Opinião
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7 de fevereiro de 2024
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10:33

Monstro sagrado e o restabelecimento de verdades monstruosas (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Alfredo Gil (*)

Gérard Depardieu, ícone do cinema francês e internacional, vem sendo acusado de estupro e de outras agressões sexuais. Se a primeira acusação formal data de 2018, desde então, várias outras se acrescentaram. Porém, foi somente em dezembro passado, após a difusão de uma filmagem feita pelo escritor Yann Moix, que acompanha o ator numa viagem à Coreia do Norte, que sua obscenidade passou a tornar-se insuportável. Assiste-se a um Depardieu depravado se divertindo com seus próprios gracejos pedófilos, em público, e com outros tratamentos obscenos sem filtro. A quem interessar, é simples, busque no google: depardieu coreia do norte. E, para o documentário, digite Complément d’Enquète. 

Infelizmente, Depardieu é mais um caso exemplar de um laxismo absoluto mantenedor de uma prática de poder sobre os corpos das mulheres, que estariam à disposição para saciar as necessidades deste tipo de predador, e, cuja única condição para acessar é que estejam a seu alcance. A possibilidade de apanhá-los é a confirmação de que eles estão à disposição e nada pode proibi-los nem inibir sua ação. A formulação que melhor traduz uma tal permissividade é de seus amigos e colegas. Ela é simples e curta: “pois é, Gérard é assim…”, acrescentam alguns “rsrsrs” de canto de boca aqueles que reconhecem, banalmente, o estilo do “monstro sagrado”, sem que as consequências na vida das atrizes ou profissionais da equipe de filmagem que cruzaram por seu caminho sejam qualificadas de monstruosas.      

Mas laxismo do quê, de quem? Antes de tentar responder, podemos lembrar que talvez tenhamos entrado num momento histórico em que tais atuações abusivas são intoleráveis. Não estamos diante de uma situação em que se descobrem assédios velados ao público. Muito pelo contrário, tais atitudes eram praticadas diante de todos. Porém, o “Gérard é assim…” não passa mais após MeToo, tornou-se, finalmente, transgressivo, e por conseguinte condenável. Os pedidos delas, das vítimas, de ajuda ou de justiça, não aguardaram 2018. O caminho histórico é longo e árduo para que o que é notório seja, finalmente, admitido publicamente como inadmissível, para que o grito seja ouvido como pedido de ajuda e sinal de dor. Para tanto, não se pode esquecer ou parar de não querer ver que o impune pode ser exercido livremente com a conivência de todos.  

Ora, as consequências de tais atos, que devem ser qualificados de traumáticos, são particularmente desnorteantes quando as vítimas são menores no momento dos acontecimentos. No meio artístico francês, a lista dos nominados mais recentes vem crescendo: Benoit Jacquot (cinema), Gabriel Matzneff (literatura), Philippe Caubère (teatro). Nestes casos, a subjugação é tão mais forte na medida em que a notoriedade dos envolvidos potencializa a idealização das adolescentes submetidas em questão.

Aqui um mecanismo complexo teria que ser explicitado, não sobre a modalidade de recusa do abuso sexual – envolto de uma idealização amorosa, mas do restabelecimento da verdade do que aconteceu. Um tal mecanismo impõe violentamente um rearranjo psíquico entre o acontecimento vivido e a sua rememoração, em outros termos, e mais precisamente, revela a potência da rememoração, que retorna como um bumerangue, provocando uma alteração radical no sentido do que foi vivido. Ele nos ensina que a história, seja pessoal ou coletiva, não é redutível a um simples alinhamento de fatos imutáveis. O presente se desagrega na medida em que o sujeito é invadido por um passado no qual ele não se reconhece mais. Recordando, a vítima depara-se com sua própria posição subjetiva na relação pela qual estava tomada, e com as condições implícitas que sustentavam a manobra: o impacto traumático deve-se à descoberta de que ela havia sido instrumentalizada a serviço da potência e gozo dos, digamos, manipuladores. É neste sentido que a história não pode ser concebida como simples estabelecimento de fatos. Assim, o deslize das lembranças do que foi vivido, ao mesmo tempo que atualiza o passado, altera a realidade que, a partir de então, toma valor de acontecimento traumático, modificando a economia subjetiva daquela que descobre ter sido objeto do capricho de um tempo. Mais uma vez, a ilusão do amor sendo o ingrediente principal da união nos exemplos dados acima, as adolescentes, subjugadas diante de seus mestres da arte, e, muitas vezes, com o aval dos seus próprios pais, não podiam duvidar do lugar de exceção que ocupavam e do privilégio do que viviam com estes senhores, de 30 a 45 anos mais velhos do que elas com seus 14 anos. Tais observações podem ajudar na compreensão daqueles que se perguntam, ou perguntam às vítimas: “mas por que somente agora decides falar?” 

Passado o encanto, quando percebem que elas eram só mais uma entre outras, entram numa fase de perda de identidade, anorexia e depressão reacional profunda. Uma tal sintomatologia, não exaustiva, só cede ao preço de uma amputação psíquica garantindo a latência desta época na qual espelharam um sonho que termina em pesadelo, condição para que possam tornarem-se mulheres. Importante assinalar que algumas recuperam o bumerangue evocado anteriormente, observando e se projetando em suas próprias filhas na idade que eram as suas quando tais frequentações iniciaram.

Para concluir, talvez seja justo dar a palavra a duas dentre algumas celebridades acusadas. Ela dá o tom do uso que fazem das adolescentes que deles se aproximam.   

Benoit Jacquot responde, em 2011, à questão: então, era claramente uma transgressão? 

Sim, trata-se evidentemente de uma transgressão… é proibido, em princípio, uma menina como ela, que tinha 15 anos (14 na verdade), e eu com 40. Eu não tinha direito. Mas, para isso ela não estava nem aí, e dizia mesmo que a excitava. 

Philippe Caubère, o Molière do filme da Ariane Mnouchkine, admite ter tido relações aos 61 anos com uma menina de 15 que o considerava como “seu pai espiritual do teatro”. Nas trocas de mensagens, reveladas na semana passada pelo jornal Le Monde, ele assina “teu papai imaginário”, a partir do momento em que sua presa já havia caído na armadilha, e elogia seu modo de beijar e de realizar a felação, acrescentando, “fazes não mais como uma criança mas como uma mulher”. 

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]  

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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