Opinião
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8 de fevereiro de 2024
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10:01

Elon Musk, Lula e Suplicy não estão no mesmo barco, só na mesma época (por Tarso Genro)

Foto: Roberta Aline/MDS
Foto: Roberta Aline/MDS

Tarso Genro (*)

  Nos primeiros meses do Governo Bolsonaro, o Presidente, ora em total desgraça moral e política, disse numa reunião com os Governadores do Nordeste (Julho 2019) sobre o Governador Flávio Dino, o seguinte, gravado para a posteridade: “o pior (Governador) é o do Maranhão, tem que ter nada para esse cara”. Falta de decoro, discriminação política na Federação, comportamento doloso enquadrável como exercício arbitrário ou abuso de poder, que não proporcionou nenhum escândalo midiático, embora o momento gravado na história política do país como exemplo de como se corrompe o Estado e se põe em decadência a Magistratura da Presidência. As instituições, à época, acomodadas no medo, na dúvida que gera passividade ou na cumplicidade explícita não reagiram. Lembro este fato para celebrar a postura de Chefe de Estado do Presidente Lula, ao tratar os Governadores mais autoritários e direitistas do país – mas eleitos dentro das mesmas regras que o elegeram Presidente, com o respeito institucional que seus cargos merecem, procurando viabilizar projetos de interesse público nos territórios sob suas jurisdições. Tratamento de um operário metalúrgico, Chefe de Estado e de Governo, que fundou mais Universidades no país e desenvolveu programas sociais que se tornaram exemplos mundiais, trabalhando nos estreitos limites que lhe são dados pelo império global do capital financeiro, cujos fluxos e dívidas se movem no mundo sem dó nem piedade. 

  Elon Musk, “empolgado com as possibilidades da inteligência artificial”, diz que esta “pode criar (como defendeu Hayek) a renda universal e eliminar a necessidade de trabalhar”. A tese mistura uma “ideia tenebrosa” – segundo os ideólogos neoliberais mais primários – como é o “bolsa família” (posto em vigência pelo Presidente Lula), com a ideia de uma sociedade sem classes: “livre das necessidades”, como disse Marx, logo livre do trabalho como “pena”, com a vitória do “reino da liberdade”.  Este ideal de sociedade perfeita veio de uma ideia revolucionária do século passado, mas a defesa de Musk é mera ironia de direita, baseada numa ideia de “sociedade perfeita” com base no funcionamento perfeito do mercado, por isso vai – ainda que sem sinceridade – na direção da renda básica (Universal) de Suplicy. Lula e Suplicy têm a ver – entre si – como partidários e militantes do PT, mas Musk só tem a ver com a legitimação dos seus negócios, que se ampliam até o altiplano peruano com estímulos a golpes sanguinolentos para facilitar o seu acesso ao lítio, mineral precioso e cobiçado pelos grandes negócios da alta tecnologia informacional-digital. Lula é um personagem, como Suplicy, das melhores possibilidades de um capitalismo menos violento, mas Musk é um  apologista das falsificações da razão mercantil, para a sua própria riqueza. O que opõe Lula e Suplicy a Elon Musk é o conceito do humano, para a solidariedade, versus o egoísmo que falsifica a perfeição do mercado. 

 Alguns episódios que aparentam ser fatos fragmentários da História, podem ser considerados como parte das comoções políticas do Século XX que, projetadas nos primeiros 30 anos deste novo (velho) Século 21, compõem um desenho desafiador para toda a esquerda pensante. Era a época da emergência do thatcherismo, do auge e depois da fragilização das ditaduras militares na América Latina, da mudança nos processos de acumulação do capital, combinados – a partir dali – com as profundas modificações no mundo do trabalho industrial e no mercado global. Era a diluição dos velhos valores políticos do proletariado militante e a fragmentação das suas lutas de partido e das suas peleias sindicais-laborais. Muito se escreveu e debateu sobre este novo cenário nos últimos 30 anos, quando ele se desenhava no horizonte das várias classes e setores sociais envolvidos, mas a maioria dos dirigentes dos partidos socialistas ainda se fixou no mérito das suas origens, não atentando para o novo mundo – mais cruel e mais complexo – que já aparecia naqueles sintomas. A recente vitória eleitoral de Milei na Argentina e a derrota tática do seu plano extremista de reformas no Legislativo argentino acende novas reflexões.

 A primeira delas é que a recusa do “ônibus” de Milei não foi uma derrota do seu projeto neoliberal, autoritário e radical, hoje incrustado na consciência média do povo argentino. Nem uma vitória da esquerda, que é minoritária no Parlamento, mas foi a vitória – por rejeição sem princípios econômicos unitários e sem projeto unificador de nação – de um conjunto de forças políticas que não tem uma estratégia mínima para reformar a ideia mítica de nação originária do peronismo histórico. Este, que já se aventurou a dirigir o país com o liberalismo de direita de Carlos Menem, sequer teve condições de apresentar um candidato autêntico do peronismo popular e concorreu vencendo com um político de outra extração, Anibal Fernàndez – honesto e dedicado quadro da política tradicional do país – que sequer teve condições claras de governabilidade e terminou fracassando como alternativa de poder.  “Os nexos de representatividade política hoje” – escrevi há 10 anos – “não mais se realizam por fórmulas doutrinárias ou mesmo pela participação cotidiana nas lutas econômicas de quem quer que seja”. 

  Nas condições atuais o nexo-partido classe não se desfez, mas se relativizou e se tornou mais complexo” (…): “a necessidade de aumentar a oferta de emprego industrial, por exemplo, já está em contradição” – dizia há uma década – “com a necessidade de preservação da vida  no planeta  e com a preservação das comunidades originárias”. E acrescentava: “o eyes of master foi substituído pelo controle dos resultados, a cooperação horizontal entre as empresas substituiu as grandes plantas unificadas; o emprego permanente diminui, a autonomia formal dos prestadores dos novos serviços – abrigados nas novas tecnologias – é (uma) novidade importante” (…): romperam-se “os conceitos de categorias econômica e profissional” (…) e as novas “necessidades do processo de acumulação (são) reféns dos capital financeiro globalizado”, (Revista Interesse Nacional, ano 9, n.33, pg20).

 Tudo isso foi arrematado por dois grandes cataclismas políticos consolidados no início do Século XXI, século do enterro das utopias e do ponto mais elevado do cinismo republicano dos países capitalistas hegemônicos. Eis os “arremates”: a revolução burguesa clássica chega na URSS como decadência do sistema socialista; e o “novo socialismo chinês” – guia de um capitalismo de Estado (ou socialismo burocrático de partido único?) – ao lado dos EUA, tornam-se fiadores e concorrentes num novo desequilíbrio mundial. Neste momento, a principal vítima deste desequilíbrio – como foram outrora os vietnamitas – são os palestinos, não os militantes do Hamas, já que estes têm o seu futuro assegurado pela memória nas novas gerações de Gaza, do massacre indiscriminado que explodiu sobre a sua população civil.  Em textos recentes que circulam nas redes é possível colher novos episódios que  irão compor uma nova totalidade da crise, inclusive face ao ascenso de uma unidade novo-tipo, que reestrutura o sistema de alianças nas democracias políticas ainda vigentes: o centro neoliberal, a direita tradicional e a extrema direita protofascista – com a hegemonia desta – podem ser os protagonistas de novos governos autoritários em importantes centro geopolíticos do Globo. Creio que nos últimos 70 anos da história do capitalismo moderno é a primeira vez que a contestação mais forte e mais “massiva”, ao “sistema”, vem dos setores da extrema direita e da direita política, não da esquerda, assim genericamente designados os setores que lutam por uma alternativa, que vai da socialdemocracia ao republicanismo democrático progressista, aliás, com a subtração visível – neste campo – de qualquer saída revolucionária em evolução. . 

  Alguns exemplos sintomáticos da evolução desta crise, colhidos rapidamente nas redes: Flávio Aguiar: “…a estrela da semana foi mesmo o setor agrícola, movimento (que) começou na Alemanha (…) e (se) alastrou por toda a Europa continental ” (Cresce a inquietação social na Europa, onde protestos dos setores de transporte e agrícola  assombram o mundo); Boaventura de Souza Santos: “o anti-estatismo surge combinado com a mentalidade autoritária (do Estado Protetor ao Estado Repressor), a direita passou a dominar a opinião pública e a fomentar a polarização social e a democracia voltou a entrar em crise” (Porque cresce o fascismo? Como travá-lo?). “Nunca um projeto ganhou com o número de votos que conquistamos hoje, literalmente, a percentagem mais elevada de toda a história” (fala de Nayib Bukele, Presidente de extrema direita, eleito por votação massiva em El Salvador- na BBC News). A História parece que não mais se repete, nem como farsa nem como tragédia, mas inova a barbárie como anti-história, cujos exemplo mais visíveis de dor o morte são a inquisição e os fascismos, cuja maior indução, que embora repouse na estrutura de classes, tem seu movimento harmonizado não pelas doutrinas partidárias verticais, mas pelas horizontalidades fetichistas do “mercado perfeito” da obsolescência programada.

  A indecisão da União Europeia em relação a um a regime de colaboração com o Mercosul expõe para a América Latina como totalidade (para a América do Sul em particular) as ambiguidades do chamado Estado Social Europeu, para resistir ao ascenso da direita extrema, conjugada com seus novos aliados do centro até a direita, para formar novos Governos ao redor do mundo. Na base desta problemática, todavia, está o seguinte: quem pagará as contas da Guerra da Ucrânia? das despesas dos EUA e da União Europeia da Guerra contra Gaza? Quem financiará, por 10 anos no mínimo, a dívida federal americana que ultrapassa (diz o Banco JP Morgan) 34 trilhões de dólares e custa 1 trilhão de dólares por ano, em juros? Esta análise, alardeada pelo Banco, não é orientada por uma preocupação “social”, certamente, mas lembra que imprimir moeda sem lastro pode ser a causa, num futuro não muito distante, de uma hiperinflação mundial sem precedentes na história do capitalismo.  

  A experiência da hiperinflação alemã que precedeu a 2a. A Grande Guerra tornar-se-ia, neste cenário, apenas uma brincadeira de mau gosto. Os exemplos são abundantes na História do capitalismo, já que os conflitos dessa natureza e escala são resolvidos principalmente por três meios e formas, que podem se combinar: pela Guerra entre blocos de interesse geopolíticos confrontados; por revoluções internas nos países mais afetados pelo delírio inflacionário; ou por golpes de Estado, na periferia do sistema, que adaptam as circunstâncias internas de cada país a uma nova ordem mundial. Quando não emerge no fim de uma época uma luz de esperança prosperam os falsificadores da verdade. Que tanto podem dizer que não tem inocentes em Gaza como que um Golpe sangrento é necessário, no Peru, para que a nação entregue seu lítio para os donos do mundo. 

 A oxigenação democrática do Brasil, ainda que nos estreitos limites permitidos pela ordem mundial que desiguala e assassina milhões de inocentes, é um pequeno candeeiro num mundo desalmado e opressivo, como seria qualquer mundo governado pelos muito ricos. Mas não podemos perder o rumo, não podemos perder a esperança.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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