundo.

O título “Dias Perfeitos” faz referência explícita à música “Perfect day”, de Lou Reed, que também integra a trilha sonora do filme. O rock sempre foi uma admitida influência na obra de Wenders, mas especialmente a banda The Velvet Underground. Lou Reed, o cantor da banda, inclusive participou como ator em outros filmes do diretor. Aos 78 anos, Wenders faz essa grande homenagem a Lou Reed, que nos deixou em 2013. O filme parece ser sobre tantas outras coisas ao mesmo tempo, mas me toca especialmente por poder ser lido como um filme sobre envelhecer jogando o jogo da velha, sobre fazer cinema, sobre envelhecer fazendo cinema e poder continuar transmitindo o amor pelo fazer que perscruta aquilo que faz contato, que faz sentir a humanidade a partir do outro.

Wim Wenders nos presenteia com essa narrativa aberta a múltiplas interpretações, fazendo-nos ainda poder esperançar por uma vida com dias ordinariamente perfeitos, sem crianças morrendo de fome devido aos desvarios da humanidade e ao absurdo da guerra.

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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