Opinião
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2 de janeiro de 2024
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05:50

Retrospectivas diante de novos horizontes: o tempo como condição da narrativa (Coluna da APPOA)

Foto: Gilson Mafacioli/Arquivo pessoal
Foto: Gilson Mafacioli/Arquivo pessoal

 

Volnei Antonio Dassoler (*)

Houve um tempo, não muito distante da atualidade, que acompanhar a retrospectiva dos principais acontecimentos do ano que findava era um dos rituais mais esperados dos que aconteciam nesse período. Funcionando como uma espécie de inventário ampliado do cotidiano do mundo, a narrativa apresentada pelos programas recuperava e repercutia os fatos mais importantes. Na tela da TV, nas emissoras de rádio e nas páginas do jornal e das revistas periódicas, o roteiro destacava para uma população invariavelmente atenta, eventos relevantes no campo sociopolítico, econômico, esportivo e cultural. Foi assim que acompanhamos desastres climáticos, tragédias humanas, guerras, morte de personalidades públicas, eleição de papas, novidades científicas. 

Já faz algum tempo que as retrospectivas desse tipo deixaram de suscitar o meu interesse. O avanço sem precedentes da tecnologia que, proporciona livre acesso a uma infinidade de conteúdos, provocou mudanças drásticas na experiência humana. Tal onipresença fez com que o meio digital passasse a ser um componente decisivo na construção de qualquer forma de realidade, seja esta concreta ou virtual, além de desestabilizar a solidez daquilo que se mantém identificado à tradição. 

O fluxo incessante desse material é apresentado numa velocidade tal que a grande maioria do conteúdo acaba sendo acessado de forma fugaz, passando célere pelo nosso campo de visão sem que seu efeito consiga ir além do impacto instantâneo, inviabilizando de sermos efetivamente afetados por algum dilema moral subjetiva e socialmente válido. Entediados e, paradoxalmente, fascinados por esse dilúvio, muitas vezes, nosso interesse se atém às manchetes que chocam ou seduzem, mas que, rapidamente, se esgotam em si mesmas, sendo descartadas para dar lugar a outra, outra, outra e outra novidade. Nesse modo de funcionamento tóxico, todo e qualquer tema acaba tendo vida curta, envelhecendo rapidamente, o que, em alguma medida, debilita a eficácia da memória, cuja função requer que o acontecimento, para ser lembrado, seja aquerenciado pela alteridade e atravessado pelo tempo.

 Atualmente, toda e qualquer retrospectiva tende a ser uma apresentação inócua de fatos que pouco repercutem nos leitores, ouvintes e telespectadores justamente porque o modo de circulação das notícias – contínuo, repetitivo e em vários canais – esgota todo e qualquer interesse. Estamos fadados à alienação e à indiferença com o que acontece ao nosso redor e no mundo?

Recentemente, durante uma viagem de visita aos meus familiares, deparei-me com um carro parado no acostamento devido a um pneu furado, pelo que pude concluir. O flagrante do transtorno se manteve no meu campo de visão durante os segundos que levei para fazer a curva à frente. Agachado e sob um céu nublado, um homem trocava o pneu, enquanto uma mulher e duas crianças, encostadas na lateral do automóvel, aparentemente calmas, compunham e equilibravam a composição realista típica dos feriados prolongados com gente comum como qualquer um de nós. 

 Quando os personagens desta cena desapareceram do espelho retrovisor, fantasiei sobre as reações daquela família diante do percalço da viagem que, quis adivinhar, teria, provavelmente, o mesmo propósito que a minha. Para dar asas à imaginação, meu enredo transitou por vários cenários: o incidente teria sido acolhido com bom humor ou disparado um conflito já existente? O homem aproveitaria a oportunidade para ensinar como proceder a troca de um pneu? A responsabilidade do acontecido seria atribuída ao destino, ao governo, à imperícia do condutor, à distração das crianças, às condições da rodovia ou tudo isso e mais um pouco? Na retrospectiva da viagem, entre tantos outros acontecimentos ocorridos durante o percurso esta historia poderia ganhar pitadas de bom ou de mau humor em seu relato posterior? A gramática que situa um lugar para essa família no mundo contemplaria uma dose de acidentalidade e a possiblidade de adjetivar e inscrever a fratura de um planejamento, sem comprometer o desejo e as expectativas que motivaram a viagem? 

Na infância, é o tempo presente que nos fascina: vive-se o prazer pelo fato de existir, a satisfação se realiza no simples brincar. Mais tarde, jovens e um tanto distraídos, desfrutamos do aqui e agora, queremos sentir o mundo por nós mesmos, mesmo que mantendo um olho enviesado para o futuro e suas promessas. Quando adultos, expostos a temporalidades sobrepostas e acuados pelas urgências do presente, vivemos os impasses subjetivos da escolha entre o prazer e a lei, posição que transcorre paralelo às lembranças do passado e à falta de garantia projetada ao futuro. 

Subvertendo a cronologia simbólica de uma modalidade de retrospectiva que faz coexistir linearmente essas dimensões temporais, abrimos espaço para a temporalidade do a posteriori, termo que aponta para o caráter dialético do que foi vivido, em diferença ao determinismo e à univocidade do sentido. Esta perspectiva possibilita que outras vivências possam se introduzir no conjunto de experiências vividas com efeitos de ressignificação na composição do que foi vivido ou do que foi impedido de viver, seja por escolha, por restrições de toda ordem, pelo capricho do destino. Hoje, quando olho para a cicatriz na perna direita que ganhei ao cruzar uma cerca por entre seus fios de arame farpado, um sorriso imperceptível se desenha em mim. Da mesma forma, ao lembrar um episódio de humilhação sofrido na adolescência sentido, na ocasião, como uma ferida narcisista e insuficiência subjetiva, hoje, reconheço no mesmo uma posição de resistência inédita, à época. 

Ainda que não pertençamos ao passado, nem o futuro seja uma página em branco, não nos desvencilhamos do passado e seus acontecimentos vivem em nós. No tempo das retrospectivas pessoais, angústia, alegria, sonhos e frustrações aparecerão como companheiras das viagens que o ano nos reservou e que estão prometidas para o ano que se inaugura. Embora entre o nascer e o por do sol, todos os dias se pareçam iguais e o futuro sinaliza poucas veredas para fazer frente à repetição, o fato é que estamos destinados a um tanto de transformação se tomarmos a vida como aventura. Uma retrospectiva nunca é um protocolo que finda um tempo em si mesmo, pelo contrário, ela se mostra um convite do porvir que se abre para o desejo. 

(*) Psicanalista, Doutor em Psicologia Social (UFRGS), membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre ([email protected])

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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