Opinião
|
14 de fevereiro de 2024
|
14:46

FSM 2024: precisamos falar sobre utopia! (por Mauri Cruz)

Reprodução/Facebook
Reprodução/Facebook

Mauri Cruz (*)

Dizem que escrevemos para nós mesmos. Não nós, como indivíduos. Mas um nós histórico, que faz parte de uma geração, de um tempo. Escrevemos para pessoas que se reconhecem em símbolos, signos e significados. Isso não quer dizer que escrevemos para quem concorda com o que dizemos, mas para quem entende sobre o que estamos falando. Sem isso, sem essa identidade, não haveria comunicação entre quem escreve e quem lê.

Dito isso, escrevo aos jovens de espírito, pessoas que tem como referências a ciência das coisas e os processos históricos. Que compreendem como funciona a sociedade humana, que reconhecem os mecanismos perversos do capitalismo e que, apesar de tudo, sabem que a humanidade é, e sempre será, senhora do seu destino. Escrevo para quem crê que a história faz sentido, que enxergam os movimentos sociais e econômicos, que entendem a força transformadora da política e que sabem que sempre há um objetivo que move as pessoas. Essa crença é que dá sentido a vida. Saber que podemos mudar o estado das coisas. Que, quem criou o mundo como ele é, pode modificá-lo e construir outro mundo distinto. Que quem promove a desigualdade, pode criar uma sociedade onde caibam todos os seres em condições de dignidade. Jovens de espírito que acreditam que ali na frente, num futuro palpável, pode haver uma sociedade de iguais, livre e com todas as circunstâncias que compõe um bem viver, enfim, jovens de espírito que acreditam na utopia.

Os motivos que nos levaram a desejar um outro mundo possível nunca estiveram tão latentes. A humanidade caminha à passos largos para uma sociedade cada vez mais excludente, violenta e injusta. A supremacia do indivíduo sobre o coletivo, valores do neoliberalismo que começaram a ser difundidos em 1980, hegemonizam o pensamento global. Aliás, um pseudo individualismo, porque é a supremacia de quem detém poder econômico para comprar direitos em relação ao restante da sociedade. Esta pseudo sociedade do indivíduo, nada mais é do que a sociedade do capital, onde os direitos das pessoas e dos coletivos estão todos em suspenso. Quem tem direitos é o capital. Direito sobre a vida e a morte de tudo e de todos.

Infelizmente, parte da chamada esquerda política foi capturada para este pensamento e não consegue mais enxergar um mundo diferente, um mundo de iguais, um mundo onde o papel do estado é implementar mudanças estruturais na defesa dos direitos humanos, radicalmente democrático, que crie mecanismos de valorização do coletivo e que, por isso, deve ter poder para planejar e organizar a vida econômica, social, ambiental e política, de toda sociedade. Um estado que combata os valores neoliberais e que sustentam o pensamento capitalista. Parte da esquerda política não acredita mais na força transformadora dos movimentos sociais e tem apostado cada vez mais em alianças com o capital, caminho que leva a reformas pontuais, mas que fortalece os valores que mantém esse mundo profundamente desigual e insustentável.

Por isso, mesmo quando a esquerda assume espaços de poder em algum lugar do mundo, é difícil enxergar um fio condutor, mesmo que tênue, que indique que há um processo histórico, uma transição para mudanças capazes de subverter e superar o capitalismo. Vivemos uma era de distopia, onde o pensamento crítico está confuso e perdido, num ambiente caótico, de opressão econômica, de domínio tecnológico, de poder militar, onde as circunstâncias e as condições de vida de bilhões de pessoas são insustentáveis e intoleráveis, e onde não há liberdade de escolha e nem esperança no futuro. Em síntese, um horizonte sem utopia.

Chamo este estado de espírito de ideologia da desesperança. A crença de que a realidade presente é a única possível. De as coisas são imutáveis. A ideologia da desesperança limita nossas ações. Nos coloca submissos aos fenômenos de agora. Alimenta a resignação com o sistema político, com a divisão de classes sociais, com o poder das big techs, com o estágio do capitalismo, com o eminente colapso climático, com o sistema de (des)governança global. A descrença na mudança, base da ideologia da desesperança, faz acreditamos em medidas pontuais, meramente mitigadoras do sofrimento humanos, que não transformam tem a força capaz de transformar a realidade. A ideologia da desesperança faz acreditarmos (nos iludirmos) que o mundo como o vemos é o único mundo possível, como sempre foi e seguirá sendo assim.

Mas isso não é verdade.

Tudo o que conhecemos hoje, um dia foi uma utopia humana. O fim do absolutismo, a superação do estado feudal, a criação da república com poderes independentes e harmônicos entre si, o próprio capitalismo nasceu de uma utopia. O mundo como vemos hoje, é resultado da utopia de seres humanos como nós. Ao nos negarmos o direito de imaginar o novo, estamos desistindo de sermos seres humanos autênticos. O que nos caracteriza como sujeitos é nossa capacidade de imaginação, de criação, de invenção e, principalmente, de transformação.

Utopia não se confunde com ilusão. Ela está alicerçada numa interpretação da história, na forma como compreendemos os fenômenos humanos, no reconhecimento das possibilidades e potencialidades da tecnologia e na crença de que todos os seres humanos se movem por um instinto de sobrevivência e por seus interesses, mas que também são, em essência, inteligentes, solidários e cooperativos.

A ideologia da esperança nos ensina que que as mudanças começam no nosso imaginário, que sempre há algo a fazer, que a estruturais podem ser transformadas, que o exemplo é uma força transformadora, e que, ninguém está fora de seu tempo histórico, portanto, aquilo que tivermos capacidade de imaginar, teremos capacidade de fazer.

O FSM nasceu em 2001 motivado por uma utopia: outro mundo possível. Algumas coisas imaginadas no início, hoje são realidade. Muitas outras não. De 15 a 19 de fevereiro de 2024, em Katmandu/Nepal, movimentos sociais de vários continentes, movimentos altermundialistas e representantes da comunidade internacional estarão reunidos em mais uma edição do Fórum Social Mundial. É um momento para combater a ideologia da desesperança e reconstruir uma utopia de um outro mundo possível.

Reconstruir porque não basta reunir nossas bandeiras de luta. A nova utopia precisa estar alicerçada numa nova leitura da realidade. Ser capaz de imaginar um outro mundo realizável a partir dos fenômenos humanos que experienciamos hoje. E ser capaz de materializar os valores de uma nova civilização humana a partir dos acúmulos e consensos civilizatórios que construímos ao longo dos últimos séculos.

O fascismo simplifica a história, reproduz argumentos míticos, tenta desconectar a reflexão das classes populares sobre sua condição concreta de vida, transformando quem luta por mudanças, em inimigo. Para combater esse pensamento mítico é preciso apresentar propostas que dialoguem com um outro modo de vida, um modo capaz de superar a miséria material e a miséria de espiritual. Esse novo imaginário deve incorporar os avanços tecnológicos, as mudanças sociais, as cosmovisões que reconhecem os seres humanos como parte e fruto da mãe terra.

O desafio é imaginarmos como dever ser este outro mundo pelo qual valha a pena lutar, pelo qual valha a pena viver e, por pressuposto, valha a pena morrer.  A desesperança na mudança, gera descrença e desunião. Infelizmente, este é o momento da luta global. O FSM tem sido um espaço que busca superar a desesperança. Espero que o FSM Nepal 2024 dê pistas para que possamos reconstruir nossa utopia e com ela, nossa capacidade de mobilização e articulação. E aí, me diga, como seria este outro mundo prá você?

(*) Advogado socioambiental, especialista em direitos humanos, professor de pós-graduação em direito à cidade e mobilidade humana. Diretor do Instituto de Direitos Humanos – IDhES, Diretor da Usideias Comunicação e Pesquisa, membro da Diretoria Colegiada da Associação Brasileira em Defesa dos Direitos das Vítimas da Covid-19. Membro do Coletivo Brasileiro do FSM e do CI-FSM.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora