Opinião
|
22 de janeiro de 2024
|
06:13

Um, dois, três, muitos Lulas (por Luiz Marques)

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Foto: Ricardo Stuckert)
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Foto: Ricardo Stuckert)

Luiz Marques (*)

Em 1973, um livro editado em Paris no original russo abalou a opinião pública mundial. Trata-se de Arquipélago Gulag, de Alexandre Soljenítsyn, um relato baseado em documentos sobre episódios ocorridos nas ilhas do complexo de campos de trabalho forçado, da ex-URSS. Gulag é o acrônimo de “Administração Geral dos Campos”, locais em que padeceram vários milhões de prisioneiros. No Brasil, a tradução da impactante publicação teve três impressões em poucos meses – sucesso.

O fenômeno se espalhou nos dois hemisférios, no contexto acirrado da Guerra Fria. A repercussão da portentosa obra de 600 páginas foi o estridente apito de alerta sobre o porvir. A opção burocrática pelo socialismo autoritário, ao revés do socialismo democrático, cobraria adiante altíssimo preço.

O calhamaço, “onde não há personagens imaginários, nem acontecimentos imaginários”, abre com um comovente registro de sofrimento. O escritor e seus companheiros de infortúnio, em 1949, veem na revista da Academia de Ciências a notícia acerca de uma escavação na bacia do rio Kolimá que encontrou, congelados sob a camada glacial, espécimes de fauna fossilizada com milênios de idade. “Os peixes, ou tritões (semelhantes a lagartos), conservavam-se tão frescos que as pessoas presentes quebravam o gelo e comiam-nos com prazer”, descrevia a curta matéria. O destaque não era a carne conservada em uma eternidade, mas a reação de humanos desnutridos em um achado arqueológico. 

“Compreendemos o sentido da nota porque as ‘pessoas presentes’ éramos nós próprios, a legião de zeks (presos em situação análoga à escravidão) que podia comer os tritões ‘com prazer’ para saciar a fome”. A fome tinha pressa, os interesses da ictiologia esperariam. O Prêmio Nobel de Literatura não teme as memórias; transmuda-as em uma arma de combate. Diz o provérbio: quem mexe no passado perde um olho; quem não mexe perde os dois. Com a surpreendente dissolução da “pátria dos povos”, os encarcerados e os carcereiros de outrora não seriam mais interpretados e sequer vistos. A utopia e a revolução traída foram fundidas no preconceito antissocialista – e esquecidas.

Um passo atrás, dois à frente

De lá para cá, muita água passou sob a ponte. Houve a Revolução Chinesa (1946-1949), a Guerra da Coreia (1950-1953), a Revolução Cubana (1953-1959), a Guerra do Vietnã (1959-1975), a Guerra dos Balcãs pós- Tito (1991-1996), a Guerra do Afeganistão (2001-2021), a Guerra do Iraque (2003-2011). Esses são alguns dos eventos marcantes na sequência da Segunda Guerra Mundial (1945) e do surpreendente esfacelamento da União das Repúblicas Soviéticas Socialistas (1991). Para não mencionar, claro, os golpes civis-militares na América Latina no doloroso século XX. 

Direta ou indiretamente, os Estados Unidos participaram dos conflitos. Na China, com aporte de US$ 4,5 bilhões na maior parte em auxílio militar, enviando 90 mil fuzileiros navais estadunidenses para o território chinês. Tudo em nome do “mundo livre” contra a ameaça do “comunismo”, como se o capitalismo e o livre mercado convivessem (numa boa) com a democracia e, mesmo, fossem o seu guardião. Nunca foram, exceto nas fake news do conservadorismo. Quanto aos massacres no continente africano, entram na conta do colonialismo europeu, a exemplo de Ruanda (1990-1994). A “sociologia das elites” diz que a história é um cemitério de aristocracias. Sim, e também um rio que transborda o sangue de inocentes jogados em covas coletivas, sem uma identificação pessoal.

Conforme Jeffrey Sachs, assessor dos últimos três Secretários-Gerais da ONU, é difícil conter o apetite do Complexo Industrial Militar dos EUA. Joe Biden nem tentou uma ponderação. Somente presidentes excepcionais conseguiriam; não é o caso. “John Kennedy resolveu brilhantemente a Crise dos Mísseis Cubanos, em 1962, evitando por pouco um Armagedon nuclear ao enfrentar seus próprios conselheiros beligerantes para chegar a uma solução pacífica com a União Soviética. No ano seguinte, negociou com sucesso o Acordo de Proibição Parcial de Testes Nucleares com a União Soviética, apesar das objeções do Pentágono, e depois obteve a ratificação pelo Senado”. Alguns analistas creem que seu assassinato foi obra de renegados da CIA descontentes com a paz.

Hoje vivemos o ciclo de guerras assustadoras, de novo premonitórias. Sempre com a mão da grande potência do Norte. Vide a Guerra da OTAN / Ucrânia versus Rússia e, agora, o aval ao genocídio cometido pelo governo ultradireitista de Israel de extermínio do povo palestino na Faixa de Gaza, com a morte de milhares de civis, mulheres e crianças. Mata-se o presente e o futuro, no eco trágico do que o próprio povo judeu padeceu sob as patas dos nazistas. É o bumerangue da perversão dos fracos e desamparados em cada época, no eterno retorno de um darwinismo doentio qual o capital.

Os meios de descomunicação

No século XXI, mais do que em qualquer outro tempo, diante da crise climática cujos efeitos se agravam no planeta, e da ameaça de uma Terceira Guerra Mundial com armas atômicas que põem em risco a sobrevivência da humanidade, urge a capacidade de mediadores para puxar o freio de mão do trem desgovernado, em direção célere ao precipício. Ao flertar e monetizar a tosca audiência bolsonarista, a mídia corporativa brasileira desmerece a importância da luta pacifista. 

Os meios de descomunicação (O Estadão, a Folha de S. Paulo, a Rede Globo) olham o abismo sem reparar que o abismo devolve-lhes o olhar e puxa-os para dentro de si. Os ataques desferidos pela imprensa contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em razão da necessária retomada das obras da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, sinaliza um novo cerco contra a soberania do país. Os donos da opinião publicizada jamais aceitaram o mote “O petróleo é nosso”, de idos dos anos 1950. 

Setenta anos passados ainda acham que o Brasil não deve produzir o “ouro negro” e, produzindo, não deve fazer o refino para continuar a ser dependente das refinarias estrangeiras. Pior: acham que o pré-sal, a água, a luz e os parques públicos também devem sofrer privatizações. O complexo de vira-lata está no DNA da “elite do atraso”, desde o triste período colonial-escravista. O conluio com provas da Lava Jato e os EUA foi a reiteração de uma traição criminosa e sistemática, de longa data. 

Esses são tempos de transição para a multipolaridade, com uma pluralidade de vozes e atores do processo democrático no mapa-múndi. Vide a África do Sul no Tribunal de Haia. O “cala boca” já não funciona, como em priscas eras geopolíticas. A alternativa ao futuro conduz à barbárie e ao aprofundamento dos dilemas internacionais de fronteira; antes, do fluxo dos colonizadores até as colônias e, agora, dos antigos colonizados para as metrópoles. Da combinação do neoliberalismo com o neofascismo só é possível esperar novos Gulags de segregação forçada. Desta vez, porém, no Ocidente – sem os tritões milenares congelados na camada glacial para amainar a fome das massas. 

Pela vida que se desdobra

Para garantir a paz e as possibilidades emancipatórias da democracia em escala social, política, cultural e econômica precisamos de “um, dois, três, muitos Lulas” para engajar nossa humanidade e brasilidade na luta integradora da nação nos valores da cidadania participativa, democrática e republicana. A necropolítica serva do antidesenvolvimentismo e do extrativismo, de viés neoliberal e neofascista, é uma tremenda violência contra as aspirações vitais de todo povo. Para evocar um verso disposto ao combate, de João Cabral de Melo Neto: “O que vive é espesso / como um cão, um homem, / como aquele rio // Porque é muito mais espessa / a vida que se desdobra / em mais vida”.

(*) Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora